Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVIII – A Cartuxa de Parma, de Stendhal

Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XXVIII – A Cartuxa de Parma, de Stendhal

Que romance é tão essencial que até os mortos querem saber do que se trata? Descobri que no início do livro de Jean Giraudoux, Bella (1926, jamais traduzido para o português), o narrador, ao participar de um serviço funeral para os colegas de escola que caíram nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, passa a ouvir as vozes de seus amigos mortos. A maior parte deles falam sobre coisas mundanas e militares: os desconfortos da guerra, os insuportáveis oficiais comandantes. Mas a última voz é a de um jovem atormentado pelo pensamento de que nunca teve a chance de ler certo romance. O que o jovem morto quer é que o narrador resuma A Cartuxa de Parma. Sim, este é um livro que você deve ler antes de morrer, para usar um lugar comum.

A Cartuxa de Parma, de Stendhal, é um belíssimo épico político, além de uma história muito íntima de intrigas amorosas e sérias frustrações eróticas, ambientado na corte principesca de Parma, durante a época do próprio autor. Desde o momento em que apareceu, em 1839, o último romance completo de Stendhal foi considerado uma obra-prima. Apenas um ano após sua publicação, Balzac o elogiou em uma longa resenha que imediatamente estabeleceu a reputação do romance. ”Vejo perfeição em tudo” foi apenas um dos louros que Balzac deu à Cartuxa, no que foi certamente um dos maiores atos de generosidade literária que se conhece. Sessenta anos depois de Balzac, André Gide classificou o livro como o maior de todos os romances franceses e uma das duas únicas obras em língua francesa que poderiam ser contadas entre as 10 melhores da literatura mundial. (O outro seria As Ligações Perigosas). E há mais: em um artigo de 1874, Henry James colocou Cartuxa “entre os dez melhores romances de todos os tempos”. Eu, pequeno e humilde, faço o mesmo.

À primeira vista, o esqueleto da história de Stendhal sugere um simples romance histórico. A história começa com a tentativa do jovem e obstinado aristocrata italiano Fabrício del Dongo de ter uma vida coerente consigo mesmo como soldado no exército de Napoleão. Ele não sabe nada de guerra ou de armas e a cena cômica de que ele participa em Waterloo sem saber bem onde está, o que deve fazer e sentindo nojo de tudo aquilo, ensinou o Tolstói de Guerra e Paz. O russo confessou que sabia este capítulo de cor e salteado. Mas sigamos o Cartuxa sem dar muitos spoilers. Depois, de forma absolutamente cínica, Fabrício tenta estabelecer-se como prelado na Igreja Católica Romana sem desgrudar de suas muitas amantes. Há as tentativas de sua bela tia Gina, duquesa de Sanseverina, e de seu amante, o astuto (e casado) primeiro-ministro conde Mosca, para ajudar a estabelecer Fabrício na corte. Há a prisão de Fabrício na temida Torre Farnese. Há também seu caso de amor infeliz com a linda — e um tanto chata — filha de seu carcereiro, Clélia.

Então o que, exatamente, torna o Cartuxa tão indispensável para o soldado de Giraudoux? Ora, parece-me que Cartuxa exala um ar incomparável do qual todo ser humano precisa absolutamente ter respirado pelo menos uma vez. Não que este ar seja puro… Em nossos dias, estamos quase tão longe do romance de Giraudoux quanto os personagens de Giraudoux estavam da publicação de Stendhal. Por que o romance continua tão novo?

Em 4 de novembro de 1838, Stendhal (o mais famoso dos mais de 200 pseudônimos usados ​​por Henri-Marie Beyle, um diplomata de carreira nascido em Grenoble e amante de todas as coisas italianas, principalmente das mulheres) sentou-se em sua mesa no número 8 da Rue Caumartin em Paris, deu ordens para que não fosse incomodado mesmo que a cidade estivesse pegando fogo e começou a ditar um romance. O manuscrito foi concluído em apenas sete semanas, no dia seguinte ao Natal — um feito impressionante, quando você pensa que uma edição típica tem 500 páginas. A rapidez de sua composição se reflete na vivacidade narrativa pela qual o livro é tão bem conhecido. (Há momentos onde a velocidade claramente cobrou seu preço. Duas ou três vezes, Stendhal volta para explicar fatos que deixou para trás, mas até isso faz com grande charme).

A ideia do livro estava martelando a cabeça de Stendhal há algum tempo. Seus diários do final da década de 1820 estão cheios de anotações sobre as histórias complicadas da nobreza italiana. Os esboços do romance devem muito a uma crônica do século XVII sobre a vida de Alessandro Farnese, mais tarde Papa Paulo III, que Stendhal conhecia. (Farnese, que se tornou Papa em 1534, tinha uma linda tia, Vandozza Farnese que era amante do astuto Rodrigo Borgia. Ele assassinou o criado de uma jovem. Foi preso e escapou. Finalmente, manteve como amante uma mulher chamada Cléria.) Então, embora a extraordinária velocidade da composição do romance possa ser atribuída a um lampejo quase sobrenatural de inspiração, ela também pode ser vista como resultado de um longo processo.

Assim como as circunstâncias de sua criação, o romance parece espontâneo. O ritmo rápido da narrativa é compensado por uma avaliação fria e sarcástica da natureza humana e, em particular, da política. Stendhal era um liberal que, como jovem idealista, seguiu Napoleão para a Itália, Áustria e Rússia. Depois, viu-se como diplomata em uma época de alto cinismo político. O desgosto com a complacência burguesa de seus compatriotas desempenhou um papel importante em sua admiração pelos italianos, que considerava mais autênticos — mais profundos e mais suscetíveis a emoções violentas –, como ele escreveu em seu diário. A paixão italiana está evidente no livro, mas é o ímpeto, a velocidade do romance, que o faz uma leitura tão boa.

