Entrevista com László Krasznahorkai (verão de 2018)

Entrevista com László Krasznahorkai (verão de 2018)

Entrevistado por Adam Thirlwell para a The Paris ReviewLink para o original

László Krasznahorkai nasceu em 1954 em Gyula, uma cidade provinciana da Hungria, durante a era soviética. Publicou seu primeiro romance, Satantango, em 1985, seguido por A Melancolia da Resistência (1989), Guerra e Guerra (1999) e O retorno do barão de Wenckheim (2016). Esses romances, com seus gigantescos acréscimos de linguagem, erudição global (ele está tão familiarizado com os clássicos da filosofia budista quanto com a tradição intelectual europeia), personagens obsessivos e paisagens encharcadas pela chuva, podem dar uma impressão de altivez endurecida do modernismo tardio, mas também são pontilhistas, elegantes e delicadamente engraçados. Sua gravidade tem elegância — uma colisão de tons visível em outras obras que ele produziu junto com os romances, que incluem contos como Animalinside (2010) e textos geograficamente mais vastos como Destruction and Sorrow Beneath the Heavens (2004) e Seiobo There Below (2008). 

Krasznahorkai em 1990

Embora Krasznahorkai ainda tenha uma casa na Hungria, mora principalmente em Berlim. A primeira vez que tentei chegar a Berlim vindo de Londres para começar esta entrevista, no inverno de 2016, meu voo foi cancelado devido à neblina. Algumas horas depois, com meu novo voo na pista, fomos informados de que problemas técnicos atrasariam ainda mais nossa partida. Tendo finalmente chegado a Berlim e encontrado um táxi — dirigindo em uma velocidade assustadoramente alta porque, como o motorista me disse, precisava desesperadamente encontrar um banheiro —, encontrei Krasznahorkai em frente à entrada do metrô na Hermannplatz, doze horas depois de ter saído de Londres. Eu poderia muito bem tê-lo encontrado em Pequim. Essa farsa de viagem contemporânea prolongada, pensei, parecia incongruentemente cômica. Mas então reconsiderei: a arte de Krasznahorkai sempre foi hospitaleira ao absurdo, às maneiras como o mundo se personifica e se torna um oponente implacável. 

Krasznahorkai fala inglês com uma sedutora inflexão da Europa Oriental e um sotaque americano ocasional, resultado de sua estadia no apartamento de Allen Ginsberg em Nova York, nos anos 90. Krasznahorkai é um homem grande e gentil, frequentemente rindo ou sorrindo, e cheio de carinho e cuidado. Ele me emprestou um suéter quando eu parecia estar com frio, me presenteou com a coletânea de poesias Una Storia Vera, de Durs Grünbein , e me recomendou gravações de György Kurtág. Com seus cabelos longos e olhos tristes, ele parece um santo benevolente. Ele também é um homem de absoluta privacidade; portanto, nunca quis nos encontrar em seu apartamento. Em vez disso, conduzimos longas sessões em seus arredores, em vários cafés e restaurantes ao redor de Kreuzberg.

—Adam Thirlwell

ENTREVISTADOR

Vamos falar sobre seu início como escritor. 

KRASZNAHORKAI

Eu achava que a vida real, a vida verdadeira, estava em outro lugar. Além de O Castelo, de Franz Kafka, minha bíblia por um tempo foi Sob o Vulcão, de Malcolm Lowry . Isso foi no final dos anos 60, início dos anos 70. Eu não queria aceitar o papel de escritor. Queria escrever apenas um livro — e depois disso, queria fazer coisas diferentes, especialmente com música. Queria viver com as pessoas mais pobres — achava que essa era a vida real. Vivi em vilarejos muito pobres. Sempre tive empregos muito ruins. Mudava de lugar com muita frequência, a cada três ou quatro meses, para escapar do serviço militar obrigatório. 

E então, assim que comecei a publicar algumas coisinhas, recebi um convite da polícia. Talvez eu tenha sido um pouco impertinente demais, porque depois de cada pergunta eu dizia: “Por favor, acredite em mim, eu não lido com política.” “Mas sabemos algumas coisas sobre você.” “Não, eu não escrevo sobre política contemporânea.” “Nós não acreditamos em você.” Depois de um tempo, fiquei um pouco irritado e disse: “Você realmente imagina que eu escreveria algo sobre pessoas como você?” E isso os enfureceu, é claro, e um dos policiais, ou alguém da polícia secreta, quis confiscar meu passaporte. No sistema comunista da era soviética, tínhamos dois passaportes diferentes, azul e vermelho, e eu só tinha o vermelho. O vermelho não era tão interessante porque com ele você só podia ir para países socialistas, enquanto o azul significava liberdade. Então eu disse: “Você realmente quer o vermelho?” Mas eles ainda o tiraram, e eu não tive passaporte até 1987. 

