A Ospa no frio e sob o domínio de Teraoka

Teraoka durante ensaio com a Ospa (Clique para ampliar)
Teraoka durante ensaio com a Ospa | Foto: Augusto Maurer (Clique para ampliar)

Ontem, no dia em que Brahms completava 180 anos de nascimento, a Ospa programou Sibelius e Prokofiev. Nossa orquestra é rebelde e não se liga muito em datas. Também não é nada nacionalista: por exemplo, no dia 17 de novembro de 2009, quando Villa-Lobos completava 50 anos de morte e todos os cadernos culturais só falavam nisso, a Ospa só falava em outra coisa, apresentando um programa que era inteiramente dedicado a Mendelssohn. Mas, enfim, deixemos Brahms e as datas de lado. Era uma noite gelada em Porto Alegre e tivemos mais uma comprovação de que o gaúcho não é macho o suficiente para enfrentar o frio. Talvez também pela fuga que as pessoas empreendem do centro da cidade ao final do dia, talvez pela falta de estacionamento, a Reitoria de UFRGS parece ser amaldiçoada para além da má acústica. Estava com menos de meia casa. Mas digo pra vocês que a o Theatro São Pedro e o Auditório Dante Barone — que também estão no centro da cidade — trarão mais pessoas nos concertos dos dias 14 e 21. Esperem e verão.

Sibelius foi um enorme compositor. Não é apenas o mais famoso compositor da Finlândia, é o mais famoso dos finlandeses ao lado do piloto Mika Häkkinen e dos celulares Nokia. Sua figura estava nas notas de cem marcos antes do euro chegar. Era um nacionalista e foi figura fundamental na independência do país. Muito mal visto pela escola alemã — pelo simples motivo de ser bom e popular — , recebeu todo o gênero de críticas injustas, boa parte delas feitas pelo contumaz equivocado musical Theodor Adorno. Sibelius era um herói em seu país e ficou logo famoso em Paris e nos EUA, que até hoje aguarda ansiosamente sua oitava sinfonia…

Na coletânea de ensaios Os testamentos traídos, Milan Kundera analisa as culturas periféricas da Europa, tomando como exemplo sua Tchecoslováquia. “A intensidade muitas vezes assombrosa de sua vida cultural pode fascinar um observador”. Porém, “no seio dessa intimidade calorosa, um inveja o outro, todos vigiam a todos”. Se um artista ignora as regras locais, a rejeição pode ser cruel, a solidão, esmagadora”. No início do século XX, cada uma destas pequenas nações tinha seu círculo de compositores locais e, dentre eles, seus representantes nacionais. Sibelius na Finlândia, Bartók na Hungria, Grieg na Noruega, Dvorak, Smetana e Janáček na Tchecoslováquia, Nielsen na Dinamarca, Elgar e Vaughan Williams naquele grande país quase sem música até o século XX. Até nós tínhamos um nacionalismo musical com Villa-Lobos, lembram? A influência de Sibelius na cultura de seu país é tão grande que até hoje a Finlândia dedica generosa fatia de seus investimentos culturais em orquestras e na formação de músicos. Mas tergiverso e preciso voltar logo à Reitoria da UFRGS.

O programa iniciou com a suíte Pelléas et Mélisande, música incidental de Jean Sibelius escrita em 1905 para o dramalhão homônimo de Maurice Maeterlinck. A obra tem nove movimentos curtos e é muito bonita, mais ainda quando não se dá importância ao triângulo amoroso protagonizado pelos irmãos Pelléas e Golaud e que acaba na morte de princesa Mélisande. O tema também serviu a uma ópera de Debussy. Em meio àquelas brumas, a Ospa saiu-se muito bem, orientada eficientemente pelo maestro Teraoka. (Soube que nos ensaios, os cães que habitam as proximidades da Igreja São Pedro, local improvisado de ensaios da Ospa, detestaram as ameaças de mau tempo desferidas pelos contrabaixos e respondiam latindo loucamente).

