O Leão da Calábria, de Nilson Luiz May

O Leão da Calábria, de Nilson Luiz May

É quase inacreditável, mas tudo o que é contado de forma romanceada em O Leão da Calábria aconteceu aqui, em Anta Gorda (RS) pertinho de nós, nos anos 20 do século passado. Não gostaria de entrar em polêmicas, só que… Será que os fatos narrados no livro explicam, alguma coisa de nosso estado e do Brasil? Falo dos dias atuais, claro. Bem, voltemos ao livro.

Nilson Luiz May narra a história do médico Michele De Patta, que há 100 anos emigrou da Calábria para chegar ao nosso estado. Recém formado e tendo trabalhado como médico na Primeira Guerra Mundial, Michele trouxe ao RS diversas técnicas desconhecidas ao povoado de Anta Gorda, atraindo a admiração dos clientes e o ódio dos curandeiros e de quem acreditava neles. A base da história é totalmente real — inclusive, no livro, há fotografias de De Patta, de sua família e de seu hospital. O autor romanceou a trama, claro, criando diálogos e alguns poucos personagens extras.

Imaginem que o médico italiano conseguiu erguer um hospital, a fim de ampliar e melhorar o atendimento à população local — afinal, muitos passavam por cirurgias e precisavam de tempo e de ambiente adequado para a recuperação. Porém, o ódio e a amizade do médico com um professor local, que era anarquista, complicou tudo. Aliados à ignorância, o poder público e o religioso — apesar do catolicismo da família De Patta — puseram tudo a perder.

Os fatos e a violência relatadas são quase uma antevisão do que ocorre em nossa época de negacionismos, alguns furiosos e de graves consequências. O livro é um thriller. May usa o suspense para contar sua desconcertante história. Logo no primeiro capítulo, sabemos que o hospital acabará incendiado. Durante a leitura, sabemos como e por quê. Sei que é um lugar comum dizer que a realidade supera a ficção e sou obrigado a repetir isso aqui.

Lemos o livro, levantamos os olhos e pensamos que aquilo só poderia ter sido inventado. Não foi. As certezas e a truculência da ignorância são, muitas vezes, imbatíveis. Não adiantou explicar, receitar, curar, operar e recuperar. A turba ficou ao lado dos negacionistas e do líder local, pouco preocupados com a ciência. E não me digam que 100 anos é muito tempo, não me digam. Afinal, a reação do governo brasileiro à gripezinha de 2020 estão bem próximos de nós.

May é médico e também um maestro seguro, controlando a narrativa de forma a que a gente leia tudo rapidamente. O livro gruda. Afinal, queremos saber até onde aqueles malucos vão.

Recomendo!

O autor Nilson Luiz May

4 livros

4 livros

A Boa Sorte, de Rosa Montero

A romancista e ensaísta Rosa Montero é, em âmbito mundial, uma das mais importantes escritoras em atividade. Há dezenas de livros e estudos acerca de sua obra. Autora dos excelentes A ridícula ideia de nunca mais te ver e Nós, Mulheres, teve seu A Boa Sorte lançado recentemente no Brasil. É seu primeiro romance onde o personagem principal não é uma mulher. Mas isso talvez seja falso, porque quem ilumina e altera as feições da história é uma personagem feminina. Dentro de uma narrativa fluida e misteriosa, conhecemos Pablo Hernando, um sujeito que some em uma pequena e decadente cidade espanhola. Assim que ele chega, à noite, de trem, compra um apartamento. O vendedor fica surpreso, pois o comprador quer fazer tudo imediatamente, em dinheiro, sem nem mesmo visitar o imóvel. Quem é Pablo Hernando? A polícia está atrás dele? Por que ele escolheu ficar em Pozonegro, onde não conhece ninguém? Então Raluca, funcionária do supermercado local, entra em cena. Ela é sua vizinha e tenta integrá-lo à comunidade. Até consegue um emprego para ele. A descida de Pablo aos infernos é muito bem descrita por Montero. Há medo, angústia, culpa, e também amor, generosidade e inocência. E a boa sorte.

A Boa Sorte é da Todavia, tem 256 páginas e custa R$ 74.90.

A tirania do mérito, de Michael Sandel

Neste livro, Sandel ataca um consenso que ainda reina em alguns meios, o da meritocracia. O livro defende que há um lado negro, um lado desmoralizante nela, ou seja, o de que se a pessoa não ascender socialmente, não terá ninguém para culpar além de si mesma. Inclusive, segundo Sandel, as elites de centro-esquerda teriam abandonado as velhas lealdades de classe para assumir um novo papel de moralizadores da vida. Isto seria particularmente cruel com quem não teve a melhor das formações, justamente as classes mais desfavorecidas. Porque os méritos são normalmente alcançados por quem estudou nas melhores escolas, não? Sandel reconhece o valor do mérito, mas trata de demonstrar como sua aplicação tornou-se tóxica. Segundo o autor, este seria o momento para iniciar um debate sobre a dignidade do trabalho e suas recompensas, tanto em termos de remuneração, como em termos de estima. Com a pandemia, percebemos como somos dependentes, não apenas de médicos e enfermeiras, mas também de entregadores e prestadores de quaisquer serviços, muitos deles transitando via de regra na economia informal. Esse livro traz o problema e sugere soluções para amenizá-lo. Ou seja, não é um livro de simples objeções.

A Tirania do Mérito é da Civilização Brasileira, tem 430 páginas e custa R$ 69,90.

Eu serei a última, de Nadia Murad

Este é o um relato autobiográfico do que Nadia Murad passou nos cárceres do Estado Islâmico e de sua fuga. Hoje, Nadia é ativista de direitos humanos e, em 2018, recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Ela faz parte da minoria étnico-religiosa Iazidi. Há cerca de 800 mil iazidis no mundo, a maior parte localizada na fronteira do Iraque com a Síria. Seu povo pratica uma religião sincrética, o iazidismo, que tem elementos do cristianismo e do islamismo, tudo o que o Estado Islâmico não aceita. Em Eu serei a última, ela conta sua brutal experiência – os dias do cerco a sua vila, a prisão, a fuga e, afinal, sua chegada na Alemanha. Dizer que a história é intensa é pouco. Nadia Murad é vendida, torna-se escrava sexual – chama-se a “jihad sexual” – e sua fuga não foi exatamente planejada. A impotência de uma minoria perante o EI, o tráfico humano, o genocídio, os estupros, a vivência em uma sociedade cruelmente patriarcal, a doutrinação dos extremistas islâmicos, a conversão forçada ao islamismo, tudo é violento, porém há trechos leves, como os das lembranças da vida antes da invasão. Em cada página, ficamos nos perguntando como tudo isso (ainda) acontece e até onde o ser humano pode chegar.

Eu serei a última é da Novo Século, tem 394 páginas e custa R$ 69,90.

O despertar de tudo, de David Wengrow e David Graeber

Este livro tornou-se rapidamente um clássico. Com bom humor e argúcia, O despertar de tudo revela que o passado não é aquilo que pensávamos e que a história da humanidade, tal como a conhecemos, traz um viés bastante equivocado. Dentre muitas fontes, os autores utilizam, por exemplo, textos indígenas para recontar a história. Graeber e Wengrow nos dão uma visão mais sofisticada de nossas origens, a partir de informações vindas da moderna arqueologia. O livro revela novidades a respeito da antiguidade, principalmente dos períodos “primitivos” anteriores à escrita. O que emerge é uma visão mais complexa e surpreendente, que é sintetizada de forma brilhante pelos autores. O livro também coloca em questão o mito explicativo que justificativa a desigualdade social entre seres humanos e a origem do ordenamento social hierárquico, corporificado no que chamamos de “Estado”. Acompanhado de vasto material bibliográfico, O despertar de tudo – nascido de uma longa troca de e-mails entre os autores – é coerente, convincente e provocativo, sublinhando a importância de nos mantermos sempre abertos para revisar nossos conceitos com base na ciência.

O Despertar de Tudo é da Cia. das Letras, tem 696 páginas e custa R$ 119,90.

Alcançando outro patamar: a Filarmônica de Los Angeles provoca um “orgasmo de corpo inteiro” em pessoa na plateia

Alcançando outro patamar: a Filarmônica de Los Angeles provoca um “orgasmo de corpo inteiro” em pessoa na plateia

Por Christi Carras (traduzido de um jornal sério, o LA Times)

Molly Grant estava curtindo a apresentação da Filarmônica de Los Angeles da Quinta Sinfonia de Tchaikovsky na sexta-feira no Walt Disney Concert Hall quando ouviu o que descreveu como um “grito/gemido” vindo do mezanino.

O exterior da Walt Disney Concert Hall

“Todo mundo meio que se virou para ver o que estava acontecendo”, disse Grant, que estava sentada perto da pessoa que supostamente fez o barulho, ao The Times no domingo em uma entrevista por telefone.

“Eu vi a garota depois que aconteceu, e presumo que ela… Bem, Foi muito bonito.”

Várias pessoas que assistiram ao Concerto da Filarmônica em LA na sexta-feira relataram ter ouvido uma mulher gemendo durante o segundo movimento da sinfonia.