Essa foi a primeira história da minha carreira de escritor — e poderia facilmente ter sido a última. Recentemente, nos documentos da polícia secreta, encontrei anotações onde eles discutem potenciais informantes e espiões. Eles tiveram alguma chance com meu irmão, escreveram, mas com László Krasznahorkai, seria absolutamente impossível, porque ele era extremamente anticomunista. Isso parece engraçado agora, mas na época não era tão engraçado. Mas eu nunca fiz nenhuma manifestação política. Eu apenas morava em pequenas vilas e cidades e escrevi meu primeiro romance. 

ENTREVISTADOR

Como você publicou isso? 

KRASZNAHORKAI

Era 1985. Ninguém — inclusive eu — conseguia entender como era possível publicar Satantango, já que se trata de um romance tudo menos inofensivo para o sistema comunista. Naquela época, o diretor de uma das editoras de literatura contemporânea era um ex-chefe da polícia secreta, e talvez quisesse provar que ainda tinha poder — poder suficiente para mostrar que tinha coragem de publicar este romance. Acho que essa foi a única razão pela qual o livro foi publicado.

ENTREVISTADOR

Que tipo de trabalho você estava fazendo?

KRASZNAHORKAI

Fui mineiro por um tempo. Era quase cômico — os verdadeiros mineiros tinham que me substituir. Depois, tornei-me diretor de várias casas de cultura em vilarejos distantes de Budapeste. Cada vilarejo tinha uma casa de cultura onde as pessoas podiam ler os clássicos. Essa biblioteca era tudo o que tinham no dia a dia. E às sextas ou sábados, o diretor da casa de cultura organizava uma festa musical, ou algo parecido, o que era muito bom para os jovens. Eu era diretor de seis vilarejos bem pequenos, o que significava que eu sempre me mudava de um para o outro. Era um ótimo trabalho. Eu adorava porque estava muito longe da minha família burguesa. 

O que mais? Eu era vigia noturno de trezentas vacas. Era o meu favorito — um estábulo em terra de ninguém. Não havia vila, cidade ou vilarejo por perto. Fui vigia por alguns meses, talvez. Uma vida pobre com Sob o Vulcão em um bolso e Dostoiévski no outro.

E, claro, nessas Wanderjahre, comecei a beber. Havia uma tradição na literatura húngara de que os verdadeiros gênios eram bêbados completos. E eu também era um bêbado louco. Mas chegou um momento em que eu estava sentado com um grupo de escritores húngaros que concordavam, tristemente, que isso era inevitável, que qualquer gênio húngaro tinha que ser um bêbado louco. Recusei-me a aceitar isso e fiz uma aposta — de doze garrafas de champanhe — que nunca mais beberia. 

ENTREVISTADOR

E você não fez isso? 

KRASZNAHORKAI

Não. Mas, ainda assim, naquela época, entre os prosadores contemporâneos, havia um escritor e bebedor em particular — Péter Hajnóczy. Ele era uma lenda viva e um alcoólatra completo e profundo, como Malcolm Lowry. Sua morte foi o maior acontecimento da literatura húngara. Ele era muito jovem, talvez quarenta anos. E essa era a vida que eu vivia. Eu não me preocupava com nada — era uma vida muito aventureira, sempre em trânsito entre duas cidades, em estações de trem e bares à noite, observando as pessoas, tendo pequenas conversas com elas. Lentamente, comecei a escrever o livro na minha cabeça. 

Era bom trabalhar assim, porque eu tinha uma forte sensação de que a literatura era um campo espiritual — que em outros lugares, na mesma época, Hajnóczy, János Pilinszky, Sándor Weöres e muitos outros poetas maravilhosos viveram e escreveram. A literatura em prosa era menos poderosa. Gostávamos muito mais de poesia porque era mais interessante, mais secreta. A prosa era um pouco próxima demais da realidade. A ideia de um gênio da prosa era alguém que se mantinha muito próximo da vida real. É por isso que, tradicionalmente, os prosadores húngaros, como Zsigmond Móricz, compunham em frases curtas. Mas não Krúdy, meu único escritor querido da história da literatura em prosa húngara. Gyula Krúdy. Um escritor maravilhoso. Certamente intraduzível. Na Hungria, ele era um Don Giovanni — dois metros de altura, um homem enorme, um homem fenomenal. Ele era tão sedutor que ninguém conseguia resistir.

ENTREVISTADOR

E suas frases? 

KRASZNAHORKAI

Ele usava frases de forma diferente de qualquer outro prosador. Sempre soou como um homem ligeiramente bêbado, muito melancólico, sem ilusões sobre a vida, muito forte, mas cuja força é totalmente desnecessária. Mas Krúdy não era um ideal literário para mim. Krúdy era uma pessoa para mim, uma lenda que me dava algum poder quando decidi escrever algo. János Pilinszky era minha outra lenda. Em um sentido literário, Pilinszky era muito mais importante para mim por causa de sua linguagem, seu jeito de falar. Tentarei imitá-lo. 

