Roald Dahl reescrito: remoção de “linguagem considerada ofensiva” gera polêmica na Inglaterra

Roald Dahl reescrito: remoção de “linguagem considerada ofensiva” gera polêmica na Inglaterra

Salman Rushdie está entre os que ficaram irritados depois que algumas passagens relacionadas a peso, gênero, saúde mental e raça foram reescritas

Há um grande debate no meio cultural inglês. Críticos estão acusando a editora britânica dos clássicos livros infantis de Roald Dahl de censura depois que ela removeu a linguagem colorida de obras como A Fantástica Fábrica de Chocolate e Matilda para torná-las mais aceitáveis ​​para os leitores modernos.

Uma revisão das novas edições dos livros de Dahl estão agora disponíveis nas livrarias do país mostra que algumas passagens relacionadas a peso, saúde mental, gênero e raça foram alteradas. As mudanças feitas pela Puffin Books, uma divisão da Penguin Random House, foram relatadas primeiro pelo jornal britânico Daily Telegraph.

Augustus Gloop, o guloso antagonista de Charlie em A Fantástica Fábrica de Chocolate, publicado originalmente em 1964, não é mais “enormemente gordo”, apenas “enorme”. Na nova edição de As Bruxas, uma mulher sobrenatural se passando por uma mulher comum pode estar trabalhando como uma “cientista de ponta ou administrando um negócio”, mas não como “caixa em um supermercado ou digitando cartas para um empresário”.

A palavra “preto” foi removida da descrição dos terríveis tratores de O Fantástico Sr. Raposo. As máquinas agora são simplesmente “monstros assassinos e de aparência brutal”.

O autor vencedor do prêmio Booker, Salman Rushdie, está entre aqueles que reagiram com raiva à reescrita das palavras de Dahl. Rushdie viveu escondido por anos depois que o Aiatolá Khomeini do Irã, em 1989. emitiu uma fatwa pedindo sua morte por causa da suposta blasfêmia em seu romance Os Versos Satânicos. Ele foi atacado e gravemente ferido no ano passado em um evento no estado de Nova York.

“Roald Dahl não era um anjo, mas isso é uma censura absurda”, escreveu Rushdie no Twitter. “A Puffin Books e o espólio Dahl deveriam ter vergonha.”

As mudanças nos livros de Dahl marcam o mais recente conflito em um debate sobre a sensibilidade cultural, já que os ativistas buscam proteger os jovens dos estereótipos culturais, étnicos e de gênero na literatura e em outras mídias, e os críticos. Estes reclamam que as revisões para se adequar às sensibilidades do século 21 correm o risco de minar o gênio dos grandes artistas e impedir os leitores de confrontar o mundo como ele é.

A Roald Dahl Story Company, que controla os direitos dos livros, disse que trabalhou com Puffin para revisar os textos porque queria garantir que “as maravilhosas histórias e personagens de Dahl continuem sendo apreciados por todas as crianças hoje”.

A linguagem foi revisada em parceria com o Inclusive Minds, coletivo que trabalha para tornar a literatura infantil mais inclusiva e acessível. Quaisquer mudanças foram “pequenas e cuidadosamente consideradas”, disse a empresa.

Ele disse que a análise começou em 2020, antes de a Netflix comprar a Roald Dahl Story Company e embarcar em planos para produzir uma nova geração de filmes baseados nos livros do autor.

“Ao publicar novas tiragens de livros escritos anos atrás, não é incomum revisar a linguagem usada junto com a atualização de outros detalhes, incluindo a capa do livro e o layout da página”, disse a empresa. “Nosso princípio orientador tem sido manter as histórias, os personagens e a irreverência e o espírito afiado do texto original.”

A Puffin não quis se pronunciar.

Dahl morreu em 1990 aos 74 anos. Seus livros, que venderam mais de 300 milhões de cópias, foram traduzidos para 68 idiomas e continuam a ser lidos por crianças em todo o mundo.

Mas ele também é uma figura controversa por causa dos comentários antissemitas feitos ao longo de sua vida.

A família Dahl pediu desculpas em 2020, dizendo que reconhecia a “mágoa duradoura e compreensível causada pelas declarações antissemitas de Roald Dahl”.

Independentemente de suas falhas pessoais, os fãs dos livros de Dahl celebram seu uso de uma linguagem às vezes sombria que aborda os medos das crianças, bem como seu senso de humor.

A PEN America, uma comunidade de 7.500 escritores que defende a liberdade de expressão, disse estar “alarmada” com os relatos das mudanças nos livros de Dahl.

“Se começarmos a tentar corrigir os deslizes percebidos, em vez de permitir que os leitores recebam e reajam aos livros como estão escritos, corremos o risco de distorcer o trabalho de grandes autores e ofuscar as lentes essenciais que a literatura oferece à sociedade”, twittou Suzanne Nossel , o executivo-chefe da PEN America.

Laura Hackett, uma fã de infância de Dahl que agora é vice-editora literária do jornal londrino Sunday Times, teve uma reação mais pessoal à notícia.

“Os editores da Puffin deveriam ter vergonha da cirurgia malfeita que realizaram em algumas das melhores literaturas infantis da Grã-Bretanha”, escreveu ela. “Quanto a mim, guardarei cuidadosamente minhas antigas cópias originais das histórias de Dahl, para que um dia meus filhos possam apreciá-las em toda a sua glória colorida e desagradável.”

Os mais vendidos de junho na Bamboletras

Os mais vendidos de junho na Bamboletras

Os mais vendidos na Bamboletras no mês de junho 🤩

1 – Querido Lula: cartas a um presidente na prisão, de Maud Chirio (Boitempo)
2 – O Avesso da Pele, de Jeferson Tenório (Companhia das Letras)
3 – Os Supridores, de José Falero (Todavia)
4 – A Boa Sorte, de Rosa Montero (Todavia)
5 – Escravidão vol. 3, de Laurentino Gomes (Globo Livros)
6 – Violeta, de Isabel Allende (Bertrand Brasil)
7 – Gabo & Mercedes: uma despedida, de Rodrigo García (Record)
8 – Ulysses, de James Joyce (Penguin)
9 – Tudo é rio, de Carla Madeira (Record)
10 – Com quantos rabinos se faz um Raimundo, de Nurit Bensusan (Confraria do Vento)

Bamboletras recomenda bailes, cientistas e Joyce

Bamboletras recomenda bailes, cientistas e Joyce

A newsletter desta quarta-feira da Bamboletras.

Benjamin Labatut (1980)

Olá!

Três livros bem diferentes. Sem bossa não há quem possa descreve os antigos bailes do interior e seus causos. Quando deixamos de entender o mundo é um grande sucesso editorial ao perfilar cientistas que perderam a razão (Karl Schwarzschild, Erwin Schrödinger, Werner Heisenberger e outros). O livro tem mais ou menos a mesma proporção de ficção e não ficção. A ficção aponta a estranheza, a ambiguidade, que a História, a ciência e a não ficção não admitem.  Já Exílios e Poemas é uma demonstração do talento poético e da dramaturgia de James Joyce. Sim, foi muito difícil encontrar algo que una estes livro que não seja a (alta) qualidade.