O compositor e produtor musical Magnus Fiennes, descreveu o som no Twitter como o de uma pessoa tendo um “orgasmo alto e de corpo inteiro”.

Uma suposta gravação de áudio do momento — onde alguém pode ser ouvido chorando durante um trecho silencioso da música — estava circulando nas redes sociais. Os participantes que falaram com o The Times disseram que o clipe era semelhante ao que ouviram.

“Amigos que foram à Filarmônica de Los Angeles ontem à noite estão relatando que no meio do concerto uma senhora teve um orgasmo GRITANTE, a ponto de toda a orquestra parar de tocar”, twittou a jornalista Jocelyn Silver. “Algumas pessoas realmente sabem como viver…”.

No entanto, as pessoas presentes disseram que os músicos tocaram não pararam durante a confusão. A pianista clássica Sharon Su twittou que “verificou com alguém que trabalha no LA Phil e eles confirmaram” que a orquestra continuou tocando durante a comoção.

Ainda não está claro o que exatamente ocorreu na audiência. O Times entrou em contato com LA Phil para comentar, mas ninguém conseguiu identificar ou contatar a pessoa que fez o som.

Outros membros da audiência contestaram a teoria do orgasmo, afirmando que a mulher poderia ter feito o barulho ao acordar depois de ter adormecido. Alguns temiam que pudesse estar relacionado a uma condição médica ou emergência.

Um participante que estava sentado na fileira logo atrás da pessoa que fez o barulho disse que parecia que a mulher estava acordando de um ataque de sono quando fez o som.

“Muito rapidamente, ela meio que caiu nos ombros do parceiro e depois no colo dele. E então o corpo dela ficou mole”, lembrou o membro da platéia, que pediu anonimato para falar sobre o incidente. “Talvez uns cinco segundos depois, ela meio que acordou, e foi quando soltou um grito.”

O membro da plateia que estava sentado na fileira atrás da pessoa disse que já havia testemunhado uma pessoa com narcolepsia ter um ataque de sono, e o que ela viu no LA Phil parecia semelhante.

Depois que a mulher fez o barulho, seu parceiro e outra mulher sentada ao lado dela perguntaram se ela estava bem, e ela respondeu que estava, de acordo com a plateia, que relatou ter ouvido a conversa.

“Eu sei que outra pessoa mencionou que ela estava sorrindo, mas tenho certeza que ela estava muito envergonhada porque outras pessoas estavam olhando para ela”, disse o membro da platéia ao The Times.

Outro espectador enviou um e-mail ao The Times para dizer que ouviu o barulho, mas não achou que fosse um som de êxtase.

O programa de sexta-feira, dirigido pelo maestro Elim Chan, incluiu ainda a interpretação do Concerto para Violino “Caminhos Concêntricos” de Thomas Adès.

As notas do programa online de LA Phil incluem esta descrição do segundo movimento da Sinfonia nº 5 de Tchaikovsky :

“O delicioso tema principal foi adaptado para uma popular canção de amor. A orquestração habilidosa de Tchaikovsky, no entanto, eleva o clima do sentimentalismo ao alto romantismo. A melodia principal do movimento é apresentada em um solo memorável da trompa, seguido por outros atraentes solos de sopro.”

O agente musical Lukas Burton, disse que o som do membro da platéia foi “maravilhosamente cronometrado” dentro da “onda romântica” da sinfonia. “Não se pode saber exatamente o que aconteceu, mas parecia muito claro pelo som que era uma expressão de pura alegria física”, disse Burton. “Foi equivalente àquela cena em um filme em que alguém está falando alto em uma festa ou boate, e então a música para de repente e todos ouvem o que está sendo dito”.

Embora a explosão tenha sido claramente um momento incomum e surpreendente para um concerto de música clássica, Burton o descreveu como “bastante maravilhoso e revigorante”.

“Houve uma espécie de suspiro na plateia”, disse Burton. “Mas acho que todos sentiram que era uma expressão adorável de alguém que estava tão transportado pela música que teve algum tipo de efeito sobre eles fisicamente ou, ouso dizer, até sexualmente.”

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Christi Carras é repórter de entretenimento do Los Angeles Times. Ela foi anteriormente estagiária do Times depois de se formar na UCLA e também trabalhou na Variety, no Hollywood Reporter e na CNN.

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Aqui estão mais seis sinfonias que agregam valor de tipo íntimo:

1 Saint-Saens Sinfonia Nº 3 (aguarde o órgão)
2 Inextinguível de Nielsen (oh!, que maravilha!)
3 Strauss Sinfonia Doméstica (aviso aos pais: inclui cópula)
4 Szymanowski 3º: canção da noite (diz tudo)
5 Mahler Sinfonia Nº 7 (com duas músicas noturnas, duas!)
6 Scriabin Poème de l’Extase (diz tudo)
7 Malcolm Arnold: Toy Symphony

Alguma mais?

Abra e Leia, lido por Rafaela Dilly Kich

Publicado no Instagram da autora.

Um dos aspectos mais belos do ato da escrita, a meu ver, é a possibilidade de eternizar o cotidiano em palavras.

“Abra e Leia”, livro de contos de Milton Ribeiro (@editorazouk, 2021) é exatamente isto: um presente elegante que, ao ser desembrulhado, traz histórias que provocam lágrimas, riso, reflexão social, alívio à mente.

Também uma importante lembrança de que a vida “comum” é, em verdade, uma profusão borbulhante de pequenos grandes atos magníficos – ora sincrônicos, ora caóticos.

Atos estes que conduzem a leitora e o leitor a, invariavelmente, lembrarem de suas próprias perdas, ganhos, sortes, azares e amores vividos.

Como ocorre quando se escuta uma orquestra, Milton convoca também nossa subjetividade à interpretação: alguns contos parecem inacabados. Um convite à imaginação.

E, de fato, se não houvesse a palavra somada à imaginação, para onde iriam todas estas histórias?

Grata a ti, @miltonrib, por eternizá-las.

O autor que se propõe a observar a vida sob a lente do detalhe, do aparentemente banal – e nem por isso menos extraordinário – é um ser humano generoso, acredito.

E a ti que me acompanha por aqui, fica esta baita dica de leitura. 😊

Discurso de Chico Buarque – Prêmio Camões

Discurso de Chico Buarque – Prêmio Camões

Cerimônia de entrega – dia 24 de abril de 2023, Palácio Nacional de Queluz, às 16.00 horas.

Ao receber este prêmio penso no meu pai, o historiador e sociólogo Sergio Buarque de Holanda, de quem herdei alguns livros e o amor pela língua portuguesa. Relembro quantas vezes interrompi seus estudos para lhe submeter meus escritos juvenis, que ele julgava sem complacência nem excessiva severidade, para em seguida me indicar leituras que poderiam me valer numa eventual carreira literária. Mais tarde, quando me bandeei para a música popular, não se aborreceu, longe disso, pois gostava de samba, tocava um pouco de piano e era amigo próximo de Vinicius de Moraes, para quem a palavra cantada talvez fosse simplesmente um jeito mais sensual de falar a nossa língua. Posso imaginar meu pai coruja ao me ver hoje aqui, se bem que, caso fosse possível nos encontrarmos neste salão, eu estaria na assistência e ele cá no meu posto, a receber o Prêmio Camões com muito mais propriedade. Meu pai também contribuiu para a minha formação política, ele que durante a ditadura do Estado Novo militou na Esquerda Democrática, futuro Partido Socialista Brasileiro. No fim dos anos sessenta, retirou-se da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo em solidariedade a colegas cassados pela ditadura militar. Mais para o fim da vida, participou da fundação do Partido dos Trabalhadores, sem chegar a ver a restauração democrática no nosso país, nem muito menos pressupor que um dia cairíamos num fosso sob muitos aspectos mais profundo.

O meu pai era paulista, meu avô, pernambucano, o meu bisavô, mineiro, meu tataravô, baiano. Tenho antepassados negros e indígenas, cujos nomes meus antepassados brancos trataram de suprimir da história familiar. Como a imensa maioria do povo brasileiro, trago nas veias sangue do açoitado e do açoitador, o que ajuda a nos explicar um pouco. Recuando no tempo em busca das minhas origens, recentemente vim a saber que tive por duodecavós paternos o casal Shemtov ben Abraham, batizado como Diogo Pires, e Orovida Fidalgo, oriundos da comunidade barcelense. A exemplo de  tantos cristãos-novos portugueses, sua prole exilou-se no Nordeste brasileiro do século XVI. Assim, enquanto descendente de judeus sefarditas perseguidos pela Inquisição, pode ser que algum dia eu também alcance o direito à cidadania portuguesa a modo de reparação histórica. Já morei fora do Brasil e não pretendo repetir a experiência, mas é sempre bom saber que tenho uma porta entreaberta em Portugal, onde mais ou menos sinto-me em casa e esmero-me nas colocações pronominais. Conheci Lisboa, Coimbra e Porto em 1966, ao lado de João Cabral de Melo Neto, quando aqui foi encenado seu poema Morte e Vida Severina com músicas minhas, ele, um poeta consagrado e eu, um atrevido estudante de arquitetura. O grande João Cabral, primeiro brasileiro a receber o Prêmio Camões, sabidamente não gostava de música, e não sei se chegou a folhear algum livro meu.

