Em 21 de novembro de 1811, Heinrich von Kleist, nascido em 1777, suicidou-se. Tinha 34 anos. Era pobre, estava endividado, sentia-se fracassado. Após sua morte, transformou-se em lenda, aclamado como gênio. Na novela Michael Kohlhaas, Kleist antecipou a seu modo o que seria Kafka. Um século depois, Kafka fazia leituras públicas de trechos da novela.
A história deste livrinho — Kohlhaas tem aproximadamente 105 páginas — tão difícil de encontrar no Brasil é simples. Michael Kohlhaas é um negociante de cavalos que necessita passar pela propriedade do junker von Tronka com alguns animais. Mas lhe pedem um salvo-conduto para que possa atravessá-la.
Kohlhaas, pessoa de indiscutível retidão e obediência às leis, desconfia de uma invencionice, mas deixa dois animais como garantia. Dias depois, ao retornar a fim de retirar seus cavalos, vê que estes estão magros e maltratados. Indignado, decide que só os aceitará de volta quando estiverem nas condições em que os deixou. A partir da negativa de von Tronka em alimentar os animais, Kohlhaas passa a perseguir obsessivamente um único objetivo: fazer com que seus animais sejam devolvidos no estado em que foram deixados. A grandiosidade do texto e de suas implicações religiosas, de direito e de poder, além da discussão filosófica e metafísica, é impossível de abarcar uma simples resenha. (Não esqueçam do link acima).
A solidão de Kohlhaas e sua necessidade interna de justiça são avassaladoras. Mesmo utilizando fundamentos jurídicos simples, justos e perfeitamente claros, Kohlhaas vê-se cada vez mais impossibilitado de chegar à lei em razão das negativas e das amizades de von Tronka, das oscilações do direito e das relações do poder. Então, procura fazer justiça por si mesmo. Arma uma espécie de grupo guerrilheiro versão século XVI; invade cidades em busca de von Tronka e da justiça; desafia governos; chega ao ponto de entrar nos aposentos de Martinho Lutero a fim de discutir o caso. O diálogo de ambos é brilhante. Kohlhaas afirma que desistirá do caso se Martinho Lutero assim o desejar. Lutero chama-o de louco mas desiste de pedir a Kohlhaas que pare após ouvir seus argumentos. Para Kohlhaas é fundamental viver numa terra onde seus direitos estejam assegurados.
Não pensem que a novela restringe-se ao social. Ela é sociológica e ontológica. A psicologia e as justificativas de Kohlhaas para punir com as armas quem se interponha entre ele e a lei são esmiuçadas por Kleist. Em certos momentos, desejamos auxiliar o criminoso a encontrar o desonesto von Tronka e minuciosamente matá-lo… A vingança é desproporcional? Kohlhaas poderia muito bem alimentar seus cavalos e esquecer o pleito? Pois é.
Pelo amor exacerbado à lei, torna-se ladrão e assassino. Este livro — que deveria constar nos Cursos de Direito — me fala muito de perto e talvez este sentimento possa ser compartilhado por vários de vocês. A narrativa de Kleist é vertiginosa e guarda pouca relação com o verboso romantismo. É romântica pelo idealismo, nunca pelo palavreado inútil. A narrativa tem a obsessão e o ritmo de Kohlhaas. Kleist conta a história em linha reta, sem tergiversões ou divagações. É um legítimo pré-Kafka. Agora, por que há tão poucas edições no Brasil? Ah, meu amigo…