Caro Adam, não deveríamos esperar por um apocalipse, estamos vivendo agora em um apocalipse. Meu querido Adam, por favor, não vá a lugar nenhum, a lugar nenhum…

Muito agudo, lento, com todas essas pausas entre as palavras. E as últimas letras de cada palavra eram sempre expressas com muita clareza. Como um padre numa catacumba — sem esperança, mas com uma esperança enorme ao mesmo tempo. Mas ele era diferente de Gyula Krúdy. Pilinszky era como um cordeiro. Não um ser humano — um cordeiro.

ENTREVISTADOR

Havia muita coisa disponível em tradução? 

KRASZNAHORKAI

Houve uma época, nos anos 70, em que tínhamos muita literatura ocidental. William Faulkner, Franz Kafka, Rilke, Arthur Miller, Joseph Heller, Marcel Proust, Samuel Beckett — quase toda semana havia uma nova obra-prima. Como não podiam publicar suas próprias obras sob o regime comunista, os maiores escritores e poetas se tornaram tradutores. É por isso que tínhamos traduções maravilhosas de Shakespeare, Dante, Homero e de todos os grandes escritores americanos, de Faulkner em diante. A primeira tradução de O Arco-Íris da Gravidade, de Pynchon, foi realmente maravilhosa. 

ENTREVISTADOR

E Dostoiévski? 

KRASZNAHORKAI

Sim. Dostoiévski desempenhou um papel muito importante para mim — por causa de seus heróis, não por causa de seu estilo ou de suas histórias. Você se lembra do narrador de “Noites Brancas”? O personagem principal é um pouco como Mishkin em O Idiota , uma figura pré-Mishkin. Eu era um fã fanático desse narrador e, mais tarde, de Mishkin — de sua vulnerabilidade. Uma figura angelical e indefesa. Em todos os romances que escrevi, você pode encontrar uma figura assim — como Estike em Satantango ou Valuska em Melancolia , que são feridos pelo mundo. Eles não merecem essas feridas, e eu os amo porque eles acreditam em um universo onde tudo é maravilhoso, incluindo a existência humana, e eu honro muito o fato de que eles são crentes. Mas sua maneira de pensar sobre o universo, sobre o mundo, essa crença na inocência, não é possível para mim. 

Para mim, pertencemos mais ao mundo dos animais. Somos animais, somos apenas os animais que venceram. No entanto, vivemos em um mundo altamente antropomórfico — acreditamos que vivemos em um mundo humano, no qual há um lugar para os animais, para as plantas, para as pedras. Isso não é verdade. 

ENTREVISTADOR

Então você quer dizer que sua própria filosofia seria puro materialismo? 

KRASZNAHORKAI

Ah, não, Mishkin também é real. Desculpe.

ENTREVISTADOR

Não, conte-me mais.

KRASZNAHORKAI

Franz Kafka é uma pessoa. Ele é Franz Kafka, com sua história de vida, com seus livros. Mas K. está lá, em um espaço celestial no universo, e talvez alguns personagens dos meus romances também vivam lá. Por exemplo, Irimiás e o médico de Satantango, ou o Sr. Eszter e Valuska de Melancolia, ou, do meu novo romance, o Barão. Eles são absolutos — eles vivem. Eles existem no lugar eterno.

Você pode argumentar que Mishkin é apenas ficção? Claro. Mas não é a verdade. Mishkin pode ter entrado na realidade através de outra pessoa, através de Dostoiévski, mas agora, para nós, ele é uma pessoa real. Cada personagem na chamada ficção eterna surgiu através de pessoas comuns. Este é um processo secreto, mas tenho certeza absoluta de que é verdade. Por exemplo, alguns anos depois de ter escrito Satantango, eu estava em um bar e alguém tocou meu ombro. Era Halics de Satantango. Sério! Não estou brincando! É por isso que me tornei mais cuidadoso com o que escrevo. Por exemplo, o texto original de Guerra e Guerra era bem diferente da versão que publiquei. As primeiras cem páginas originalmente tratavam da autodestruição de Korin, mas eu tinha medo de encontrá-lo naquela condição mais tarde e não ser capaz de ajudá-lo. Eu tinha medo da possibilidade de que ele nunca mais deixasse sua pequena cidade. Foi por isso que escolhi tirá-lo de lá — com seu desejo de ir apenas uma vez, no fim da vida, para o centro do mundo. Eu não tinha decidido que seria Nova York, mas foi assim que me libertei da história de que ele viveria para sempre naquele lugar provinciano. 

ENTREVISTADOR

Estou pensando no que você disse sobre os humanos viverem em um mundo antropomórfico. Às vezes me ocorre que romances são tão alegremente antropocêntricos. Onde estão os polvos? Onde estão as algas? Uma das coisas que adoro nos seus romances é que eles tentam não ser tão, por assim dizer, provincianos humanos . Mas também parece um paradoxo. O que mais poderiam ser? 