Escrevi um primeiro romance, Estorvo, em 1990, e publicá-lo foi para mim como me arriscar novamente no escritório do meu pai em busca de sua aprovação. Contei dessa vez com padrinhos como Rubem Fonseca, Raduan Nassar e José Saramago, hoje meus colegas de prêmio Camões. De vários autores aqui premiados fui amigo, e de outras e outros – do Brasil, de Portugal, Angola, Moçambique e Cabo Verde – sou leitor e admirador. Mas por mais que eu leia e fale de literatura, por mais que eu publique romances e contos, por mais que eu receba prêmios literários, faço gosto em ser reconhecido no Brasil como compositor popular e, em Portugal, como o gajo que um dia pediu que lhe mandassem um cravo e um cheirinho de alecrim.

Valeu a pena esperar por esta cerimônia, marcada não por acaso para a véspera do dia em os portugueses descem a Avenida da Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos. Lá se vão quatro anos que meu prêmio foi anunciado e eu já me perguntava se me haviam esquecido, ou, quem sabe, se prêmios também são perecíveis, têm prazo de validade. Quatro anos, com uma pandemia no meio, davam às vezes a impressão de que um tempo bem mais longo havia transcorrido. No que se refere ao meu país, quatro anos de um governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas nem por isso podemos nos distrair, pois a ameaça fascista persiste, no Brasil como um pouco por toda parte. Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo.

Muito obrigado!

Berwald e Hummel: o Concerto da Ospa desta quinta-feira (20)

Berwald e Hummel: o Concerto da Ospa desta quinta-feira (20)

Quem não tem muita vivência na área da música de concerto talvez torça o nariz para o programa da Ospa desta quinta-feira (20), às 20h, na Casa da Música da Ospa, mas garanto que ele é de extraordinária qualidade.

O programa é o seguinte:

Johann N. Hummel | Concerto para Trompete em Mi Bemol Maior
I. Allegro con spirito
II. Andante
III. Rondó: Allegro

Franz Berwald | Sinfonia n° 3 em Dó Maior, ‘Singular’
I. Allegro fuocoso
II. Adagio – Scherzo – Adagio
III. Finale: Presto

Regência: Mateus Araujo
Solista: Diogo Gomes, trompete

Primeiramente, vamos pedir a ajuda de Adriano Brandão a fim de tentar descrever o que é Sinfonia Nº 3 de Franz Berwald, a “Sinfonia Singular”. O primeiro parágrafo é meu. Os outros são dele. O Adriano destaca os dois movimentos finais da sinfonia, mas, para mim, a grande surpresa e alegria é o primeiro movimento, apesar de eu achar toda a sinfonia linda.

Um dia, estava dirigindo para o trabalho e a Sinfonia Singular começou a tocar na rádio da UFRGS. Cheguei a meu destino ao final do primeiro movimento e não consegui sair de dentro do carro até o final. Eu simplesmente TINHA que saber o que era aquilo. Era 1989. Então, o locutor anunciou Franz Berwald? Berwald? Who the fuck is Berwald? Logo importei um vinil alemão e pude comprovar meu amor pela Sinfonia. Berwald é uma raridade. Você conhece outro compositor sueco? Dentre os escandinavos, você certamente conhece o norueguês Grieg, o finlandês Sibelius e o dinamarquês Nielsen. Eles são raros, né? E a Suécia não gerou grandes nomes. Franz Adolf Berwald foi praticamente ignorado enquanto era vivo. Por isso, teve que procurar uma outra ocupação. Berwald trabalhou como cirurgião ortopédico, e posteriormente administrou uma serraria e uma fundição de vidro. Hoje, ele é considerado o compositor sueco mais importante de seu século. Em 1976, a nova sala de concertos da Sveriges Radio recebeu o nome de Berwaldhallen. Berwald morreu em Estocolmo em 1868 de pneumonia.

Não são raros os casos de artistas totalmente esquecidos durante suas vidas e que alcançam certo status “cult” décadas ou mesmo séculos depois.

Apresento-lhes o sueco Franz Berwald. Personalidade curiosíssima, sobreviveu tanto a Schubert quanto a Mendelssohn e Schumann, seus contemporâneos, sem nunca ser plenamente bem-sucedido em viver de sua música. Aliás, várias vezes ele teve de empreender em áreas bem distantes, com sucesso bem maior: ortopedia, fisioterapia, vidraçaria…

Compôs quatro sinfonias, todas com subtítulos em francês. Apenas a Primeira, dita “Sérieuse”, foi executada em sua vida. Nunca ouviu as demais. Quando já estava bem velhinho, obteve o primeiro sucesso: sua ópera “Estrella de Soria” foi montada e bem recebida. O governo sueco reconheceu seus esforços, deu-lhe uma medalha, o indicou para o Conservatório de Estocolmo e… Berwald morreu. :-/

A posteridade foi-lhe muito mais receptiva. No século 20, principalmente, suas inusitadas e originais sinfonias foram redescobertas e enfim executadas, gravadas e aplaudidas. Hoje Berwald é reconhecido como o principal compositor sueco.

Pense em um Mendelssohn cheio de arestas: bizarrices, repetições esquisitas, trechos semi-estáticos, melodias estranhas, harmonias pontiagudas… Esse é o estilo de Berwald. Sua sinfonia mais representativa é a Terceira, a “Singulière”. O mais bacana dessa obra, de 1845, é o “encapsulamento” do scherzo DENTRO do movimento lento. Fora o finale de um vigor realmente impressionante, que chega até a lembrar Brahms ou Bruckner.

Vale conhecer. É divertido pacas. Nosso amigo ortopedista, fisioterapeuta e vidraceiro sabia compor sinfonias interessantes 🙂

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O Concerto para Trompete (Concerto a Trombe Principale) de Johann Nepomuk Hummel e ficou famoso lá por 1983, quando Wynton Marsalis lançou seu LP de estreia na música erudita. Lá estava — em extraordinária interpretação — o Concerto, ao lado do de Haydn e de uma peça de Leopold Mozart. Foi ali que o conheci e jamais esqueci dele.

Hummel escreveu o Concerto para o virtuoso vienense e inventor do trompete de teclas Anton Weidinger (assim como Haydn tinha feito antes). Ele foi escrito em dezembro de 1803 e executado no dia de Ano Novo de 1804 para marcar a entrada de Hummel na orquestra da corte de Nikolaus II, Príncipe Esterházy, como sucessor de Haydn. Há lugares, principalmente no segundo movimento, onde se acredita que Weidinger alterou a música para adequá-la melhor ao instrumento. Não se sabe se falou antes com Hummel.

Originalmente esta peça foi escrita em mi maior. A peça é frequentemente executada em mi bemol maior, o que torna o dedilhado menos difícil nos trompetes modernos em mi bemol e si bemol.

O Concerto é muito bonito. Tem um Andante belíssimo, assim como o Rondó final.

Ou seja, não perca!

Ensaio da Ospa em 19/04. Na foto, o maestro Mateus Araujo com o trompetista Diogo Gomes | Foto: Vitória Proença / Ospa.

Roald Dahl reescrito: remoção de “linguagem considerada ofensiva” gera polêmica na Inglaterra

Roald Dahl reescrito: remoção de “linguagem considerada ofensiva” gera polêmica na Inglaterra

Salman Rushdie está entre os que ficaram irritados depois que algumas passagens relacionadas a peso, gênero, saúde mental e raça foram reescritas

Há um grande debate no meio cultural inglês. Críticos estão acusando a editora britânica dos clássicos livros infantis de Roald Dahl de censura depois que ela removeu a linguagem colorida de obras como A Fantástica Fábrica de Chocolate e Matilda para torná-las mais aceitáveis ​​para os leitores modernos.

Uma revisão das novas edições dos livros de Dahl estão agora disponíveis nas livrarias do país mostra que algumas passagens relacionadas a peso, saúde mental, gênero e raça foram alteradas. As mudanças feitas pela Puffin Books, uma divisão da Penguin Random House, foram relatadas primeiro pelo jornal britânico Daily Telegraph.

Augustus Gloop, o guloso antagonista de Charlie em A Fantástica Fábrica de Chocolate, publicado originalmente em 1964, não é mais “enormemente gordo”, apenas “enorme”. Na nova edição de As Bruxas, uma mulher sobrenatural se passando por uma mulher comum pode estar trabalhando como uma “cientista de ponta ou administrando um negócio”, mas não como “caixa em um supermercado ou digitando cartas para um empresário”.

A palavra “preto” foi removida da descrição dos terríveis tratores de O Fantástico Sr. Raposo. As máquinas agora são simplesmente “monstros assassinos e de aparência brutal”.

O autor vencedor do prêmio Booker, Salman Rushdie, está entre aqueles que reagiram com raiva à reescrita das palavras de Dahl. Rushdie viveu escondido por anos depois que o Aiatolá Khomeini do Irã, em 1989. emitiu uma fatwa pedindo sua morte por causa da suposta blasfêmia em seu romance Os Versos Satânicos. Ele foi atacado e gravemente ferido no ano passado em um evento no estado de Nova York.