O que torna incontornável A Cartuxa de Parma não é seu estilo urgente, até mesmo impaciente (“Aqui pediremos permissão para passar, sem dizer uma única palavra sobre eles, por um intervalo de três anos”). O livro é uma lição de política, da linha tortuosa da política. Mosca e Gina são craques. Gina é também uma hábil manipuladora amorosa, mas parece desejar o impossível. Os personagens são vítimas de emoções incontroláveis. Há também o herói do romance, Fabrício, que, quando adolescente, desobedece seu pai conservador e foge para lutar por Napoleão. O que mais ressoa para os leitores não é o idealismo de Fabrício — que é, afinal, endêmico entre os protagonistas de romances românticos –, é que ele é sistematicamente desmentido pelas duras e ocasionalmente ridículas realidades da vida. (Fabrício, para nossa alegria como leitores, dorme durante boa parte de Waterloo). Mas há mais alguma coisa moderna: a forma com que o bom senso lhe escapa, às vezes disfarçado de inteligência…

Fabrício tenta se moldar a algum plano — um plano que, como o romance demonstra, nunca é capaz de seguir. Isto mais parece século XXI do que XIX. Não é de se admirar que ele se expresse tão frequentemente na interrogativa: “O que vi foi uma batalha? Essa batalha foi Waterloo?”, “Sou tão hipócrita?”. Uma medida irônica da incapacidade de Fabrício de dominar a arte de viver é que ele encontra a verdadeira felicidade apenas na segurança uterina de sua cela de prisão na Torre Farnese (como muitos notaram, ele está preso por exatamente nove meses), da qual ele reluta em escapar depois de se apaixonar por Clélia.

Fabrício não é o único personagem vívido e estranhamente contemporâneo aqui; você poderia facilmente argumentar que os verdadeiros heróis são sua tia e seu amante. Mestres políticos e sociais, eles são muito mais complicados e interessantes do que o jovem que eles passam tanto tempo tentando, em vão, estabelecer numa vida adulta. (Mosca para Gina: “Podemos encontrar para você um marido novo e acomodado. Ele teria que ser extremamente avançado em anos, pois por que você deveria me negar a esperança de eventualmente substituí-lo?”) Gina, em particular, é uma das grandes criações da imaginação romanesca do século XIX: brilhante, sedutora, astuta, vulnerável, apaixonada e, ainda assim, impotente, presa de uma paixão proibida por seu lindo sobrinho. Nós a conhecemos aos 13 anos, tentando conter uma risadinha diante da aparência esfarrapada de um oficial napoleônico que foi alojado no opulento palácio de seu irmão e daquele momento em diante nunca conseguimos tirar os olhos dessa mulher que, apesar de sua posição social e do dilema em que se encontra, nunca é menos do que totalmente humana. Mosca, também, que, na geometria perfeita do amor não correspondido, adora Gina desesperadamente de uma forma que ele sabe que nunca será correspondido, é uma criação intrincada, complexa e conflituosa em sua vida pública e privada. Além disso, é vítima de paixões eróticas que o agarram, na prosa extraordinária de Stendhal, “como uma cãibra”.

Não podemos esquecer que o ímpeto narrativo é claramente o trabalho de um escritor que, como seu herói, se rebelou em sua juventude contra sua família estupidamente convencional, um homem que queria ser conhecido como um artista e amante de mulheres. (O epitáfio de Stendhal, em italiano, que ele concebeu quando ainda tinha 30 anos, diz: “Ele viveu. Ele escreveu. Ele amou.”) Mas A Cartuxa também é o trabalho de um diplomata experiente, muito familiarizado com a política e os compromissos que a vida impõe. A voz mais velha do autor aparece no destino que ele escolhe para seus personagens.

Então, o romance é parte Fabrício e parte Mosca e Gina. Ou, para colocar de outra forma, ele contém as melhores qualidades de seus rivais franceses contemporâneos: ele tem as conspirações de Balzac, com assassinatos, documentos forjados, disfarces e a hipocrisia motivada pela política, e também o estilo glacial de Flaubert. Em outras palavras, tem algo para todos.

A Cartuxa transmite claramente o que Henry  James chamou de ”inquietação” da ”mente superior” de Stendhal por meio de uma série de escolhas sutis, mas bastante concretas. Há romantismo, mas há o estilo muito francês que Proust chamou de “voltairiano”, o estilo de ironia do século XVIII.

Antes de explicar o que significa, afinal, cartuxa, posso tentar dizer o que há no mundo de A Cartuxa de Parma? Há acertos públicos e erros privados, erros públicos e acertos privados, banquetes com inimigos, velocidade, história épica com detalhes jornalísticos, amores desastrosamente insatisfeitos, idealismo, cinismo, negligência da juventude satisfeita, tristes sabedorias da velhice, minutos dos quais a gente lembra em detalhes e três anos que não interessam, grandeza, desordens, magnificência.

Não é de se admirar que o jovem soldado de Giraudoux tenha sentido que precisava conhecer A Cartuxa de Parma. O que mais os mortos desejariam que não fosse a vida?

P.S. — Stendhal gostava de títulos estranhos. Ele jamais explicou o motivo pelo qual outra obra-prima sua se chamava O Vermelho e o Negro. Já a tal A Cartuxa de Parma é citada de passagem apenas no antepenúltimo parágrafo do livro… O que é? É um convento da ordem religiosa dos cartuxos. Esta ordem religiosa de grande austeridade foi fundada por São Bruno em 1066.


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