KRASZNAHORKAI

Isso é muito importante. A estrutura do romance pode ser antropocêntrica demais. É por isso que o problema do narrador é o primeiro problema, e permanece assim para sempre. Como remover o narrador de um romance? No meu romance mais recente, em cada página há apenas pessoas conversando entre si — e essa é uma maneira de evitar o narrador, mas é apenas uma técnica. Porque concordo com você — a estrutura do romance e do mundo é antropocêntrica. Mas se eu tivesse que escolher entre o universo sem estrutura e a humanidade com estrutura, eu escolheria a humanidade. 

Não temos a mínima ideia do que é o universo. Pessoas sábias sempre nos disseram que isso é a prova de que não devemos pensar, porque pensar não leva a lugar nenhum. Você apenas constrói sobre essa enorme construção de mal-entendidos, que é a cultura. A história da cultura é a história dos mal-entendidos de grandes pensadores. Portanto, sempre temos que voltar ao zero e começar de forma diferente. E talvez dessa forma você tenha a chance de não entender, mas pelo menos de não ter mais mal-entendidos. Porque este é o outro lado da questão — sou realmente tão corajoso a ponto de cancelar toda a cultura humana? De parar de admirar a beleza da produção humana? É muito difícil dizer não. 

ENTREVISTADOR

Mas você ainda escreve romances. 

KRASZNAHORKAI

Sim, mas talvez isso seja um erro. Eu respeito a nossa cultura. Respeito a alta articulação humana em todas as suas formas. Mas a raiz dessa cultura é falsa. E se não fizermos nada, tudo continua do mesmo jeito. E talvez isso seja o mais importante. Tudo deve continuar sem pensar em essências, no que é, e outras questões semelhantes. 

ENTREVISTADOR

Como se a escrita, e toda forma de arte, devesse se tornar um ritual sem teologia? 

KRASZNAHORKAI

Talvez seja possível pensar na escrita como um ritual a ser realizado — algo repetido, palavra após palavra, frase após frase. Não no sentido da vanguarda clássica do início do século XX, como o Dadá, por exemplo, que não levou grandes artistas a lugar nenhum porque negligenciaram o conteúdo e esse foi, pobres gênios, o erro deles. Mas se você pensar na escrita como um ritual que você realiza, e se você for capaz de se ver ao mesmo tempo, que você está lá na Terra e escreve palavra após palavra após palavra… e então você tem um livro. Você para. Você fecha o livro. E você abre outro, com páginas em branco. E você escreve novamente, escreve novamente, escreve novamente. Palavra após palavra. Frase após frase. Fecha o livro. O próximo… Isso é um ritual. Talvez não seja como você pensa sobre sua escrita, mas talvez seja o que você faz. 

Mas este é o ponto em que devemos nos lembrar dos nossos leitores. Porque os leitores precisam, espero, dos nossos escritos. E neste pequeno espaço — onde escrevemos livros, romances, poemas — também há um lugar para os nossos leitores. Essa simpatia, esse sentimento é muito importante — encontrar uma essência comum entre escritores, que criam formas, e leitores, que precisam do que fazemos. Isso também dá algum sentido a este pequeno espaço, que de um nível mais alto vemos como um completo absurdo. Então, talvez o universo esteja cheio de pequenos espaços — cada um com seu próprio tempo, essência, personagens, criação, eventos e assim por diante. Diferentes ideias de tempo para diferentes espaços. Assim como estamos aqui, no universo, dentro do nosso pequeno espaço humano. 

ENTREVISTADOR

Como você chegou ao seu estilo — essas frases grandiosas e vastas? 

KRASZNAHORKAI

Encontrar um estilo nunca foi difícil para mim, porque eu nunca o procurei. Eu vivia uma vida reclusa. Sempre tive amigos, mas apenas um de cada vez. E com cada amigo, eu tinha um relacionamento em que falávamos um com o outro apenas em monólogos. Um dia, uma noite, eu falava. No dia ou noite seguinte, ele falava. Mas o diálogo era diferente a cada vez, porque queríamos dizer algo muito importante para a outra pessoa, e se você quer dizer algo muito importante, e se você quer convencer seu parceiro de que isso é muito importante, você não precisa de pontos finais ou pontos finais, mas de respirações e ritmo — ritmo, andamento e melodia. Não é uma escolha consciente. Esse tipo de ritmo, melodia e estrutura de frases veio, na verdade, do desejo de convencer outra pessoa. 

ENTREVISTADOR

Nunca foi literário? Nunca se relacionou com outros estilos, como o de Proust ou o de Beckett? 