“Roald Dahl não era um anjo, mas isso é uma censura absurda”, escreveu Rushdie no Twitter. “A Puffin Books e o espólio Dahl deveriam ter vergonha.”

As mudanças nos livros de Dahl marcam o mais recente conflito em um debate sobre a sensibilidade cultural, já que os ativistas buscam proteger os jovens dos estereótipos culturais, étnicos e de gênero na literatura e em outras mídias, e os críticos. Estes reclamam que as revisões para se adequar às sensibilidades do século 21 correm o risco de minar o gênio dos grandes artistas e impedir os leitores de confrontar o mundo como ele é.

A Roald Dahl Story Company, que controla os direitos dos livros, disse que trabalhou com Puffin para revisar os textos porque queria garantir que “as maravilhosas histórias e personagens de Dahl continuem sendo apreciados por todas as crianças hoje”.

A linguagem foi revisada em parceria com o Inclusive Minds, coletivo que trabalha para tornar a literatura infantil mais inclusiva e acessível. Quaisquer mudanças foram “pequenas e cuidadosamente consideradas”, disse a empresa.

Ele disse que a análise começou em 2020, antes de a Netflix comprar a Roald Dahl Story Company e embarcar em planos para produzir uma nova geração de filmes baseados nos livros do autor.

“Ao publicar novas tiragens de livros escritos anos atrás, não é incomum revisar a linguagem usada junto com a atualização de outros detalhes, incluindo a capa do livro e o layout da página”, disse a empresa. “Nosso princípio orientador tem sido manter as histórias, os personagens e a irreverência e o espírito afiado do texto original.”

A Puffin não quis se pronunciar.

Dahl morreu em 1990 aos 74 anos. Seus livros, que venderam mais de 300 milhões de cópias, foram traduzidos para 68 idiomas e continuam a ser lidos por crianças em todo o mundo.

Mas ele também é uma figura controversa por causa dos comentários antissemitas feitos ao longo de sua vida.

A família Dahl pediu desculpas em 2020, dizendo que reconhecia a “mágoa duradoura e compreensível causada pelas declarações antissemitas de Roald Dahl”.

Independentemente de suas falhas pessoais, os fãs dos livros de Dahl celebram seu uso de uma linguagem às vezes sombria que aborda os medos das crianças, bem como seu senso de humor.

A PEN America, uma comunidade de 7.500 escritores que defende a liberdade de expressão, disse estar “alarmada” com os relatos das mudanças nos livros de Dahl.

“Se começarmos a tentar corrigir os deslizes percebidos, em vez de permitir que os leitores recebam e reajam aos livros como estão escritos, corremos o risco de distorcer o trabalho de grandes autores e ofuscar as lentes essenciais que a literatura oferece à sociedade”, twittou Suzanne Nossel , o executivo-chefe da PEN America.

Laura Hackett, uma fã de infância de Dahl que agora é vice-editora literária do jornal londrino Sunday Times, teve uma reação mais pessoal à notícia.

“Os editores da Puffin deveriam ter vergonha da cirurgia malfeita que realizaram em algumas das melhores literaturas infantis da Grã-Bretanha”, escreveu ela. “Quanto a mim, guardarei cuidadosamente minhas antigas cópias originais das histórias de Dahl, para que um dia meus filhos possam apreciá-las em toda a sua glória colorida e desagradável.”

Contra a Realidade: A negação da ciência, suas causas e consequências, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi

Contra a Realidade: A negação da ciência, suas causas e consequências, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi

Este é o livro ideal para quem deseja saber como se forma e os efeitos deste monstro que é o negacionismo científico. Os autores têm texto enxuto, envolvente e objetivo, apesar dos muitos exemplos apresentados. Natalia Pasternak é a cientista, Carlos Orsi é o jornalista fascinado por ciência — e os dois funcionam muito bem juntos.

O livro trata do negacionismo em todos os tempos, vindo desde o clerical, que não acreditava no movimento e no “formato” da Terra, até o Covid, passando por Darwin e até pelo Holocausto, que também foi e ainda é negado por alguns. Deste modo, não é um livro apenas sobre o Covid, mas sobre vários gêneros de negacionismo.

Uma das coisas mais interessantes que são analisadas é como a indústria de cigarros negou que o tabagismo tinha ligação com o câncer nos pulmões. A história é terrível, pois as grandes empresas contratavam cientistas para colocarem tudo em dúvida. Ou seja, esses cientistas admitiam coisas aqui e ali, porém… E lançavam dúvidas no próprio meio científico. Também as negações da curvatura da Terra, das ideias de Darwin e das teorias evolucionistas são hilárias para nós, leitores, não fossem tão sérias.

Ficamos sabendo como as vacinas funcionam e que o movimento antivacina é bem antigo. Também ficam claras as motivações de quem nega o aquecimento global. E é aquilo mesmo que imaginamos e nos irrita: os negacionistas procuram gerar confusão no debate, paralisar a tomada de decisões, tomam atitudes irracionais que parecem razoáveis aos olhos dos desinformados e incentivam a consolidação de grupos ideologicamente solidários em torno de certas causas irreais.

Gostei muito das claras e bem fundamentadas argumentações dos autores de “Contra a Realidade: A negação da ciência, suas causas e consequências”. Aprendi bastante coisa e estive sempre atento ao livro.

Recomendo.

Natalia Pasternak e Carlos Orsi

O Rumor do Tempo (e Viagem à Armênia), de Óssip Mandelstam

O Rumor do Tempo (e Viagem à Armênia), de Óssip Mandelstam

Este é um livro de prosa escrito por um grande poeta. Ou, sendo mais claro, é um livro escrito por um poeta que não deixa de ser poeta, mesmo escrevendo prosa. São dois textos memorialísticos, ambos divididos em pequenos capítulos, o primeiro tratando de São Petersburgo e o segundo de uma viagem à Armênia. Tudo é muito pouco objetivo e tem altíssima voltagem lírica. É gostoso de ler mesmo sem compreender tudo — qual é o leitor experiente que vai desejar entender tudo de um escrito poético? Às vezes, parece que estamos lendo um surrealista ou um drogado…

Mandelstam (1891-1938) teve vida trágica. Era um poeta de tremendo talento, amaldiçoado por ter vivido nos dias de Stálin. Certa vez, escreveu um poema sobre o Todo Poderoso, lendo-o para seis amigos em um jantar. Dizia, entre outras coisas que o homem tinha bigode de barata. Um destes “amigos” era um informante. Preso em 1934, morreu por inanição. Depois, a KGB fez uma varredura cultural e apagou o nome de Mandelstam no país, apesar do tal poema já ter caído na boca do povo. Teoricamente, na URSS, ninguém podia saber sobre o escritor. Era terminantemente proibido. Mas você se engana se pensar que ele era engajado politicamente. Mandelstam era um poeta de formação e postura clássicas. Escreveu cerca de 600 poemas, mais ensaios autobiográficos e filosóficos, artigos de crítica literária e traduções poéticas de Mallarmé, Racine, Jules Romain, Petrarca, entre outros)”. Em posfácio, Paulo Bezerra conta que Mandelstam lia intensamente a poesia de Dante, François Villon e André Chénier. Era um artista à parte, autônomo, por isso é difícil filiá-lo a uma corrente. Mas escreveu sobre Stálin…

Fui lê-lo porque minha mulher, que é russa, tinha dito que os escritores que tinham o melhor russo eram Tolstói, Nabôkov e Mandelstam. Mas ela leu sua poesia, não traduzida no Brasil. Sei, é complicado traduzir poetas, mesmo que em prosa. Paulo Bezerra faz um belo trabalho, porém teve que apelar para mil notas de rodapé, a fim de que entendêssemos a teia das referências.

Bom e belo livro, contudo, alerto: a leitura é trabalhosa.

Mandelstam em 1938

Juca Chaves (1938-2023)

Juca Chaves (1938-2023)

Eu ria muito com Juca Chaves. Havia dois artistas naquele corpo adornado por enorme nariz — um lírico (Por quem sonha Ana Maria?) e um cômico (Dona Maria Tereza, Presidente Bossa Nova). Acho que, com o tempo, o cômico matou o lírico. Depois, a fonte secou para ambos. Isso há mais de 40 anos.

Mas lembro de minha família, nos anos 60, correndo para a frente da TV a fim de ouvi-lo cantar e destilar seu humor afiado. Ele se autodenominava O Menestrel Maldito. Só que, para mim, sumiu por décadas.

Soube hoje que, em 2015, ele foi favorável ao impeachment de Dilma. Já no ano passado, apoiou Lula.

Morreu ontem, aos 84 anos. Acho até que vou pegar um vinil dele e ouvir agora. O disco que tenho é uma coletânea de 1976, mas parece que o melhor Juca está quase todo ali.

A economia política da música clássica

A economia política da música clássica

A história da música clássica é inseparável da ascensão do capitalismo. O novo sistema possibilitou uma revolução musical, mas o seu desenvolvimento marcado por crises criou uma barreira entre os músicos e o seu público, deixando para trás uma tradição congelada. Por Simon Behrman.