Uma excelente semana com boas leituras!

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Sem bossa não há quem possa, de Eduardo Rodrigues (Capítulo 1, 143 páginas, R$ 45)

Imagine reunir em um mesmo lugar as melhores orquestras do Brasil e do exterior e as mulheres mais bonitas, elegantes e charmosas da região. Festas com atrações desse nível marcaram gerações. Em General Câmara, o glamour, a alegria e a diversidade dos bailes atraíam casais para a famosa pista do Cassino dos Operários. Tempo de romance ao som de inocentes marchinhas de carnaval, danças de rosto colado e troca de olhares que poderiam significar muito mais do que uma simples paquera. Neste livro, além e acima de tudo, o leitor se divertirá com relatos inéditos e engraçados, contados a rigor e a passeio. Pequenos flashes que exaltam lembranças que os anos não apagam.

Quando deixamos de entender o mundo, de Benjamín Labatut (Todavia, 176 páginas, R$ 59,90)

Em 2012, o matemático japonês Shinichi Mochizuki publicou artigos provando uma das mais importantes conjecturas da teoria dos números. Quando sua prova foi considerada impossível de entender pelos maiores especialistas da área, Mochizuki terminou por se excluir da sociedade, evocando o autoexílio de outro matemático, o lendário Alexander Grothendieck. Haveria alguma conexão enigmática entre esses dois homens? Esse é o ponto de partida de “O coração do coração”, uma das narrativas que o chileno Benjamín Labatut reuniu neste livro que o tornaria uma sensação mundial. Elementos parecidos figuram nos outros textos: cientistas tão geniais quanto atormentados perseguem suas ambições ao custo da saúde física e mental, enquanto os desdobramentos pessoais e históricos de suas descobertas atravessam o tempo e o espaço. Baseando-se em biografias e teorias reais, mas recorrendo à ficção para produzir efeitos estéticos e associações de ideias, o autor explora em seus relatos o entrelaçamento entre a vida íntima e o desbravamento científico. Com um estilo em que ouvimos ecos de W. G. Sebald e Roberto Bolaño, o leitor pode sentir que está diante da montagem hábil de um belo quebra-cabeças.

Exílios e poemas, de James Joyce (Penguin, 368 páginas, R$ 29,90)

Este volume reúne toda a poesia publicada em vida por James Joyce, a peça “Exílios” – que contém temas posteriormente explorados em Ulysses – e um conjunto de notas elaboradas pelo autor durante o processo de escrita. Antes da publicação de Ulysses, James Joyce lançou a peça Exílios em 1918. Nela, o autor explora temas que aparecerão em sua obra magna, como as relações complexas de adultério e desejo. Neste volume estão reunidas a peça e também sua produção poética, sendo possível ter uma visão mais ampla das ideias do autor não só sobre o exílio, como também sobre a própria literatura.

Além da peça e dos poemas, esta edição conta com um conjunto de notas que Joyce elaborou durante o processo de escrita e alguns fragmentos de diálogos não incluídos na versão final do texto.

A ferida do exílio

Por Martim Vasques da Cunha, na Rascunho.

James Joyce por Robson Vilalba

My wound tires me.
James Joyce, Exiles (Exilados)

Nascido a 2 de fevereiro de 1882 em Dublin, James Joyce sempre foi um jovem inquieto e preocupado com o fato de que a Irlanda o traía constantemente, tratando a nova geração de artistas como “a porca que devora sua prole”. Havia poucas oportunidades: sufocada pela bota inglesa, fossilizada por um catolicismo moralista, a nação era descrita por uma palavra que o próprio não hesitou em colocar na abertura do conto As irmãsparalisia.

Era a paralisia espiritual do nacionalismo pueril das peças mitológicas de W.B. Yeats e John M. Synge que alegravam o público do Abbey Theatre, ponto de encontro dos intelectuais dublinenses. A mente de Joyce, como o próprio dizia aos colegas, lhe parecia ser mais interessante do que o que acontecia no país. Absorvia o melhor de uma civilização ocidental que a Irlanda se recusava em aceitar; prodígio de intelecto e de arrogância, já criava uma teoria estética que se aproveitava de Dante, Aristóteles e Tomás de Aquino; e ficava absolutamente maníaco quando via um fato inusitado no cotidiano de Dublin, não hesitando em anotá-lo em um caderninho, para depois apelidá-lo carinhosamente de “epifania”. Dirigia-se para um lugar ainda inexplorado e a sociedade onde vivia não percebia o que acontecia nela porque estava viciada nas correntes do provincianismo.

Segundo T.S. Eliot, ser “provinciano” não significa “não possuir a cultura ou o requinte da capital”, muito menos ser “estreito no pensamento, na cultura e no credo”. É algo além — e mais trágico para a cultura de uma nação que se pretenda saudável. Refere-se “também a uma distorção de valores, à exclusão de alguns, ao exagero de outros, que resulta, não de uma falta de ampla circunscrição geográfica, mas da aplicação de padrões adquiridos dentro de uma área restrita, para a totalidade da experiência humana, que confundem o contingente com o essencial, o efêmero com o permanente. (…) É um provincianismo, não de espaço, mas de tempo (…), a propriedade da qual os mortos não partilham. [Sua ameaça] é que podemos todos, todos os povos do mundo, ser provincianos juntos; e aqueles que não estiverem satisfeitos podem apenas tornar-se eremitas”.

Joyce não chegou a se tornar um eremita. Foi além: assumiu a postura do gênio que vai contra qualquer regra da sociedade. Recusou a Igreja, não aceitou o que seus pais lhe ensinaram, muito menos os conselhos dos amigos prudentes. Encaminhava-se para “a completude e a experiência da vida” e não se importava em admitir que havia um abismo separando-o da antiga geração. Sua jornada era tão conscientemente solitária que, ao se encontrar com W.B. Yeats, fez questão de ampliar a lacuna. Conta-se que Joyce respondeu da seguinte forma a Yeats, após os dois terem se encontrado em uma reunião em que os elogios deste não encantaram o primeiro: “Nós nos encontramos tarde demais. O senhor é velho demais para que eu tenha qualquer efeito sobre o senhor”.

Joyce era ainda um escritor em formação; escrevera alguns versos, planejava alguma carreira de cantor ou de ator. Precisava de mais algumas experiências para realizar aquilo que acreditava ser a sua missão: “forjar a consciência incriada da sua raça”. Buscava a compreensão da realidade como uma unidade, como a manifestação de um divino que se imiscuía no cotidiano paralisado de Dublin. Apesar de seu Non serviam em relação à Igreja — atitude com a qual Joyce manteve uma relação ambígua por toda a vida —, é nítida a intenção de se mostrar como um artista que procura um Deus que está além do “grito na rua” em que seus compatriotas o transformaram. E ele sabia que, para forjar a tal consciência, teria de aceitar dois fatos extremos: a compreensão da morte como parte integrante da vida e o reconhecimento da condição humana como perpétuo exílio.