KRASZNAHORKAI

Talvez quando eu era adolescente, mas isso era mais uma imitação da vida deles, não da linguagem, não do estilo deles. Tenho uma relação especial com Kafka porque comecei a lê-lo muito cedo, tão cedo que não conseguia entender do que se tratava, digamos, O Castelo. Eu era muito jovem. Eu tinha um irmão mais velho e queria ser como ele, então roubava os livros dele e os lia. É por isso que Kafka foi meu primeiro escritor — um escritor que eu não conseguia entender, mas também um sobre o qual eu me questionava como pessoa. Um dos meus livros favoritos quando eu tinha doze ou treze anos era Conversas com Kafka , de Gustav Janouch. Com este livro, eu tinha um canal especial para Kafka. 

E talvez tenha sido por isso que estudei Direito — para ser como Kafka. Meu pai ficou um pouco surpreso. Ele queria que eu fosse para a faculdade de Direito, mas tinha certeza de que eu recusaria, porque eu só me interessava por arte — literatura, música, pintura, filosofia, tudo, exceto Direito. Mas eu aceitei, em parte, acho, porque queria lidar com psicologia criminal. Naquela época, início dos anos 70, era uma ciência proibida na Hungria. Era ocidental e, portanto, suspeita. Mas o principal motivo, eu acho, foi Kafka. É claro que, depois de três semanas, eu não aguentava mais o clima e saí — não apenas da faculdade de Direito, mas da cidade em si.  

ENTREVISTADOR

Onde foi isso?

KRASZNAHORKAI

Uma cidade chamada Szeged. Por causa do sistema de serviço militar, não foi fácil sair. Se eu saísse, tinha que voltar para o serviço militar. Normalmente, o serviço militar durava dois anos, mas se você se formasse, só precisava cumprir um ano. No entanto, se você saísse da universidade mais cedo, tinha que voltar para o segundo ano. Então, morei por um tempo em Budapeste, estudando religião e filologia. Continuei meus antigos estudos de grego e latim, mas os exames eram difíceis porque eu não estava na universidade. Então, finalmente, depois de quatro anos, tive filhos. E com filhos, o problema do serviço militar estava resolvido, porque se você tivesse dois filhos, estaria livre dessa terrível obrigação. 

O serviço militar, para mim, era quase uma morte. Durante o ano inteiro, nunca obtive permissão para sair do campo. Eu não era um herói nem um pacifista, mas se você estivesse em um posto de observação, tinha que ficar lá com uma arma e não fazer nada. Às vezes, um oficial vinha me observar, e se eu estivesse lendo Kafka, não conseguia parar porque Kafka era mais interessante do que um oficial idiota, então eu sempre recebia punições na prisão do campo. Isso não era tão terrível, mas também significava que eu não conseguia permissão para sair do campo. E isso era terrível — estar lá, o tempo todo. 

O início do meu serviço foi o mais difícil. Quando entrei no trem noturno, com outros novos soldados, fiquei completamente destruído. Não conseguia falar com ninguém. Todos queriam fazer piadas, menos eu. Descobri outro rapaz, um rapaz jovem, que estava no mesmo estado, então conversamos um pouco. Conversamos sobre como, se tivéssemos a oportunidade, nos visitaríamos. E depois de cerca de uma semana, quando tive um tempinho livre, fui ao prédio onde ele trabalhava e perguntei: “Onde posso encontrar esse cara?”. E alguém disse: “Terceiro andar”. No terceiro andar, perguntei novamente: “Onde posso encontrar esse cara?”. E alguém disse que ele estava no depósito de munições por causa de uma punição. Ele estava limpando as armas e, quando abri a porta, ele deu um tiro na boca. Exatamente no mesmo momento. Abri a porta e meu amigo deu um tiro na própria boca. Eu era criança. Éramos crianças. Mal tínhamos dezoito anos. 

Qual era sua pergunta? 

ENTREVISTADOR

Estou apenas tentando fazer uma cronologia aproximada. Você nasceu em Gyula, depois prestou serviço militar, estudou em Szeged, fez Wanderjahre e publicou Satantango. Você chegou a Berlim em 1987 e retornou à Hungria em 1989. 

KRASZNAHORKAI

E sempre de volta para a Alemanha.

No início dos anos 90, comecei a escrever Guerra e Guerra. Originalmente, eu queria saber o que a fronteira significava para o Império Romano. Fui, por exemplo, à Dinamarca, à Grã-Bretanha, à França, à Itália, à Espanha, a Creta — tentando encontrar ruínas, vestígios de defesas militares. Eu estava sempre viajando. Foi só em 1996, eu acho, que comecei realmente a escrever Guerra e Guerra , enquanto estava em Nova York, no apartamento de Allen Ginsberg.  

ENTREVISTADOR

Como você conheceu Ginsberg? 

KRASZNAHORKAI

Tínhamos um amigo em comum. E Allen era um cara muito simpático. No apartamento dele, a porta e a fechadura eram completamente desnecessárias. As pessoas entravam e saíam, entravam e saíam. Era fantástico estar lá, mas também muito perturbador fazer parte do círculo de Ginsberg. Durante o dia, eu podia trabalhar, e à noite, que era quando Allen realmente ganhava vida, eu podia participar das festas, das conversas e da música. Nunca contei a eles que vim de Gyula, mas nunca consegui esquecer, sabe? Que eu era, na verdade, o mesmo garoto provinciano, só que sem cabelo e com alguns dentes faltando, que ficou em choque quando se sentou na cozinha ao lado de Allen e entraram aqueles músicos, poetas, pintores — pessoas imortais. 