No último século, a música clássica tem-se distanciado cada vez mais do público de massas ou das formas musicais populares, a ponto de se tornar o culto elitista das pessoas que vivem isoladas em uma torre de marfim. Isto não é culpa dos músicos: a sua arte é inseparável de tendências sociais e políticas mais amplas. O capitalismo, que primeiro criou um espaço onde a música podia florescer, rapidamente o destruiu e nos deixou com uma tradição morta e formalizada.

O que é a música clássica?

Quando queremos discutir o futuro da música clássica, um dos problemas que surgem é identificar o significado do termo clássica: o que a distingue do jazz, rock, hip-hop ou qualquer outro género?

Não é que se trate de música unicamente séria. Uma boa parte da “música clássica” é cómica e até mesmo disparatada. É o caso de Uma Piada Musical (1787), de Wolfgang Amadeus Mozart, e das Aventuras de György Ligeti (1962 – 1963), de György Ligeti. Na mesma medida, há muitas composições extremamente sérias que pertencem a outros géneros. Estou a pensar em muitas canções dos Beatles, que não ficam atrás do trabalho de Franz Schubert na sua intensidade e complexidade emocional e estilística.

Não há uma forma ou estilo único que se possa associar à música clássica mesmo num único período, e muito menos ao longo de vários séculos. Quando se ouve duas obras para piano, mesmo que sejam composições separadas por poucos anos – por exemplo, Klavierstücke I-XI de Karlheinz Stockhausen (1952 – 1956) e Preludes and Fugues de Dmitri Shostakovich (1950 – 1951) – é difícil discernir o que têm em comum estilisticamente. E, ainda assim, partilham a letra “S” na maior parte das lojas de música clássica.

Em vez de falar de “música clássica”, talvez fosse melhor falar de uma tradição musical europeia. Mais precisamente, embora de forma menos elegante, deve-se dizer que é uma tradição burguesa europeia/ocidental. Uma vez definido o conceito nestes termos, é muito mais fácil perceber o que todos os compositores que mencionei têm em comum.

Também é mais fácil entender a ascensão e declínio deste género musical. Em todo o caso, como “música clássica” ainda é uma expressão bem conhecida, vou usá-la de forma intercambiável com a expressão “música europeia”.

O nascimento da música europeia

A ascensão das classes médias e a expansão do tempo de lazer que têm disponível – além, é claro, do das classes altas – condicionou o surgimento da música clássica. Durante boa parte do período medieval, a música era reservada para cerimónias religiosas, festivais ou a visita ocasional de trovadores.

O nascimento da ópera na Veneza do século XVII foi principalmente um empreendimento comercial numa cidade de comércio rico. Embora fosse contratado por igrejas, Johann Sebastian Bach tinha o estatuto de artesão e aceitava frequentemente comissões privadas para compor obras. No final do século XVIII e ao longo do século XIX, muitos teatros e salas de concertos foram construídos, e muitas orquestras se estabeleceram com o apoio de vários empreendimentos comerciais.

Por exemplo, a primeira grande sala de concertos em Londres foi a Hanover Square Rooms, construída pelo empresário italiano Sir John Gallini, e dirigida em conjunto pelos compositores Johann Christian Bach (filho de Johann Sebastian) e Carl Friedrich Abel. De facto, muitas das orquestras que ainda existem, como a Gewandhaus de Leipzig, a Filarmónica de Berlim, a Filarmónica de Viena, a Filarmónica de Nova Iorque e a Sinfónica de Boston, devem a sua fundação à iniciativa de músicos com apoio de capital privado e sustentavam-se através da venda de bilhetes.

Por volta da mesma altura, surgiu o fenómeno do artista celebridade. O violinista Niccolò Pganini, o pianista Franz Liszt e a cantora Jenny Lind alcançaram fama e fortuna fazendo digressões pelo mundo inteiro e dando concertos que foram promovidos por um grande número de campanhas publicitárias.

A forma e o estilo musical também corresponderam às transformações sociais provocadas pelo nascimento do capitalismo. Podemos ouvir o estilo musical “Sturm und Drang”, associado ao período das Revoluções Francesa e Americana, manifestar-se na tensão dramática crescente da música dos filhos de Bach e Joseph Haydn. Foi Ludwig van Beethoven, cuja vida adulta foi marcada pelo turbilhão da Revolução Francesa e suas consequências, que levou o estilo à expressão mais completa.

Quando a revolução deu lugar à reação, os compositores abandonaram o estilo épico e adotaram um estilo muito mais introspetivo e pessoal, chamado de “romantismo” e audível nas obras de Robert Schumann e Frédéric Chopin. As revoluções de 1848 inspiraram os grandiosos dramas musicais de Richard Wagner. Com Tristão e Isolda, ele abriu a porta para o cromatismo e harmonias instáveis que culminariam no atonalismo do século XX.

Além de ser uma obra musicalmente revolucionária, O Anel do Nibelungo de Wagner conta uma história de transformação social, traição e ganância, muito influenciada pelas suas experiências de 1848 como participante ativo na revolução de Dresden e pelo exílio que a que derrota amarga o forçou. Da mesma forma, Giuseppe Verdi expressou a turbulência em torno do Risorgimento italiano.

Toda a música romântica tardia de Richard Strauss, Anton Bruckner e Giacomo Puccini foi montada numa escala enorme, simbolizando a suprema confiança numa Europa globalmente dominante, passando por um rápido processo de industrialização. Os concertos começaram a assumir proporções grandiosas: na estreia da Sinfonia n.º 8 de Gustav Mahler, quase mil músicos tocaram, e havia mais de três mil pessoas na plateia.

Colapso

Social e musicalmente, algo tinha de ceder. O rápido desenvolvimento das potências europeias e a sua competição imperialista levaram às duas guerras mundiais e às crises e revoluções que as separaram. As estruturas musicais cada vez mais longas e complexas também começaram a desmoronar devido às suas contradições internas.

À medida que os centros tonais se tornaram cada vez mais esticados e menos facilmente reconhecíveis, a unidade começou a desintegrar-se. Formas clássicas, como a estrutura tripartida da sonata allegro, que tinha sido a âncora da música por mais de 150 anos, estavam estafadas e muitas vezes mal discerníveis nas composições, se é que os compositores sequer as utilizavam.

Pode-se tentar ignorar isto e concentrar-se ao invés num ritmo de harmonias grandiosas e exuberantes que ainda remedeiam. É a abordagem que caracteriza a música de Edward Elgar e Erich Korngold. Mas embora em muitos casos estas obras fossem bastante boas, não levavam a nada em termos do desenvolvimento da tradição musical ou de resposta a novos sons e mudanças sociais. De facto, a música desses compositores é definida por um anseio das certezas da Europa pré-guerra.

No entanto, houve outros que aceitaram os desafios da época. Já em alguns dos últimos trabalhos de Mahler é possível ouvir a antecipação de um mundo pós-tonal e pós-clássico. Por exemplo, o primeiro movimento da sua última sinfonia, a Nona, tem muito mais elementos em comum com o modernismo do século XX do que com o romantismo do século XIX. A geração mais jovem inspirada por Mahler conduziu a música europeia numa direção que a moldaria para os próximos cem anos.

Em Pierrot lunar (1912), Arnold Schönberg abandonou completamente o tonalismo. Neste trabalho ele também desenvolveu o “Sprechstimme”, uma forma de cantar muito mais próxima do discurso natural e, consequentemente, exibindo um estilo mais simples do que o canto tradicional. Este trabalho, que influenciou toda a música europeia posterior, expressa um certo deslocamento, um estado de grande ansiedade e um sentimento de desorientação, refletindo assim perfeitamente as crises sociais do seu tempo.

A música na era das catástrofes

A ascensão do fascismo e do estalinismo representaram mais golpes na música europeia. Estes regimes suprimiram o novo estilo atonal cujo pioneiro tinha sido Schönberg, e promoveram em seu lugar um retorno kitsch ao grande romantismo. Na minha opinião, foi durante este período que a música europeia enquanto tradição viva foi morta. Não foi uma morte súbita mas um veneno que foi injetado na relação desta música com a sociedade e que foi amplamente responsável pela sua marginalização atual.

Enquanto permaneceu ancorada na sociedade burguesa europeia, foi continuamente renovada e desenvolvida através da sua relação com formas mais mundanas: primeiro a música e danças folclóricas, depois os espirituais afro-americanos, o jazz, a sonoridade da música japonesa, as músicas pop de Tin Pan Alley e a percussão africana e muito mais. Talvez não tenha havido uma década mais excitante na música do que a dos anos 1920, quando todas estas influências podiam ser ouvidas nas obras de compositores como Igor Stravinsky, Béla Bartók, George Gershwin e Maurice Ravel, entre outros.