Espírito torturado

Esses fatos seriam o fardo nos ombros de Stephen Dedalus, o anti-herói de Retrato do artista quando jovem, romance autobiográfico que mostra James Joyce exibindo ao mundo o que aprendeu ao aplicar seu espírito às artes desconhecidas. Seu nome é uma união de duas personalidades marcantes do mundo antigo: o primeiro mártir cristão, Estevão, que, conforme nos conta Atos 7:55-60, foi apedrejado pela multidão de Jerusalém ao gritar na rua sobre a ressurreição de Cristo; e o arquiteto Dédalo, criador de construções como o labirinto que aprisionava o Minotauro, e pai de Ícaro, com quem fugiu da sua própria criação ao criar asas de cera, mas viu seu filho morrer afogado no mar por não escutar os conselhos de voar distante do sol.

Joyce não escolheu esses nomes ao acaso. Acreditava realmente que era um mártir e que a literatura era a fuga da paralisia dublinense. A figura de Stephen surgiu na adolescência e foi elaborada, em primeiro lugar, em um romance autobiográfico inacabado, Stephen hero. Ela tinha todas as qualidades e defeitos de Joyce: a petulância, o pedantismo de uma erudição que se preocupa com sua própria mente, a constante intransigência com o país, a família e os amigos. Entretanto, ao transformar Stephen hero em Retrato do artista, Joyce queria aprofundar a objetividade da consciência e, além disso, tornar Stephen mais distante de si próprio — era necessário que se tornasse um personagem e não apenas um alter ego. Retrato do Artista realiza isso com perfeição: o início é um passeio pela consciência infantil do jovem Stephen; conhecemos sua família, sua educação, seus amigos, sempre de forma indireta; pouco a pouco, o estilo se desenvolve para uma exploração de sentimentos e de emoções que se transformam em uma música das sensações. Joyce retrata o crescimento de uma mente que opta pelo exílio dentro do seu país porque a perseguição é a única forma de encontrar um sentido na vida dublinense.

Como o próprio Dédalo, Stephen está preso não só no labirinto onde foi jogado, mas também no que ele próprio criou — onde seu espírito está sendo torturado por pensamentos que não consegue apreender corretamente. Esta é uma observação importante porque sem ela não podemos entender Ulysses, e nos permite corrigir um grande erro que rondou a obra de Joyce: a de que ela seria uma apologia do orgulho satânico.

Sem dúvida, Stephen é um orgulhoso, e falaremos sobre isso adiante; mas é o orgulho patético do jovem que se sente mais importante do que o país onde vive. Não se trata de revolta contra a realidade ou contra Deus. A citação do nome de Stephen ao primeiro mártir cristão prova isso — apesar do Non serviam contra a Igreja que ecoa nos ouvidos. A prisão mental de Dedalus, sua planejada fuga para o exílio em Paris (que ocorre no final de Retrato) e o encontro com sua vocação artística são apenas os primeiros passos para a verdadeira intenção de Joyce, e que se revelam como uma profunda análise do artista maduro sobre o que move a pessoa determinada em criar um novo mundo dentro dos limites do exílio. Stephen sempre se deparará com a prisão da sua alma — que foi criada justamente pelo orgulho da traição.

E o orgulho da traição, se isso for possível, acontece justamente por causa da condição que chamamos de exílio. O poeta russo Joseph Brodsky, um exilado de primeira categoria, escreveu certa vez que o verdadeiro exílio nos ensina três coisas: que a condição humana é um exílio metafísico que nos põe em constante estado de tensão, seja no pensamento ou no espírito; que alguém que vive o exílio sempre será um ser voltado para o passado, para o lugar onde viveu e ao qual não pode mais retornar — como foi o caso do próprio Joyce com Dublin, em que ele dizia que, se a cidade fosse destruída por um incêndio, ela poderia ser reconstruída através de seus livros; que o exílio é, antes de tudo, uma escola de humildade.

Humildade é algo que Stephen Dedalus não possui. Durante todo o Retrato, deixa o orgulho tomar conta de suas atitudes, mesmo quando consegue uma aparente libertação após ter uma epifania em Sandycove, ao ver uma moça à beira da praia e sentir o chamado da literatura. Seu lema de sobrevivência explicita isso quando fala sobre sua ars poetica ao amigo Cranly: a de que ele construirá uma obra fundada no “silêncio, exílio e astúcia” (silence, exile and cunning). O que seria essa astúcia? Justamente a falta de humildade que fará de Stephen um mártir de seus próprios pensamentos e ações. Ou pior: o desejo alucinado de ser traído a qualquer custo, seja pelos próximos ou pelo próprio país. Vai para Paris, mas pede antes uma benção do pai, chamando-o de “velho artífice”; como alguém que gosta de esconder pistas, Joyce sugere que nem o próprio Stephen está certo da sua condição de mártir ou de rebelde. É claro que não estava. O motivo é simples: ninguém suporta ser traído ou viver numa constante suspeita de que será traído. Naquela época, nem Joyce, que cometeu o mesmo erro, sabia se estava pensando ou fazendo a coisa certa. E ele conhecia a razão: tanto Stephen Dedalus como James Joyce voltariam a Dublin para ver a lenta agonia de sua mãe.

Acerto de contas

Para a criação de um novo mundo, é necessário que o artista entre em comunhão com o mundo real onde vive e aceite as suas imperfeições, suas incertezas e, sobretudo, a sua descrença. Este talvez seja o verdadeiro tema de Ulysses, romance que lançou James Joyce ao topo da literatura mundial e que se passa em um único dia, 16 de junho de 1904, o Bloomsday. É uma continuação de Retrato do artista quando jovem porque, logo no início, nos reencontramos com Stephen Dedalus, que voltou de Paris para justamente acompanhar a morte de sua mãe.

Também acompanharemos a peregrinação de Leopold Bloom, vendedor de anúncios de descendência judaica, preocupado com várias coisas, entre elas o funeral de seu amigo Paddy Dignam, o luto mal resolvido por um filho morto prematuramente (Rudy), a sua fixação por uma amante que se comunica somente por correspondência (Martha) e, sobretudo, a possibilidade de que, enquanto anda pelas ruas de Dublin, sua esposa Molly o trai com o garanhão Blazes Boylan.

Por que Joyce escolheu o dia 16 de junho de 1904 para ser a data que marca a ação de seu livro? A razão é singela: neste mesmo dia, o jovem James Augustine Joyce saíra com sua futura companheira, Nora Barnacle, que, como o próprio diria anos depois a ela, “fez dele um homem”. Joyce estava na mesma situação de Stephen Dedalus: atormentado por dúvidas, pela culpa de ter visto a mãe agonizante e por não ter cumprido os últimos desejos dela ao se recusar a proferir a oração dos ritos finais. Além disso, o espectro do fracasso o perseguia: de nada adiantava ser um grande talento se não estava plenamente desenvolvido. O encontro com Nora marcou-o como a possibilidade de entrar em contato com o mundo e deixar para trás a solidão que sentia desde a morte da mãe; e, com isso, Joyce acreditou ter encontrado uma companheira para toda a vida, apesar das observações sarcásticas de seu pai, que afirmava que ela jamais largaria o filho, numa referência nada delicada ao seu sobrenome (Barnacle significa “carrapato”).