ENTREVISTADOR

Lembro-me de você uma vez falando sobre a sensação de atemporalidade que você sempre sente e relacionando isso ao fato de ter crescido sob o império soviético, que havia acabado com a história. 

KRASZNAHORKAI

Era uma sociedade atemporal porque queriam que você pensasse que as coisas nunca mudariam. Sempre o mesmo céu cinza e árvores sem cor e parques e ruas e prédios e cidades e vilas, e as bebidas terríveis nos bares e a pobreza e as coisas que você era proibido de dizer em voz alta. Você vivia em uma eternidade. Era muito deprimente. Minha geração foi a primeira que não só não acreditava na teoria comunista ou no marxismo, mas achava isso ridículo, constrangedor. Quando vivi o fim deste sistema político, foi uma maravilha. Nunca esquecerei o sabor da liberdade política. É por isso que agora tenho cidadania alemã, porque para mim a União Europeia significa, acima de tudo, liberdade política contra a estupidez agressiva que agora é o deus da Europa Oriental. Eu vim de um mundo burguês, onde a teoria comunista nunca desempenhou qualquer papel. Éramos social-democratas, minha família. 

ENTREVISTADOR

E seus pais eram judeus, não é? 

KRASZNAHORKAI

Meu pai tinha raízes judaicas. Mas ele só nos contou esse segredo quando eu tinha uns onze anos. Antes disso, eu não fazia ideia. Na era socialista, era proibido mencioná-lo. 

ENTREVISTADOR

Como seu pai sobreviveu à guerra?

KRASZNAHORKAI

Nosso nome original era Korin, um nome judeu. Com esse nome, ele jamais teria sobrevivido. Meu avô era muito sábio e mudou nosso nome para Krasznahorkai. Krasznahorkai era um nome irredentista. Após a Primeira Guerra Mundial, a Hungria perdeu dois terços de seu território, e a principal linha política do governo nacionalista conservador após a guerra era restaurar esses territórios perdidos. Havia uma canção muito famosa, uma canção insuportavelmente sentimental, sobre o Castelo de Krasznahorka. Após a guerra, ele se tornou parte da Tchecoslováquia. A essência da canção é que o Castelo de Krasznahorka é muito triste e sombrio, e tudo é sem esperança. Talvez seja por isso que meu avô o escolheu. Eu não sei. Ninguém sabe, porque ele era um homem muito silencioso. Isso foi em 1931, antes das primeiras leis judaicas húngaras. 

ENTREVISTADOR

Vamos falar mais sobre sua escrita. Uma coisa que me intriga é que você parece ter deixado bem claro que escreveu apenas quatro romances. 

KRASZNAHORKAI

Há SatantangoA melancolia da resistênciaGuerra e guerra e O retorno do barão de Wenckheim.

ENTREVISTADOR

Onde você colocaria, digamos, um texto como Animalinside ?

KRASZNAHORKAI

Animalinside é um romance, embora não no sentido estrito. Mas se algo é um romance ou um conto não depende do número de páginas. Escrevi alguns contos no início da minha carreira, em Relações da Graça (1986). Esses contos se desenvolvem em um espaço muito pequeno, em um período de tempo muito confinado, no meio do qual há um único personagem. Um romance contém uma construção enorme, como uma ponte, um arco, do início ao fim. No caso de um conto, não há necessidade de um arco. Em vez disso, um conto é uma caixa-preta, na qual ninguém sabe o que aconteceu. 

ENTREVISTADOR

E então, sobre o que é o novo romance, O retorno do barão de Wenckheim? É uma espécie de odisseia? 

KRASZNAHORKAI

Sim. Para o personagem principal, este é um retorno ao lar no final da vida. Ele é um homem muito idoso que mora em Buenos Aires. É um homem muito sensível e muito alto, como Gyula Krúdy. Mas muito azarado — ele sempre comete erros. 

ENTREVISTADOR

Então ele é seu Mishkin, seu personagem indefeso? 

KRASZNAHORKAI

Sim, como Estike. Porque este romance é o meu resumo, na verdade, de todos os meus romances — você pode encontrar muitos paralelos com outros personagens, outras histórias. Faço piadas sobre a palavra “satantango” e assim por diante. Este é o meu melhor romance, eu acho. 

ENTREVISTADOR

O seu melhor? 

KRASZNAHORKAI

O mais engraçado. O livro mais engraçado. Não está cheio de mensagens apocalípticas. Em vez disso, este é o apocalipse. Ele já chegou. 