Mas o nazismo proibiu a “música degenerada” e as trombetas do “realismo socialista” na URSS de Estaline abafaram estes desenvolvimentos, dispersando muitos dos seus protagonistas dos anos 1920 num exílio real ou forçando-os a um exílio simbólico no qual tinham que reprimir os seus instintos artísticos. Tomemos o exemplo do compositor alemão Paul Hindemith, que compôs algumas das obras mais idiossincráticas e extraordinárias dos anos 20, nas quais se pode ouvir a influência do jazz, um certo atonalismo e até mesmo música eletrónica. Embora ele tentasse resistir ao nazismo com obras como sua ópera a Mathis der Maler (1934), as suas composições foram rapidamente censuradas. Foi ao exílio nos Estados Unidos, onde a sua música perdeu o seu dinamismo e retirou-se para um formalismo académico aborrecido.

Quando chega 1945, muitos dos compositores mais importantes do período anterior estavam mortos (Bartók, Gershwin, Alban Berg, Anton Webern), enfrentavam o exílio solitário (Stravinsky, Schönberg) ou a trabalhar sob condições repressivas (Shostakovich, Sergei Prokofiev). Uma geração mais jovem de pessoas com os seus vinte e poucos anos estava a emergir cujas vidas tinham sido duramente marcadas pelo fascismo e pela guerra. Os nazis tinham assassinado a mãe de Stockhausen como parte do seu programa de eutanásia, enquanto o seu pai, um nazi entusiástico, tinha morrido a lutar na Frente Leste. O pai de Hans Werner Henze era também um nazi que morreu em combate, e o próprio Henze tinha sido recrutado para o exército alemão e terminado a guerra num campo de prisioneiros de guerra.

Aqueles que vinham de outros países também passaram por momentos difíceis durante esses anos terríveis. Luciano Berio teve que servir no exército italiano: uma ferida de guerra na sua mão pôs um fim nas suas esperanças de ter uma carreira de pianista. Ligeti, um judeu húngaro, perdeu quase toda a sua família em Auschwitz. Iannis Xenakis perdeu metade do seu rosto após ter sido baleado por um tanque britânico enquanto lutava ao lado de guerrilheiros comunistas gregos depois da libertação de Atenas.

A música composta por tais figuras nos anos 50 e 60 foi fortemente experimental, explorando muitas vezes novas tecnologias como a gravação e edição de cassetes e as possibilidades acrescidas de manipulação de sons eletrónicos. E eles também rejeitaram, às vezes quase fanaticamente, qualquer indício de forma ou tonalidade clássica. Em grande parte isto foi uma reação contra a instrumentalização da música clássica e romântica como arma cultural pelo fascismo.

Stockhausen disse certa vez que tinha um ódio da música no tempo 4/4 porque ela evocava memórias da música de marcha interminável tocada nas rádios durante a guerra. Pierre Boulez escreveu que todas as formas de sentimentalismo tinham que ser banidas da música. Isto ia ao encontro do argumento do filósofo Theodor Adorno de que a grande tradição musical tinha trazido uma espécie de brilhantismo cultural ao fascismo.

Perdendo o contacto

Dadas as suas experiências formativas de vida e os obstáculos enfrentados pela música europeia tal como a encontraram em 1945, não é surpreendente que grande parte do trabalho destes compositores tenha acabado por ser muito adstringente. Era chocante para o ouvido e para a sensibilidade e uma experiência alienante e desagradável para muitos ouvintes.

Alguns compositores, como Henze, recuaram e tentaram recuperar algo do tonalismo e formas clássicas. Outros acreditavam que o objetivo era precisamente chocar e perturbar o público. Eles acreditavam que era uma forma de imunizar tanto a sua arte quanto os ouvintes contra a sedução de qualquer sentimentalismo que pudesse ser apropriado para fins políticos autoritários, ou, no contexto do pós-guerra, pela imparável mercantilização da cultura.

Contudo, esta posição arriscava deslizar facilmente para o elitismo, resumido por Milton Babbit num artigo de 1958 no High Fidelity, “O que importa se alguém ouve?” O título pretendia ser um pouco cómico, mas o ensaio de Babbit avançava um argumento sério: a única maneira de um músico manter sua integridade artística face à cultura populista é retirar-se do mundo comercial e garantir que suas obras tenham “pouco ou nenhum valor de mercado”.

Durante as décadas seguintes, foram o jazz e a música popular a assumir o desafio da experimentação sem abandonar a perspetiva de conquistar um público de massa. Em contraste, a música clássica foi reduzida a uma de duas coisas: ou um museu do passado onde músicos com trajes vitorianos tocam em salões luxuosos, favorecendo a ideologia da alta cultura e do bom gosto dos ouvintes, ou então um modernismo resolutamente sério que desafia o público a viver à altura da sua alta intelectualidade.

Em ambos os casos, a tradição da música europeia estava a abandonar em grande medida qualquer desejo ou esperança de conquistar uma renovada relevância popular para uma audiência de massas. Em vez de uma arte viva, estava a tornar-se um significante cultural e social de refinamento e de elitismo.

E quando houve tentativas de se dirigir a um público mais amplo, assumiram frequentemente as formas mais triviais e comerciais. Exemplos deste fenómeno incluem aqueles tenores inflados pela publicidade que cobram salários excessivos por cantar antigos sucessos de ópera italiana usando microfones em estádios gigantescos ou o assustador marketing de jovens violinistas com imagens sexualizadas nas suas capas de álbum.

Fora do tempo

Também para o público, num mundo de capitalismo tardio com os seus cultos de estilos de vida hiper-comercializados, junto com a diminuição do tempo de lazer, quando muitos de nós trabalhamos mais duramente e mais tempo por menos dinheiro, o tipo de espaço psicológico necessário para desfrutar da música clássica também está a diminuir consideravelmente. Uma das características que muitas vezes distingue a música clássica de outros géneros é a extensão das suas composições. Em comparação com a música medieval, mas também com a música popular moderna, as obras clássicas são significativamente mais longas.

A Sinfonia nº 2 de Aaron Copland (1993), apelidada de “Sinfonia Curta”, dura quinze minutos (ou seja, mais do que quase todas as canções pop e a maioria das composições de jazz). Uma sonata clássica, quarteto ou sinfonia típica dura cerca de trinta minutos, até mais. No limite máximo, uma apresentação da Sinfonia nº 3 (1896) de Mahler dura quase cento e dez minutos, enquanto o Quarteto de Cordas n.º 2 (1983) requer quase seis horas de escuta.

Além do comprimento, esta música requer um alto nível de concentração e compromisso que muitos de nós não podemos permitir. À medida que o ritmo da vida social acelera, o tempo livre reduz-se. É cada vez mais comum as pessoas usarem o pouco tempo livre que lhes resta para descansar, relaxar e recuperar, ao invés de se envolverem num exercício de intensa concentração. A música pop de cinco minutos é muito mais digerível do que uma peça de música abstrata de uma hora.

De facto, como alguém que escuta regularmente música clássica enquanto viaja nos transportes públicos – geralmente o único momento livre que encontro num dia de trabalho – tenho que dizer que muitas vezes fico frustrado por não ter tempo suficiente para ouvir um trabalho completo. Acabo escolhendo obras mais curtas ou partes individuais de um trabalho maior.

Além disso, como não estou estritamente focado na música, mas a fazer outras coisas ao mesmo tempo, tendo a recair em trabalhos com os quais tenho alguma familiaridade. Basicamente, estas limitações forçam-me a replicar a típica abordagem compactada da rádio de música clássica, ou seja, ouvir clássicos já gastos.

Em resumo, podemos traçar a ascensão e queda da música clássica ou europeia enquanto forma de arte de massas ao longo de um arco histórico. Vai de um período de oportunidades revolucionárias abertas pela ascensão do capitalismo no século XVII, passa pelas crises profundas do século XX e termina com a degeneração da burguesia e do espaço disponível para a vida cultural que reina no presente.

Do rio para o delta

Há um aspeto mais positivo da crescente marginalização da música europeia. Formas musicais que o imperialismo europeu ea sua arrogância cultural tinham marginalizado capturam agora a imaginação de pessoas em todo o mundo, mesmo no Norte Global.

O vanguardista John Cage disse numa altura:

Vivemos numa época em que a cultura não responde a uma corrente dominante, mas a muitas correntes, se insistirmos na imagem de um rio do tempo, podemos dizer que alcançámos o delta, ou ainda mais longe, o oceano.

Ele dizia isso como uma reflexão positiva sobre o declínio da dominação das formas clássicas, da tonalidade, ou, no seu caso, até das expectativas tradicionais sobre a pauta e o som musical. Outros, contudo, pensam que isto significa a morte do que eles consideram música “séria”, ou melhor, a perda da música clássica como o núcleo do que invocamos quando pensamos sobre música.

Pela minha parte, estou do lado de Cage, no sentido em que penso que a proliferação de formas e estilos musicais é basicamente um elemento positivo. A hegemonia da tradição clássica na música era também a hegemonia de uma cultura europeia branca que supostamente representava o auge da arte civilizada. O desenvolvimento do jazz e do rock permitiu reconhecer o valor dos ritmos e sons africanos e negros. Desde então, a influência da música latina, ou os sons da cítara e do tambor metálico, continuaram a expandir a paleta auricular que acessamos e desfrutamos.

Boulez lembrava que durante uma viagem de juventude às Caraíbas e à América do Sul ele tinha descoberto a música espiritual do Candomblé, uma religião associada aos descendentes dos escravos negros no Brasil. Os sons destas regiões encontraram caminho em muitas das suas obras, desde Le Marteau sans maître (1955) até Sur Incises (1998).