Portanto, Ulysses é uma das maiores cartas de amor já escritas. É também o acerto de contas de Joyce com o seu presente e com o seu passado — representados respectivamente por Leopold Bloom e Stephen Dedalus. Ambos se encontrarão nesse dia para que achem uma maneira de dar rumo a suas vidas — para que o sentido das coisas surja como se fosse algo óbvio e os faça ir para frente, nunca para trás. A presença de Nora Barnacle aparece também na figura de Molly Bloom, a esposa de Leopold, uma mulher que nos parece ser uma aranha devoradora, mas, no fim, é quem fará a unidade na existência destes dois homens dilacerados.

O acerto de contas com o passado não se dá apenas na esfera pessoal. Joyce também resolve, em seu romance, o seu próprio lugar na literatura. Para isso, cria uma estrutura romanesca baseada em três pilares: Homero, Dante e Shakespeare. O primeiro é nítido: além do título do romance, cada episódio do livro é inspirado em um canto da Odisséia, épico de Homero que conta o retorno de Ulisses, o famoso guerreiro de Tróia, à sua Ítaca. Dessa forma, Leopold Bloom seria ninguém menos que Ulisses; Stephen Dedalus seria Telêmaco, o filho de Ulisses; e Molly Bloom representaria Penélope, apesar de não ser uma esposa tão fiel assim. Na visão de Joyce, Ulysses não é apenas um romance sobre o exílio, mas um romance sobre a volta para a casa após uma longa temporada no exílio. Bloom e Dedalus são deslocados em Dublin e ambos procuram uma pátria espiritual; o tema da paternidade é recorrente: os dois buscam pais e filhos desaparecidos em suas vidas e descobrem o que procuravam ao se encontrarem quase por acaso. Entretanto, nada em Joyce é por acaso; ele aproxima a mitologia grega do cotidiano dublinense usando os artifícios mais complicados e, ao mesmo tempo, simples da literatura; usa e abusa de paralelismos no tempo e no espaço, criando uma sensação de sincronicidade em eventos aparentemente desconexos; desenvolve o fluxo de consciência não como ferramenta narrativa, mas como um modo de o leitor entrar nos segredos mais íntimos dos personagens; e, sobretudo, registra minuciosamente cada ato, cada hora, cada sensação, cada fala de qualquer personagem que seja importante em sua estrutura porque quer provar, através de seu livro, que o passado pode ser revivido no presente.

O confronto com o passado dentro do presente só será resolvido por meio da influência de Dante. Joyce quis fazer com Ulysses o que o poeta florentino fez com A divina comédia: registrar toda a experiência da civilização ocidental em um único tomo. Daí a referência enciclopédica a obras de literatura, teologia, botânica, história da arte, história universal que estão espalhadas pela narrativa, como se fosse um corpo com vida própria.

Contudo, de nada adianta essa síntese se o homem comum, representado por Leopold Bloom, não consegue se confrontar com o fantasma da morte. No episódio “Hades”, inspirado no canto homérico em que Ulisses desce aos infernos para encontrar com o espectro de seu pai, Joyce descreve a descida de Bloom ao reino subterrâneo. Bloom se dirige com alguns amigos (entre eles, o pai de Stephen, Simon Dedalus) para o funeral de Paddy Dignam, um velho conhecido da boemia dublinense. Todos se lembram da morte de algum colega, de algum ente querido; Bloom se lembra da morte de seu pai, que se matou por envenenamento, e de seu filho Rudy.

Ao ver o caixão de Dignam ser enterrado, conscientiza-se de que seu destino final não é apenas a morte, mas também o esquecimento. Mesmo qualquer espécie de oração não resolve esse problema. “Será que alguém realmente reza?”, ele se pergunta. Bloom sabe que precisa fazer algo para não cair no olvido. Mas o quê? O inferno é muito grande aos olhos de Bloom; existem muitos mortos, muitos a serem esquecidos. E então percebe que, em breve, se não fizer nada, pode ser um deles: “Quantos, meu Deus! Todos estes aqui andaram certa vez por Dublin. Mortos fiéis. Assim como vocês são agora assim certa vez fomos nós”[1]. O maior pecado de Bloom é não fazer algo da sua vida que valha a pena.

O mesmo pode se dizer de Stephen Dedalus. Joyce faz seu alter ego, ocupado por uma mente que elabora os mais complexos teoremas, incapaz de lidar com a vida como ela é, confrontar-se com o espectro de William Shakespeare. É o embate entre a antiga literatura inglesa e a nova literatura — o modo como Stephen encontrou para acordar do pesadelo chamado História. Isso é motivo para uma das cenas mais divertidas de Ulysses, quando Dedalus explica para alguns colegas o que seria sua inusitada teoria de que Shakespeare é, ao mesmo tempo, pai e filho de Hamlet.

O teorema é o seguinte: “Hamlet é Hamlet, o filho morto prematuramente do próprio Shakespeare; Shakespeare é o espectro, o marido ultrajado, o rei deposto; Anne Shakespeare, nascida Hathaway, é a rainha culpada”. Stephen faz uma mistura de pseudo-biografia, fofoca literária e delírio hermenêutico para explicar que as peças de Shakespeare não saíram de uma existência imparcial e distanciada da vida, mas sim de uma experiência traumática no conhecimento de sua própria maldade e da maldade dos outros — no caso, o suposto fato de que o jovem Shakespeare foi abusado sexualmente por sua esposa Anne, 15 anos mais velha. A tese choca os colegas de Stephen. “Mas essa intromissão na vida familiar de um grande homem”, retruca um; para eles, Anne Hathaway foi um detalhe na vida de Shakespeare, uma mulher a quem ele não deu a mínima importância, pois cedeu, em seu testamento, nada mais nada menos que “sua segunda melhor cama”. Um erro, enfim. “Bobagem!, diz Stephen rudemente. Um homem de gênio não comete erros. Seus erros são voluntários e são portais de descoberta.”

Esta apresentação é a forma de Stephen lidar com a obsessão pelo exílio e pela traição. Ele se sente culpado por ter traído sua mãe ao não cumprir seus últimos desejos e sente que foi traído pela Irlanda e por seus amigos. Mas, no fundo, também percebe que algo na sua vida saiu errado — e a culpa é exclusivamente sua. A cena na Biblioteca Nacional mostra exatamente isso. Pouco a pouco, Stephen se sente cercado por seus colegas e, quando menos se espera, se rende à imbecilidade coletiva. O clima de incompreensão e de incomunicabilidade cresce cada vez que Dedalus tenta provar sua teoria.

Stephen está muito fraco espiritualmente — o orgulho da traição já consumiu suas forças. E então vem um dos momentos mais reveladores de Ulysses, quando alguém afirma o seguinte a Dedalus:

— O senhor é uma ilusão — disse sem rodeios John Eglinton a Stephen. — O senhor nos fez percorrer todo esse caminho para nos mostrar um triângulo francês. O senhor acredita em sua própria teoria?