ENTREVISTADOR

Mas então, sinto, em todos os seus livros, que o apocalipse já chegou, secretamente. Eu me pergunto se existem dois tipos de romancistas. Aqueles que veem cada romance como um objeto separado, e aqueles que pensam que escreveram um romance, que todos os seus romances se encaixam. 

KRASZNAHORKAI

Já disse mil vezes que sempre quis escrever apenas um livro. Não fiquei satisfeito com o primeiro, e por isso escrevi o segundo. Não fiquei satisfeito com o segundo, então escrevi o terceiro, e assim por diante. Agora, com Barão, posso encerrar esta história. Com este romance, posso provar que realmente escrevi apenas um livro na minha vida. Este é o livro — SatantangoMelancoliaGuerra e Guerra e Barão . Este é o meu único livro. 

ENTREVISTADOR

Você já desejou escrever algo completamente fora dos termos dessas ficções? 

KRASZNAHORKAI

Não. Não me incomoda que Johann Sebastian Bach permaneça o mesmo a vida toda. 

ENTREVISTADOR

Você frequentemente retorna a Bach — e a outros compositores barrocos, como Rameau. Qual a importância do Barroco para você? 

KRASZNAHORKAI

A música de Bach é estruturalmente complicada por causa da harmonia, e é por isso que não suporto música romântica. Depois do Barroco tardio, a música tornou-se cada vez mais vulgar, e o auge dessa vulgaridade ocorreu na época dos românticos. Existem alguns compositores excepcionais, como Stravinsky, Shostakovich, Bartók ou Kurtág, que eu admiro muito, mas sempre os considero exceções. Para mim, a história da música é uma descida. E depois de dois mil anos, isso também está acontecendo na literatura. Mas é muito difícil analisar esse processo de vulgarização. A terrível revolução que sempre aconteceria nas sociedades modernas, de fato, aconteceu. Não que a cultura de massa tenha vencido, mas o dinheiro. Ocasionalmente, uma obra literária de altíssimo nível acaba dizendo algo no nível médio e alcançando mais leitores — e talvez esse seja o destino de muitos escritores contemporâneos.

ENTREVISTADOR

E seus romances?

KRASZNAHORKAI

Não, meus romances não funcionam de jeito nenhum no nível intermediário, porque eu nunca faço concessões. Escrever, para mim, é um ato totalmente privado. Tenho vergonha de falar sobre minha literatura — é o mesmo que se você me perguntasse sobre meus segredos mais íntimos. Nunca fiz parte da vida literária porque não conseguia aceitar ser escritor no sentido social. Ninguém pode falar sobre literatura comigo — exceto você e algumas outras pessoas. Não fico feliz se tiver que falar sobre literatura, especialmente sobre a minha literatura. Literatura é algo muito privado. 

Quando escrevo um livro, o livro já está pronto na minha cabeça. Desde pequeno, eu trabalhava assim. Na minha infância, minha memória era bastante anormal. Eu tinha memória fotográfica. Então, eu encontrava a forma exata, uma frase, algumas frases, na minha cabeça, e quando estava pronto, eu escrevia. 

ENTREVISTADOR

Você não revisa? 

KRASZNAHORKAI

Trabalho quase o tempo todo, como um moinho que não para de girar. Se estou doente, não consigo. E se estou bêbado, não consigo. Mas, com essas exceções, trabalho e trabalho, porque uma frase começa e, ao lado dela, cem mil outras frases, como fios finíssimos de uma aranha. E uma delas será, de alguma forma, um pouquinho mais importante do que todas as outras, e eu a extraio, o suficiente para poder trabalhar com a frase, corrigi-la. E é por isso que, embora existam traduções maravilhosas dos meus livros, gostaria que vocês pudessem lê-las no original, porque quando estou trabalhando, a primeira coisa que faço com uma frase na cabeça é aperfeiçoar o elemento rítmico. Quando trabalho, uso o mesmo mecanismo comum à composição musical e à composição literária. Música, literatura e artes visuais têm uma raiz comum — estruturas de ritmo e andamento — e eu trabalho a partir dessa raiz. O conteúdo é absolutamente diferente no caso da música e no caso dos romances. Mas a essência, para mim, é realmente semelhante. 

ENTREVISTADOR

Você era uma espécie de prodígio do jazz, não? E tocava em bandas de jazz quando era jovem? 

KRASZNAHORKAI

Fui músico profissional dos quatorze aos dezoito anos.

ENTREVISTADOR

E Thelonious Monk foi o seu grande herói como pianista. Por que Monk? 