Em períodos anteriores, a música clássica costumava estar aberta a tais influências. Mas hoje em dia procurou isolar-se delas. Recentemente houve uma espécie de histeria quando foi anunciada a nomeação do Grammy na categoria de música clássica para Jon Batiste e Curtis Stewart, dois negros que usam música popular, jazz e técnicas de blues nas suas composições para além das clássicas. Os gritos de fúria tinham um caráter abertamente elitista e também, mais subtilmente, racista.

Isto não quer dizer que as portas estão completamente fechadas. Os minimalistas americanos como Steve Reich e Philip Glass acolhem a influência da percussão africana e as canções de David Bowie, respetivamente. Julius Eastman, um compositor afro-americano negligenciado durante muito tempo, conseguiu uma fusão estimulante de minimalismo, ritmos pop e atonalismo. Os compositores britânicos Mark-Anthony Turnage e Thomas Adès fazem experiências com ska e outros estilos populares, enquanto o Concerto para Turntables de Gabriel Prokofiev (2006) tenta comunicar tradições musicais de diferentes épocas.

Batiste e Stewart, cujas nomeações despertaram tanta fúria na música clássica snobe, são músicos enraizados na tradição clássica, altamente talentosos, mas ainda assim em contacto com formas populares. Por exemplo, o álbum Of Colours (2016) de Stewart inclui uma reinterpretação jazzística estonteante de Quatro Peças para Violino e Piano de Anton Webern (1919).

De igual forma, os programas de concertos e gravações ainda são dominados pela música composta há cem ou duzentos anos. A maioria dos compositores da tradição clássica ou da tradição europeia trabalha hoje em dia com formas que têm muitas décadas ou séculos. Poucos se relacionam diretamente com formas contemporâneas de música popular no sentido que Haydn fez com seus minuetos, Maher e Bartók com o folclore ou Stravinsky com o jazz.

Recentemente houve algumas tentativas de recuperar as obras de compositores negligenciados pelo seu género ou raça. Assim, trabalhos de grandes compositores como Eastman, Ruth Grips e Florence Price, estão finalmente a ser reconhecidos e a ajudar a refrescar o reportório. Apesar de tudo, continua-se sobretudo a escavar o passado. Resumindo, o termo “clássico” acabou por denotar uma tradição que em termos gerais já deixou de imaginar o que poderia ser mas em vez disso se tenta agarrara ao que era.

.oOo.

Simon Behrman é autor de “Shostakovich: Socialism, Stalin & Symphonies”.

Traduzido por Gercyane Oliveira para a Jacobin Brasil. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

Bom dia, Mano Menezes

Bom dia, Mano Menezes

Como sou jornalista, jamais minto para meus 6 leitores. Deste modo, dir-lhes-ei AGORA toda a verdade.

No início de 2022, Mano Menezes foi abduzido. Você é inteligente, então não preciso escrever bobagens como “abduzido por extraterrestres”. Em seu lugar, foi colocado um androide de inteligência superior. E o Mano não-humano, o Não Mano, o InuMano, por assim dizer, chegou a escalar Pedro Henrique, Alemão (depois Romero) e Wanderson no ataque CONTRA O PALMEIRAS. O jogo acabou 3 x 0 para nós. Só que aquele não era Mano, claro. Imaginem que ele chegou a deixar Edenílson na reserva! Isto prova inequivocamente que se tratava de um androide!

No início deste ano, acabou a experiência alienígena. Eles devolveram o Mano humano, aquele que nem toneladas de Imosec cura a diarreia. Sim, devolveram o c@gão. O que não tem volantes bons e então escala dois, como se a soma de dois ruins resultasse em um bom. Para comprovar, experimentem colocar dois cantores ruins cantando.

Nosso presidente foi enganado: renovou o contrato do Mano Inumano e recebeu um Mano com soltura intestinal. Esqueçam aquele Mano aventureiro que só queria a beleza e o sonho no futebol. Aquele era o androide.

E não briguem com a notícia — não minto.

Abaixo, uma foto do androide de 2022. Saudades dele!

O InuMano foi visto recentemente tocando guitarra no grupo Metallica.

Minha lista dos dez melhores jogadores de futebol de todos os tempos

As dez primeiras posições ficaram com 6 latino-americanos e 4 europeus. Não vou botar em ordem para evitar a briga entre pelezistas, messistas, maradonistas e croifistas.

Di Stefano
Garrincha
Maradona
Messi
Pelé
Ronaldo Fenômeno

Beckenbauer
Best
Cruyff
Zidane

Procurei utilizar nomes de caras que costumam “desaparecer” das listas, mas que acho cracaços. Gente como Scholes, Rivelino, Bremner, Bochini e Rivaldo, por exemplo. Não deu…

Mayhem cancelado em Porto Alegre

Mayhem cancelado em Porto Alegre

Pois o show dos noruegueses do Mayhem no Opinião foi cancelado. Eu desconhecia a banda até hoje, quando vi as faixas de repúdio na frente da tradicional casa de espetáculos.

Fui ler a respeito dos caras. Primeiro, um membro do grupo se matou estourando os miolos. Os detalhes do cérebro aos pedaços estão bem descritos. Tudo porque, antes de avisar a polícia da ocorrência, seu colega preferiu fotografar longamente o morto para a capa do próximo disco.

O grupo cultua a morte, algo bem fascista.

Tem mais. O líder do grupo e guitarrista principal foi assassinado a facadas (muitas) pelo baixista, que permaneceu preso por 16 anos. Há descrições deste assassinato como se fosse uma obra de arte. Em determinado momento, a faca ficou enfiada no crânio e não saía, imaginem que bacana… Hoje, já livre, este baixista está em outra banda do gênero.

É muito engajamento. Seus shows às vezes têm animais mortos, cabeças de porcos, etc. Os temas são satanismo e morte, coisa de adolescente revoltado + perturbado.

Claro, em determinado momento apareceram símbolos nazistas.

Fui ouvir o grupo e eles não são nada muito diferentes do pouco que ouvi do Black Metal.
Se não fossem os símbolos nazistas, eu aprovaria o show. Afinal, como darwinista, sou fã da seleção natural.

Em 8 de abril de 1991, Dead cometeu suicídio. Cortou os pulsos e atirou contra sua cabeça com uma espingarda. Deixou um bilhete se desculpando pelo sangue. Seu corpo foi encontrado pelo guitarrista Euronymous que não chamou a polícia: resolveu fotografar o cadáver de Dead e usar as imagens na capa de uma álbum futuro, no caso, do bootleg Dawn of the Black Hearts (1995).

A Promessa, de Damon Galgut

A Promessa, de Damon Galgut

Vou escrever sobre uma autêntica obra-prima. Este livro venceu o Booker Prize de 2021. No Brasil, para nossa sorte, A Promessa recebeu cuidadoso tratamento do tradutor, escritor e professor Caetano Galindo. Depois das primeiras dez páginas, ele se torna de fácil leitura, porém não é um livro simples de traduzir. Como Machado de Assis, o autor fala com o leitor, mas também fala ou faz perguntas aos personagens. Como Machado, o livro fala-nos de coisas trágicas e de assuntos profudamente graves, mas tem momentos hilariantes. Os diálogos não são sinalizados, só que a gente se acostuma logo.

Posso dizer qual é a tal promessa do título sem receio de dar spoilers — o primeiro capítulo já denuncia qual é a promessa. O romance de Galgut mostra o declínio de uma família branca durante a transição da África do Sul para o fim do apartheid. Tudo começa em 1986, com a morte de Rachel, uma judia de 40 anos e mãe de três filhos, em uma pequena propriedade nos arredores de Pretória. A história gira em torno de uma promessa que seu marido africâner, Manie, fez a Rachel antes de morrer, e que foi ouvida por sua filha mais nova, chamada Amor: a promessa era que Manie daria à empregada negra da família, Salomé, a propriedade do anexo que ela ocupava. Ou seja, daria a Salomé a casa aos pedaços onde ela morou toda sua vida. Agora que Rachel está morta, Manie aparentemente esqueceu do prometido. O resto da família considera ridícula a teimosa insistência de Amor de que Salomé deveria ser dona de sua casa. Seria aquele tipo de conversa que “agora parece ter infectado todo o país”?

O descumprimento da promessa parece cair como uma maldição enquanto seguimos os filhos e o pai ao longo das décadas. Cada um dos 4 capítulos narram episódios em intervalos de aproximadamente 10 anos e cada um tem o nome de um membro da família. A estrutura escolhida por Galgut sugere uma fábula — o nome dos capítulos, a frequência de 10 em 10 anos, as próprias ocorrências de cada capítulo. E Amor foi atingida por um raio quando criança! É uma abordagem arriscada, visto que o apartheid e suas consequências são cruéis o suficiente para que esse tipo de ficcionalização pareça condescendente. No entanto, a África do Sul — com escândalos absurdos, esperanças frustradas e corrupção constante — é uma tragédia pronta. Desprezando o realismo inabalável como veículo suficiente para transmitir o peso da história, A Promessa oferece uma narrativa que só é igualada no surrealismo pelos próprios fatos. Na África do Sul, sugere Galgut, a arte só pode esperar imitar a vida. Conheço outro país que… Bem, deixa pra lá. A decisão de abrir o romance com uma citação de Fellini é sensata.