— Não — disse prontamente Stephen.

É neste instante que Joyce se mostra um verdadeiro Dédalo, muito superior ao seu personagem, despistando o leitor, indicando a verdadeira direção para escapar do labirinto que criou. Vários estudiosos deixam esse trecho de lado e afirmam que o próprio Joyce estava brincando com a teoria de Shakespeare. Para René Girard, este é um erro gigantesco[2]. O “não” de Stephen é o que ele fala em voz alta; contudo, algumas linhas depois, saberemos o que verdadeiramente se passa em sua alma:

Eu acredito, Ó Senhor, ajude minha descrença. Isto é, me ajude a crer ou me ajude a descrer? Quem ajuda a crer? Egomen. Quem a descrer? Um outro camarada?

A referência é ao evangelho de Marcos, capítulo 9, versículo 24. Como Joyce não brinca em serviço, é bom lermos o episódio bíblico para percebermos o que ele realmente quis dizer. Trata-se da cura do epiléptico endemoninhado em que o pai deste exclama: “Eu creio! Ajuda a minha incredulidade!” — as mesmas palavras que Stephen diz para si mesmo.

Ele se reconhece como o representante de uma mente tão paralisada quanto a Dublin que criticava. A divagação sobre Shakespeare não é uma brincadeira: é um diagnóstico do problema que atacava não só a Irlanda, mas também a Europa, como veremos em breve. O espírito da época, o zeitgeist, está mudo e surdo; a descrença de Stephen em suas teorias significa que ele também não acredita em si mesmo — o mesmo problema que ronda Leopold Bloom. E o que podem fazer?

A vida fará com que ambos se encontrem no final da tarde, em uma maternidade onde um amigo em comum será pai. Não simpatizam no início; mas, após uma bebedeira (o típico modo irlandês de resolver os problemas) na mesma maternidade, resolvem ir a um bordel. Lá, se deparam com uma vida noturna que desperta os seus maiores pesadelos e suas maiores culpas; Bloom se encontra com o espectro de seu falecido filho, e Dedalus, enfim, enfrenta a sua mãe. O desespero é tamanho que Stephen quebra o candelabro do bordel com sua bengala e provoca uma grande confusão com as prostitutas e a polícia local; será Bloom quem o salvará afirmando ser seu responsável. Juntos, vão embora, rumo à casa de Bloom, na Eccles Street número 7. Estão bêbados, mas descobrem uma comunhão inusitada. Comem uns sanduíches na cozinha e, logo depois, se despedem. Bloom sobe as escadas e se deita na cama, ao lado de sua esposa. E então ocorre o gran finale do livro: o monólogo de Molly Bloom, mais de 40 páginas sem pontuação, dedicado a uma personagem que parecia ser marginal ao enredo, mas é a única que resume a completude da vida ao aceitar tudo com um vertiginoso “sim!”.

O “sim” de Molly é também o “sim” de James Joyce. É ele o Egomen para quem Stephen pede ajuda no seu momento de descrença. Apesar de Molly ser uma adúltera, Joyce coloca na sua boca a fundação de um novo mundo onde a vida é o motor propulsor, nunca a morte. No fim, após uma longa odisséia dentro do exílio, descobre-se que é nele que se encontra a unidade e a completude das coisas. Ulysses pode ser um livro de leitura difícil (e é), mas sua dificuldade esconde as pistas de uma delicadeza humana inegável. O encontro entre Stephen Dedalus, Leopold e Molly Bloom é a prova de que, antes de tudo, para não cairmos no esquecimento, temos de ter consciência do nosso próprio valor. Sem isso, não temos como empreender nossa missão, seja como o casal Bloom, para recuperar um matrimônio perdido, ou como o jovem Stephen que, após o dia 16 de junho de 1904, se transformará em James Joyce e tirará do exílio a lição necessária para escrever Ulysses.

Em guerra

Contudo, este mesmo exílio deixou uma ferida que não tinha como ser curada. Há um preço muito alto a ser pago quando o homem de gênio se dedica aos seus erros como portais de descoberta. Dezesseis anos depois do lançamento de Ulysses, Joyce lançaria a pedra final de seu novo mundo, Finnegans wake. É um livro que implode e explode a língua inglesa em uma série de trocadilhos que desafia a lógica e se baseia somente no som; não há mais um enredo, mas sim várias histórias que desaguam em uma única História que vive em eterno retorno; o mundo não é apenas composto de epifanias; é, na verdade, uma gigantesca epifania que se transforma em alucinação sobre a qual a mente do seu autor parece não ter mais controle.

E não tinha mesmo. Ele escrevia Finnegans wake quando estava no auge de sua força literária e também em um dos seus períodos mais turbulentos, quando a filha favorita, Lucia, foi diagnosticada esquizofrênica. Foi Carl Gustav Jung quem analisou a moça a pedido do pai e este se escandalizou com a avaliação. Acreditava que ela também era um gênio. Jung apenas respondeu: “Vocês nadam no mesmo oceano; contudo, se o senhor nada, ela já se afogou”.

O oceano do exílio destruiu as forças do velho Joyce, mas lhe deixou a humildade necessária para saber qual foi o valor da sua empreitada. No final de Ulysses, fez questão de colocar os lugares e as datas em que o livro foi escrito: “Trieste – Zurique – Paris, 1914-1922”. Ele escreveu o seu épico sobre a comunhão humana na mesma época em que a Europa travava a Primeira Guerra Mundial; nunca precisou ir às trincheiras porque tinha a sua própria guerra particular, uma guerra contra não só o provincianismo de sua terra como também contra o provincianismo do ser humano. Estava tão exaurido que podia se dar ao luxo de fazer a seguinte piada, como inventou Tom Stoppard na peça Travesties, quando Joyce se encontra com um soldado veterano da Primeira Guerra: “O que o senhor fez na Grande Guerra, Sr. Joyce?”, pergunta o soldado; e escuta a seguinte resposta: “Eu escrevi Ulysses. E você — o que fez?”.

James Joyce morreu no dia 13 de janeiro de 1941, de úlcera perfurada. Sua máscara mortuária, exibida no James Joyce Centre, em Dublin, mostra que não teve uma morte fácil. Foi enterrado em Zurique, de onde escapava dos tumultos da Segunda Guerra Mundial junto com sua família. Seu túmulo, segundo Richard Ellmann, biógrafo do escritor, “é simples e de classe média. Já que Joyce não gostava de flores, colocaram uma folhagem verde. Uma coroa verde no funeral trazia uma lira tramada com o emblema da Irlanda. A Irlanda não teve nenhuma outra participação no funeral”. Já Nora Barnacle Joyce morreria dez anos depois, em 10 de abril de 1951, também em Zurique, num convento. E quanto a Lucia Joyce, talvez tenha sido a única com lucidez ao definir quem era o pai quando soube de sua morte, antes de ela mesma morrer em um sanatório no dia 12 de dezembro de 1984: “O que é que aquele idiota está fazendo debaixo da terra?”, disse ela. “Quando vai se resolver a sair? Ele está nos vigiando o tempo todo.”