Depois veio a Valsa Triste, também de Sibelius. É uma das peças mais esplêndidas que conheço. Lacrimosa quando ouvida sem atenção, torna-se absolutamente comovente quando nos aproximamos. São seis minutos do melhor Sibelius, microcosmo de suas melhores sinfonias e poemas sinfônicos. A curtíssima Valsa Triste é o mais belo dos haikais e vi algumas lágrimas próximas a mim durante a execução.

http://youtu.be/P8Oc_J1Lu-o

Já o mesmo não pode ser dito de Cena com garças, medonha peça semi-onomatopaica onde os clarinetistas Augusto Maurer e Marcelo Piraíno fizeram o papel de garças com donaire, esbelteza e garbo. Tudo inútil. As garças gostam de rios e lagoas, mas estas de Sibelius se ligavam mais num charco. A peça era merecidamente desconhecida, os xerox das partituras eram quase ilegíveis e devem ser jogados fora hoje. Por favor, não guardem papelada inútil.

O final do concerto veio pela maravilhosa Sinfonia Clássica Op. 25 de Serguei Prokofiev. Foi uma verdadeira lufada primaveril para a plateia e muito trabalho para a orquestra. A sinfonia — radicalmente feliz e melodiosa — também é muito difícil de tocar e pode ser um tormento para orquestras que ensaiam apertadas em igrejas. É claro que a interpretação não foi das melhores que vi, mas também é verdade que só consegui me dar conta disso ao final, rememorando alguma coisa. Música ao vivo é assim. Muitas vezes a gente nem se dá conta dos erros e foca a atenção na musicalidade e no tesão.

O regente Kiyotaka Teraoka já comandou a Ospa uma dezena de vezes e, este ano, ainda a comandará na Sagração da Primavera, se esta não for cancelada em função da falta de local adequado para ensaios. Se é gentil e educado com os músicos, também é competentíssimo e engraçado. Ontem, bem dentro do espírito da música, fazia momices durante o primeiro movimento da Sinfonia Clássica, marcando o tempo para quem caçava borboletas. É muita classe.

P.S. — E houve um bis. Um certo Andante Festivo, de Sibelius. É uma composição de um  movimento, originalmente escrito para quarteto de cordas em 1922. Em 1938, o compositor rearranjou a peça para orquestra de cordas e tímpanos. É um belíssimo e lírico fluxo de temas que só pode ser considerado festivo na Finlândia.

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11 de dezembro de 2008

Hoje, o compositor americano Elliott Carter completa 100 anos de vida. Escrevo este texto às 21h30 da noite de 10 de dezembro de 2008. Há 15 anos, mais ou menos neste horário, encontrei meu pai no Supermercado Zaffari da Av. Ipiranga, em Porto Alegre. Fiz o que sempre fazia com ele e ele comigo: dei-lhe um encontrão por trás e…

— Desculpe, senhor… Nossa! Pai! Tu aqui?

Conversamos sobre os CDs que ele comprara e que ouviríamos — um minuto por faixa, a toda velocidade — no dia seguinte, durante o almoço. Sempre almoçava lá aos sábados.

Às seis da madrugada daquele sábado, minha mãe ligou. Não gritava, apenas falava rápido parecendo que queria me acalmar. Disse que encontrara meu pai deitado no banheiro; não disse caído, disse deitado porque ele estava reto de costas, com a mão no peito, como se tivesse lentamente sentado no chão e depois deitado, esperando que a dor do enfarto passasse.

Quando cheguei em casa a equipe da Unimed, minha mãe e irmã cercavam o corpo. Ou não, acho que minha irmã chegou depois. O cara da Unimed me fez um sinal com o polegar para baixo. A mãe dizia que não o tinha visto sair da cama e que fizera tudo o que sabia: respiração boca a boca, pressão no peito, etc. Tratei de consolá-la. Fim.

Tive receio que Carter não chegasse ao fatídico 11 de dezembro, mas chegou. 100 anos! É incrível que esteja produzindo. Estreou 10 novas obras entre 2006 a 2008, dos 98 aos 100… Fantástico. No dia 8 de agosto passado, terminou uma peça para grande orquestra chamada Wind Rose. Suas obras são dificílimas, quase inviáveis. P.Q.P. Bach publicou seu Concerto para Piano e o Concerto para Orquestra. Talvez haja alguma homenagem hoje. Não consigo imaginar música mais complicada.

Espero um 11 de dezembro tranqüilo. Haverá concertos em Nova Iorque (onde Carter reside), Washington, Montreal, Amsterdam, Berlim, Helsinki, Viena, etc. e gostaria de saber se alguma publicação brasileira fará referência ao aniversário de Carter. Duvido muito. A conferir.

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