Hoje cedo eu encontrei uma mulher de nariz dourado. Ela vinha num cadillac, abraçada em um macaco.  O motorista parou e ela me perguntou: “O senhor é Fellini?”. E prosseguiu com voz metálica. “Por que é que nos seus filmes ninguém é normal?”.

Federico Fellini

Galgut também é dramaturgo e intromete-se nos eventos para oferecer julgamentos. Para alguns fatos, ele nega o “isso tem dois lados”. Não tem. Ele nos envolve — e como! — com frequentes apartes. “Devemos dizer…”, “vamos fingir…”. O leitor nunca se sente confortável o suficiente para esquecer que esta é uma história. A recusa de Galgut em permitir que o normal das narrativas flua, sua insistência em desnudar as maquinações da ficção, revelando as pessoas como símbolos e o lugar como cenário, chama a atenção do leitor para o absurdo.

O tom variado e muito debochado de Galgut nos engana muito. Quando parece que fala sério, ele diz que tal coisa “é palpável como um peido secreto”. As cenas com o novo amante da irmã de Amor, Astrid, são engraçadíssimas. A desprogramada narração em terceira pessoa dispara entre os personagens. No meio do parágrafo ou mesmo no meio da frase, mergulhando na ação para detalhar os medos secretos de alguém, por exemplo, o autor pode nos informar de novos fatos. “Você entendeu”, diz o narrador, impaciente.

Do fantasma de Rachel às palavras de uma oração de luto, pouco está fora dos limites do narrador, que se dirige a um leitor africânder implícito cujos supostos preconceitos são citados como forma de desculpa pelas ênfases do livro — em um ponto ele nos diz que não ouvimos muito sobre Salomé porque não nos importamos em perguntar… Galgut emprega todos estes truques no livro, mas está  extremamente atento à complexidade emocional do que narra.

Sim, apesar de todas as suas tendências satíricas, este não é um livro que nos deixe confortável, até porque a má fé de Manie não é a única coisa que mina sua promessa. No momento em que o livro começa, a lei sul-africana diz que Salomé não pode ser proprietária da propriedade, mesmo que a família quisesse. As páginas finais, com Amor já madura, são espetaculares. A capa do livro nos diz que Galgut é “Um dos maiores escritores do mundo”. Olha, não deve estar longe disso.

Em resumo, A Promessa, de Damon Galgut, é um raro exemplo de romance que combina uma visão política e histórica com uma estrutura literária brilhante. Mostrando as mudanças dentro de uma família, o livro captura muito mais sobre uma realidade social deplorável do que quaisquer livros de história ou notícias de jornal que você tenha lido. Ele realmente arranha e mete suas garras na realidade.

Um tremendo livro. Recomendo muito.

Damon Galgut (1963)

A Ospa dá seu primeiro (e ótimo) concerto de 2023. E músicos fazem protesto

A Ospa dá seu primeiro (e ótimo) concerto de 2023. E músicos fazem protesto

O primeiro concerto da Ospa deste ano foi extremamente promissor. Casa lotada e a orquestra tocando realmente muito bem. Sem exagero, talvez o concerto de ontem tenha mostrado a melhor Ospa que vi nos últimos anos.

Tudo está puxando a qualidade da orquestra para cima: a presença dos novos concursados, a atuação do maestro Evandro Matté, a necessidade de se mostrar altamente profissional mesmo sem o reajuste do valor da manutenção dos instrumentos desde 2012. Sabem que os instrumentos são de propriedade dos músicos, assim como a obrigação de mantê-los? Sabem que tudo é em dólares e euros?

Antes do concerto, houve a leitura de uma carta muito madura e digna cobrando o estado. Foi aplaudida de pé pelo público presente na Casa da Ospa, mas não apareceu na transmissão pelo YouTube, me contaram.

Voltando ao concerto, digo que aquilo que me entrou pelos ouvidos ontem foi sensacional. O desempenho em “Um Americano em ParisUm Americano em Paris” não foi nada esquecível. As duas obras de Villa-Lobos, idem.

Há coisas diferentes na programação deste ano. A Sinfonia Singular de Berwald é uma delas. Finalmente, teremos Haydn de volta, apesar de que poderíamos ter mais do que apenas a 104. Também virá a raramente executada Sinfonia Nº 1 de Shostakovich, que é linda. Teremos também a 5ª e a 9ª do compositor. Idem para o Concerto para Orquestra de Bartók e o Concerto para Piano Nª 1 de Brahms. Tem também a Sinfonia Nº 1 de Mahler. Mas não tem Bruckner, o que é lamentável. Mas fazer o quê? Fica pra 2024…

Vida longa a esta grande orquestra!

Obs.: a foto foi roubada de Max Uriarte.

Atrás do balcão da Bamboletras (XLVII)

Atrás do balcão da Bamboletras (XLVII)

Vocês sabem o motivo do nome Bamboletras? Pois é, vem de bambolê das letras. Sim, nossa livraria foi concebida por sua grande fundadora Lu Vilella como dedicada à literatura infantil. Depois ela estendeu a curadoria para os pais dos pequenos e o resto vocês sabem.

Durante nossos quase 28 anos — fazemos aniversário em abril — e até hoje, mantivemos especial cuidado com a área de infantis.

Vejam a querida vovó Jussara Musse com nossa cliente Isabel (5 meses) em foto desta semana. Assim se fazem leitores, mesmo que no começo eles estejam mais interessados em morder os livros…

Outro dia, publicaremos uma foto da irmã gêmea da Isabel, a Beatriz. Não queremos semear ciúmes entre as meninas e nem críticas da mamãe Carolina Musse Branco!

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Cat Stevens e Rick Wakeman: uma historinha para vocês

Cat Stevens e Rick Wakeman: uma historinha para vocês

Cat Stevens, atual Yusuf Islam, estava gravando seu LP Teaser and the Firecat quando ouviu Rick Wakeman na sala ao lado, ensaiando Catherine, que faria parte de seu As Seis Esposas de Henrique VIII.

Gostou do que ouviu e foi falar com ele. Na verdade, era um pedido. Disse para Wakeman que pretendia colocar o tradicional hino religioso Morning has broken em seu novo disco, mas que precisava de uma introdução com piano, algo parecido com a Catherine que recém ouvira.

Wakeman foi generoso. Logo fez e tocou a variação que ouvimos até hoje na famosa canção do disco de Stevens e a produção prometeu-lhe pagar 10 libras pelo trabalho, que era o habitual na época.

40 anos depois, um jornalista perguntou a Wakeman qual era a maior mágoa que vivenciara em sua longa carreira, pensando que certamente ele contaria alguma coisa relacionada às muitas brigas que tivera em seus tempos de Yes.

Mas Wakeman surpreendeu dizendo que sua maior mágoa tinha sido o fato de não ter sido creditado como o pianista que realizou o solo de Morning has broken. Também isto era comum na época. O artista principal comprava o trabalho de outro secundário no disco e o trabalho passava a ser dele — que nem lhe dava o crédito. Por exemplo, hoje todos sabem que Eric Clapton fez o solo de While my guitar gently weeps, mas nada está disso está escrito no White Album e Clapton já era Clapton naquela altura. Também pouca gente sabe quem participava dos primeiros discos de Chico Buarque… Mas havia mais para a mágoa de Wakeman, até hoje ele estava esperando as tais 10 libras.

Cat Stevens soube da reclamação e não apenas mandou creditar Wakeman nas novas edições do disco como pagou as 10 libras e o lucro correspondente ao trabalho dele e dos outros músicos. Pagou uma pequena fortuna a todos.

Amigos: Cat Stevens e Rick Wakeman num show em 2020

 

Saramago

Saramago

Como Saramago respondeu a pergunta “O senhor é socialista?”:

“Ah, claro, inteiramente. Aliás, eu acho que o socialismo é uma doutrina totalmente triunfante no mundo. E não é paradoxo. O que é o socialismo? É o irmão-gêmeo do capitalismo, nasceram juntos, na revolução industrial. É indescritível o que era a indústria no começo. Os operários ingleses dormiam debaixo da máquina e eram acordados de madrugada com o chicote do contramestre. Isso era a indústria. Aí começou a aparecer o socialismo. Chamo de socialismo todas as tendências que dizem que o homem tem que caminhar para a igualdade e ele é o criador de riquezas e não pode ser explorado. Comunismo, socialismo democrático, anarquismo, solidarismo, cristianismo social, cooperativismo… tudo isso. Esse pessoal começou a lutar, para o operário não ser mais chicoteado, depois para não trabalhar mais que doze horas, depois para não trabalhar mais que dez, oito; para a mulher grávida não ter que trabalhar, para os trabalhadores terem férias, para ter escola para as crianças. Coisas que hoje são banais. Hoje é normal o operário trabalhar oito horas, ter férias… tudo é conquista do socialismo.”

José Saramago