E talvez esteja mesmo. Joyce sofreu como poucos a ferida do exílio — mas foi também um dos poucos que enfrentou com determinação a paralisia espiritual que quase o vitimou. Há alguma forma de escapar disso? Provavelmente não, uma vez que “a arte é uma mistura de ambíguo e de inefável; seu mistério nunca passa da lápide e é tanto ou mais brutal que ela”. Cumpre a quem fica que reconheça a vigilância de Joyce, crie novos mundos a partir da imperfeição deste e acabe com as elegias que nos paralisam, pois, como diria o poeta, “há um país que é preciso pôr abaixo”.


[1] Todas as citações de Ulysses em português vêm da tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro, lançada pela editora Objetiva (depois, Alfaguara) em 2005.

[2] Cf. o capítulo “Triângulos franceses” no Shakespeare de James Joyce, págs. 475 – 498, in: Shakespeare — O teatro da inveja, publicado pela Editora É em 2010.

Aos 90, "Ulysses" ganha terceira tradução no país

Retirado do Conteúdo Livre.

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Obra de Joyce entra em domínio público junto com nova versão de clássico 

Trabalho de Caetano Galindo revigora mística do romance, tido como o maior do séc. 20, mas considerado “difícil” 

FABIO VICTOR
DE SÃO PAULO

Há clássicos literários reverenciados, outros populares. E há os que, embora muito reverenciados, são muito pouco lidos. Este parece ser o caso de “Ulysses”.

Apontado em diversas enquetes com críticos como o principal romance do século 20, o livro maior do irlandês James Joyce (1882-1941) é uma provocação ao leitor. É enorme (mais de 800 páginas), experimental e vertiginoso.

Surge agora mais uma chance para os brasileiros de enfrentá-lo: a nova tradução ao português de Caetano W. Galindo, com coordenação de Paulo Henriques Britto e edição de André Conti, para o selo Penguin-Companhia, a terceira disponível no país, que acaba de chegar às livrarias.

As diferenças para os trabalhos de Antônio Houaiss, de 1966, e de Bernardina da Silveira Pinheiro, de 2005, começam no título. Galindo é o primeiro a adotar a grafia original em latim, “Ulysses”, com “y” no lugar do “i” aportuguesado de Houaiss e Bernardina (leia na pág. E7).

O volume traz uma nota do tradutor, na qual ele promete para breve um guia de leitura do romance, e uma introdução do professor irlandês Declan Kiberd.

Kiberd relembra como Virginia Woolf — que nasceu e morreu nos mesmos anos de Joyce e cuja obra, como a dele, entra agora em domínio público — rejeitou “Ulysses” à época do lançamento, o definindo como a obra “de um estudante nauseado espremendo suas espinhas”.

Kiberd também refaz a trajetória tortuosa do romance, censurado e processado por obscenidade e publicado em Paris, em 1922 (completa 90 anos e seu criador, 130).

A obra de Joyce narra um dia na vida de Leopold Bloom -um agente publicitário dublinense, anti-herói baseado no Ulisses da “Odisseia” de Homero, casado com Molly Bloom, sua Penélope infiel-, e de seu amigo Stephen Dedalus, correspondente de Telêmaco e alter ego de Joyce.

O ano é 1904, o dia é 16 de junho, o mesmo em que hoje ocorre o Bloomsday, celebração anual do clássico.

Seria prosaico assim, se ao mesmo tempo “Ulysses” não tivesse revolucionado a forma tradicional do romance, criando novas ortografia e sintaxe e imprimindo à narrativa um fluxo verbal alucinado, que leva ao limite o chamado monólogo interior.

Convulsionou a literatura a ponto de virar anedota, como relata o escritor Daniel Galera ao lembrar que sua história com o livro começou aos 12 anos, quando o pai dele “apontou para aquele tijolo no alto da estante e disse”:

“Tá vendo aquele livro? Tem uma frase de 50 páginas que fica contando o pensamento de uma pessoa”. Referia-se ao monólogo de Molly Bloom, o trecho final de “Ulysses”.

Segundo Galera, aquilo instalou nele “um fascínio imediato pelo volume”, que só viria a ler quando adulto.

Outra vítima da mística de “Ulysses” foi o escritor Joca Terron, que paquerou por anos uma edição do livro na estante do pai, sem coragem para encará-la. Quando o fez, leu só um terço, até que o pai tomou de volta o exemplar.

A jornalista e colunista da Folha Barbara Gancia diz ter lido “Ulysses” “na marra”, porque fazia parte do seu currículo escolar.

“Ou melhor, não li. Ninguém ‘lê’ ‘Ulysses’, estuda-se o livro parágrafo por parágrafo. É tão complicado e cheio de referências que talvez seja uma boa ideia usá-lo como aposto na leitura de ‘Retrato do Artista Quando Jovem’, a obra que o precede e é um pouco mais amigável.”

Discorda dela o professor e crítico Alcir Pécora, para quem “em termos de prosa inglesa, apenas [Laurence] Sterne e [Joseph] Conrad planam nas mesmas alturas” que o Joyce de “Ulysses”.

O escritor e tradutor Daniel Pellizzari, que como Pécora leu e adorou, considera que, mesmo sendo “importantíssimo na história da literatura”, “Ulysses” não é um livro essencial, “do tipo que se diria que ‘todos precisam ler'”.

Para quem quer enfrentar, o escritor Nelson de Oliveira sugere: “Esqueça as notas de rodapé [eliminadas na nova tradução] e os mapas de leitura. Entre desarmado no labirinto”. Fã do livro, o artista plástico Nuno Ramos aconselha que “quando ficar chato, pule -quem sabe para voltar depois. Vale a pena”.

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Crítica / Romance 

Versão resolve mais satisfatoriamente multiplicidade estética do texto joyceano
SERÁ ESTA NOSSA TRADUÇÃO DEFINITIVA DE “ULYSSES”? NÃO, ISSO NÃO EXISTE: CADA RECRIAÇÃO É OBRA AUTÔNOMA
MARCELO TÁPIA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Jovial, o velho gigante James Joyce ressurge luzente em nosso horizonte literário. Com nova voz, resultante de dez anos de labor, veste-se sóbrio, à imagem da edição da Penguin em língua inglesa: sem notas e com a densa introdução de Declan Kiberd.

Isto, segundo o tradutor Caetano Galindo, para apresentar o “Ulysses” “como o que ele deve sempre ser”: “um romance, talvez o maior romance de todos, e não um quebra-cabeça exemplar”.

Um convite à simples leitura desse complexo e divertido livro, desprovido de um sumário de seus capítulos.
Conheci trechos da versão de Galindo, lidos, ao longo dos anos, no Bloomsday de São Paulo. E testemunho, com base neles, a busca do tradutor pelo aprimoramento de suas soluções.

Se, antes, Cunningham perguntava, na carruagem que conduziria Bloom e companheiros ao enterro de Dignam, “Estamos todos aqui agora?”, ele passa a dizer “Já está todo mundo aqui?”. Tanto faria? Não. Por trás das escolhas, há questões difíceis a resolver, como a grande variedade de registros da prosa joyciana, que transita do tom mais coloquial ao mais “literário” ou ao mais inusitado.

Pode-se ver o “Ulysses” como um colossal poema: sua tradução será re-criação do intrincado sistema de relações construído pelo criador do périplo de Bloom.

No início do capítulo “Gado do Sol” (relativo ao episódio das vacas do deus Hélio, na “Odisseia”), Galindo mostra ter encontrado (como em muitos outros casos) uma solução plena para “Send us, bright one, light one, Hornhorn, quickening and wombfruit”: “Dai-nos, leve, luzente, Hornhorn, fertilidade e frútero”. Parece fácil? Se sim, esta será uma qualidade do bem resolvido.

Nesse capítulo, passado na maternidade -em que Joyce imita estilos literários e esboça a história da língua inglesa-, Galindo colhe um dos frutos mais atraentes de seu esforço, ao valer-se de recursos como o arcaísmo e o tom vulgar para recriar a diversidade linguístico-estilística:

“Daquela casa A. Horne é senhor. Setenta litros ele i mantém por que as madres na sua hora delas i venham parir e dar à luz crias sãs como o anjo de Deus a Maria disse”; “Dormiu aonde ontonte? […] Lá onde o Juda perdeu as bota e achou uns trapo véio”…

Será esta nossa tradução definitiva de “Ulysses”? Não, isso não existe: cada recriação é obra autônoma, embora interaja com o original e as demais traduções dele. A que ora nos chega tem a vantagem (e a desvantagem) da anterioridade de dois notáveis trabalhos: o de Antônio Houaiss, pioneiro, e o de Bernardina Pinheiro, de 2005.

Esta versão resolve mais satisfatoriamente a multiplicidade estética do texto de Joyce: não incorre no criticado “rebuscamento” geral da primeira ou no resultado explicativo e “normalizador” da segunda, que dilui a polifonia joyciana.

Mas muitas soluções de Houaiss continuam as mais instigantes, e o texto de Bernardina permanecerá como fonte de leitura mais corrente, associada a notas utilíssimas. Opções que se somam para compor a inesgotável pluralidade de “Ulysses”.
 
MARCELO TÁPIA, poeta, é doutor em teoria literária pela USP, diretor da Casa Guilherme de Almeida e co-organizador do Bloomsday em São Paulo
 
ULYSSES
AUTOR James Joyce
TRADUÇÃO Caetano W. Galindo
EDITORA Penguin-Companhia
QUANTO R$ 47 (1.112 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo

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“Clássico de Joyce é pura e simples diversão”

Caetano Galindo, tradutor da nova versão, rejeita fama de “livro chato” e diz que obra tem “todo tipo de tosqueira” 

Iniciado há dez anos, o trabalho do professor universitário ressaltou os aspectos lúdicos e coloridos do romance 

MARCO RODRIGO ALMEIDA
DE SÃO PAULO

O lançamento da nova versão de “Ulysses” encerra uma jornada iniciada há dez anos por Caetano Galindo, 38, professor da Universidade Federal do Paraná.
À Folha, ele explica as escolhas que nortearam a tradução, contesta a fama de o livro ser chato e comenta a dificuldade em achar a “voz” da personagem Molly.
 
Folha – Qual o principal diferencial da sua tradução?
Caetano Galindo – O objetivo era tentar liberar mais plenamente o potencial lúdico do “Ulysses”, um livro extremamente colorido, variado, corajoso e descarado.
 
Em que capítulo ou trecho isso fica mais evidente?
No “Gado do Sol”, que é todo ele uma série de pastiches de textos de momentos diferentes da história da literatura e da língua inglesa.
A nossa tradução é, até onde eu saiba, a primeira a responder na mesma moeda de Joyce, buscando caso a caso as referências e os estilos de dezenas de autores e períodos da história da língua portuguesa.
 
O que você acha das traduções feitas por Antônio Houaiss (1966) e Bernardina da Silveira Pinheiro (2005)?
São dois monumentos da tradução brasileira, mas as nossas entradas são fundamentalmente diferentes.
O que me incomodava mais na tradução de Houaiss, que é mais que adequada ao seu momento histórico, era um certo achatamento de diversidades e coloridos. Foi nesse polo oposto que eu mirei desde o início, para tornar o “Ulysses” mais romanesco, mais vário e múltiplo.
 
As duas traduções anteriores grafaram o título como “Ulisses”, com “i”. Por que a sua é com “y”, como em inglês?
A gente [André Conti, editor do livro, e eu] simplesmente percebeu que sempre tinha se referido assim ao livro. E, de repente, a gente achou que fazia sentido manter assim. Para marcar uma fidelidade? Para marcar uma diferença? Eu realmente acho que não sei, mas ficou lindão na capa!
 
Muita gente acha o livro chato.
É claro que o livro é difícil, é complexo mesmo. Mas, se você estiver disposto a colocar ali o esforço que o livro pede, a recompensa é pura e simples diversão. O livro tem piada de peido, tem todo tipo de imoralidade e tosqueira. Tem bobagem a dar com o pau. Como disse Samuel Johnson [escritor inglês], só acha o “Ulysses” chato quem acha a vida chata.
 
E como foi traduzir o célebre monólogo final de Molly?
Molly é um problema na medida em que ela é a maior bênção do livro. A literatura brasileira tem uma dificuldade histórica em lidar com a oralidade de uma maneira não estilizada, não idealizada. É muito foda achar a “voz” da Molly. Hoje estou contente com a minha Molly.

Folha de S.Paulo
12/05/2012 

Variações em torno de um raro romance

Por Donaldo Schüler
O Estado de S.Paulo

Os leitores de James Joyce no Brasil estão em festa. Apareceu uma terceira tradução do Ulisses. O romance de Joyce teve o privilégio de encontrar tradutores qualificados. Antônio Houaiss, além de crítico literário e tradutor, foi um dos melhores conhecedores da língua portuguesa, mérito atestado pelo substancioso dicionário que nos deixou. Bernardina da Silveira Pinheiro é professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro com estudos no exterior centrados em Joyce. E agora aparece Caetano W. Galindo – professor de Universidade Federal do Paraná, doutor em Letras – com a tradução de Ulisses. Caetano prefere Ulysses. Uso a tradução de Houaiss desde o momento em que ela apareceu, leio ainda a primeira edição, a de 1966. Interessei-me pela tradução de Bernardina (2005) e agora (2012), para comemorar a tradução de Caetano, sou convidado a me pronunciar sobre todas. As três têm méritos. Tradução literal não há. Tradução, para ser boa, terá que ser criativa. A criatividade muda de tradutor para tradutor. Aplausos merecem os editores e os leitores brasileiros que correspondem positivamente ao desafio de um texto exigente. Grande literatura sem grandes leitores não há. Leitores nossos prestigiaram Vieira, Machado, Euclides, Clarice, Rosa, João Cabral… E agora incorporamos Joyce, abrasileirado pelas traduções.

Caetano, querendo que o romance seja lido como romance, expressa reservas a notas que desviem do texto. Caetano não recusa recursos que facilitem a compreensão. Como usá-los fica por conta das preferências de cada um. Visto que Joyce abala a tradição narrativa inaugurada por Homero, salientar peculiaridades ampara a decisão de enfrentar procedimentos originais. Os que nos aproximamos de Homero, Sófocles, Dante, Shakespeare acolhemos os que apontam caminhos. Textos sobre textos ampliam acessos. Caetano dedicou anos à tradução de Ulisses. Quantas horas lhe consumiram estudos sobre Ulisses? Livros construídos sobre livros erguem o edifício da produção literária. Úteis são as notas que Bernardina oferece depois de concluir a tradução. A editora Penguin decidiu socorrer os leitores brasileiros com uma introdução de mais de 70 páginas, feita por Declan Kiberd. Isso ainda é introdução ou já é um livro que leva a outro livro? Se a editora nos tivesse dado a oportunidade de ver brasileiros nesse espaço, teríamos tido a oportunidade de averiguar a recepção de Joyce no Brasil. Por que não o próprio Caetano? A brevíssima informação a que se limita sobre a composição de palavras fica aquém do cuidado com que aborda invenções joycianas.

Kiberd nos dá um Joyce pacifista. Pessoalmente, prefiro o Joyce guerreiro, oswaldianamente antropofágico, o Joyce do Deus-guerra (he war) do Finnegans Wake, o Joyce do conflito de palavras e de ideias, o Joyce que, ao escrever inglês, implode a língua do dominador, a língua do império britânico. Aliás, o primeiro capítulo de Ulisses nos arrasta a uma batalha ferida dentro de uma fortaleza, a Torre Martello, em Dublin, construída em princípios do século 19 para resistir a uma temida invasão napoleônica que nunca se realizou. Combatem três jovens: Buck Mulligan e Stephen Dedalus, dois irlandeses em luta interna, além de Haines, um oxfordiano, representante do imperialismo inglês, armado de carabina no pesadelo de Stephen. Buck Mulligan, brincando com o seu próprio nome, diz: “Tripping and sunny like the buck himself.” Houaiss: “Ágil e ensolarado como um cabrito mesmo.” Bernardina: “Saltitante e radioso como o próprio cervo.” Caetano: “Ágil e radiante como um buque de guerra.” Caetano, afastando-se do significado de buck (macho de homens ou animais) fica mais próximo do jogo de palavras proposto por Joyce. Se ele decidisse, em vez de “buque de guerra”, “bucke de guerra”, teria incorporado o nome da personagem, expediente que nos levaria a muitas associações: macho, bode, sátiro, sacerdote, demônio…

Buck Mulligan denuncia o amigo Stephen Dedalus de matricídio, crime dos mais graves para um tragedista como Ésquilo. Buck Mulligan estende um espelho a Stephen. O incriminado, ao contemplar-se, vê a imagem de um dogsbody. Houaiss, para traduzir dogsbody, inventa canicarcaça. Por quê? Dogsbody em inglês é expressão coloquial. Bernardina opta pela tradução literal, corpo de cão. Mas há uma sutileza. Joyce cria atmosfera sagrada. Buck Mulligan – sátiro, sacerdote satânico -, pararodiando a missa, abençoa a paisagem. A missa negra faz alusão ao godsbody, o corpo de Deus em que, no ritual católico, a hóstia consagrada se transforma em corpo de Deus. Ao observar as linhas do seu rosto no espelho, pergunta Stephen: “Quem escolheu esta cara para mim? Este dogsbody, que devo libertar dos vermes? It (o espelho) pergunta-me também.” Stephen conversa com o espelho. O espelho inverte god (deus) em dog (cão). Caetano percebendo o jogo oferece a tradução irmãodasalmas. Lance arguto! A invenção de Caetano evoca o poema Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, musicado por Chico Buarque de Holanda. Cabral designa “irmão das almas”, cada um dos dois que conduzem Severino ao último repouso. Acontece que as três traduções prendem Stephen na morte. Isso é joyciano? Joyce cultiva concepção circular do universo, passagem da morte para a vida e da vida para a morte. Se não quisermos recorrer ao gesto humilhante de dizer em nota de pé de página que o inglês tem recursos que faltam ao português, temos que achar outra saída. Enfrentei o problema na tradução de Finnegans Wake, pág. 276. Se eu dissesse, que meu cachorro se chama Sued, ninguém me olharia espantado. Pois sued inverte especularmente deus. Proposta: “Quem escolheu esta cara para mim? Esta cara de suedcão, roída de vermes. Esta é também a pergunta desta coisa.”

Momentos depois, numa clara alusão a Shakespeare, aparece a sombra da mãe, Stephen a enfrenta assombrado: “No mother. Let me be and let me live.” Caetano: “Não mãe. Deixe-me estar e deixe-me viver.” Prefiro a tradução de Houaiss: “Não, mãe. Deixa-me ser e deixa-me viver.” Stephen roga o direito permanente de ser (autônomo, inventor, escritor). Bernardina entende que Stephen pede tranquilidade: “Não, mãe! Me deixe em paz me deixe viver.” Traduções nos fazem pensar.

No segundo capítulo, Stephen Dedalus, professor de história, termina a aula com uma charada que ele próprio inventou: The cock crew/ The Sky was blue:/ The bells in heaven /Where striking eleven,/ Tis time for this poor soul./ To go to heaven. Tradução de Caetano: “O galo cantou,/ O céu azulou, E os sinos de bronze /Bateram as onze./ É hora do incréu/ Seguir para o céu.”

O que teria levado Caetano de “pour soul” a “incréu”? “Incréu” rima com “céu”. Já sabia Drummond que nem sempre rima exprime solução. Ao que se sabe incréus não sobem aos céus, o destino é dantescamente outro. Improvisemos outra proposta: “É tempo dessa pobre alma/ Buscar o céu com calma.”

O texto da charada deve corresponder à solução. Caetano: ” – A raposa enterrando a avó embaixo de um azinheiro.” Nossa perplexidade diante da tradução de Caetano é maior do que a dos alunos confrontados com a resposta de Stephen: “The fox burying his grandmother under the holybush.” Ora, tudo leva a crer que Stephen armou a charada com experiências pessoais. Neste caso, a raposa (o intelectual) é ele. Pela altercação do primeiro capítulo, Stephen leva na consciência a morte da mãe. Na charada, grandmother não é avó, grandmother é a grandemãe (Igreja, Inglaterra). Stephen roga que sua mãezinha piedosa e poderosa repouse no céu para que ele possa viver em paz e levar a vida de artista (Dedalus) a bom termo. Stephen empenha-se em enterrar a grande mãe para que suma a sombra que o atormenta. A solução de Stephen a sua própria charada ecoa na resposta dada a Deasy, o diretor da escola, momentos depois: “A história é um pesadelo do qual tento despertar.” A história é a mãe, a grande mãe com a qual Stephen está em conflito do princípio ao fim.

Traduzir é difícil. Traduzir Joyce representa dificuldade dobrada. Antes de ousar uma quarta tradução, convém revisar as existentes, inquestionavelmente boas. O que é bom pode ser ainda melhor.