KRASZNAHORKAI

Muitas vezes me faço a mesma pergunta. Olhando para trás, é difícil explicar por que nosso gosto musical sob o regime soviético era tão perfeito. Estou tentando não parecer vaidoso. Eu tocava não apenas em uma banda de jazz, mas também em uma banda de rock, regularmente. Nossos shows eram festas para pessoas da classe trabalhadora. Recentemente, encontrei um pedaço de papel com os títulos das músicas que tocávamos, e tínhamos, sem dúvida, o melhor gosto. Não o meu gosto, mas o gosto da nossa geração. Naquela época, as fontes de jazz ou rock eram muito pequenas. Havia duas estações de rádio — a Rádio Free Europe, de Munique, e a Rádio Luxemburgo. Nossas gravações eram de péssima qualidade, já que gravávamos diretamente do rádio — em segredo, é claro, porque era proibido. Eu tinha um conhecido, um médico em um hospital em Gyula, que tinha uma enorme coleção de LPs, e ele me permitiu fazer gravações da coleção dele. Mas como escolhi as melhores músicas, eu não sei. Tocávamos Cream, Them, Blind Faith, Jimi Hendrix, Aretha Franklin, Dusty Springfield. O grupo mais convencional era o Kinks. O que mais? Troggs, Animals, Eric Burdon. Rolling Stones, claro. Nada de Beatles. Não sei por quê, mas nada de Beatles. E muito blues. 

No trio de jazz, eu tocava com um baterista de cinquenta anos e um baixista que também tinha uns cinquenta. Eu tinha quatorze. Tocávamos com todo mundo, de Erroll Garner a Thelonious Monk. E não tenho explicação para o porquê de Monk ser o meu favorito. Porque agora sou um velho e ainda diria a mesma coisa. 

ENTREVISTADOR

E você cantou também? 

KRASZNAHORKAI

No grupo de rock, sim. Eu tinha uma voz muito aguda, como um contratenor. Então, eu só cantava músicas de mulheres — Dusty Springfield e Aretha Franklin. 

ENTREVISTADOR

E quanto à cena artística? Você estava ouvindo Bowie, Velvet Underground? 

KRASZNAHORKAI

Entrei para o fã-clube de Bowie tarde, depois que me tornei amigo de Béla Tarr. Béla morava em um apartamento pequeno e maravilhoso no centro de Budapeste. Ele andava pelo mesmo cômodo o dia todo, sempre ouvindo música. David Bowie, Lou Reed, Nico…

ENTREVISTADOR

Você começou a trabalhar com Tarr no filme Damnation logo após a publicação de Satantango , em 1985 — certo? E então fez duas adaptações dos seus romances, Satantango, em 1994, e Harmonias de Werckmeister , uma versão de A Melancolia da Resistência , em 2000. 

KRASZNAHORKAI

No começo, fizemos Damnation porque, sob os comunistas, fomos proibidos de fazer Satantango . Toda essa história começou em 1985, depois que o romance foi publicado. Béla, sua esposa, Ágnes, e eu queríamos fazer um filme de Satantango , mas Béla era um homem odiado no mundo do cinema húngaro. Ele foi para uma empresa cinematográfica e outra. Finalmente, alguém nos disse que era proibido fazer Satantango . E eu disse a Béla: Ok, você vai para casa, eu vou para casa, acabou. Talvez duas semanas depois, Ágnes veio até mim e me implorou para escrever um novo roteiro, porque senão Béla cometeria suicídio . Eu o conheço, ela disse. Ele vai cometer suicídio se não puder fazer um filme com você. Claro, isso era uma armadilha, uma história para me fazer trabalhar com ele. 

ENTREVISTADOR

Tarr é o único diretor com quem você trabalhou?

KRASZNAHORKAI

Eu só trabalhei com Béla. Com ele, foi mais do que uma colaboração. Eu dei tudo a ele, e ele levou tudo. Sempre trabalhamos juntos depois que eu escrevi os roteiros, mas eram filmes dele. O cinema é uma arte sem justiça. Se você é um escritor e um diretor de cinema quer adaptar sua obra, você deve aceitar que ele é o diretor. Este filme será dele. Caso contrário, você está cometendo um erro. 

Meus roteiros sempre foram obras literárias. Eu usava a forma, usava diálogos, mas quando escrevia sobre um personagem principal, “Ele pensa em um mundo sem Deus”, Béla dizia: “Isso não é um roteiro. Como posso mostrar isso?”. É por isso que eu tinha um pouco de medo durante esses projetos. Por exemplo, quando Estike sobe para o céu. Béla perguntava: “Como posso fazer uma tomada disso?”. No final, a única possibilidade era colocar a câmera talvez oitenta centímetros na frente do rosto de Irimiás. E se, no filme, pudéssemos ver em seu rosto o que aconteceu com Estike, então tudo bem, ganhamos. Se não, é um fracasso. Enquanto isso, eu posso escrever em um livro e é interessante e tem um fundo filosófico. O que é a realidade? O fantasma de Estike é real? Para a câmera, não.

ENTREVISTADOR

Mas para a linguagem, sim.

KRASZNAHORKAI

Exatamente. E isso significa que, se você tiver uma dúvida sobre o universo, sempre terá algumas possibilidades — em particular por meio da linguagem. O poder da palavra é, para mim, a única maneira de me aproximar dessa realidade oculta. Todo mundo é uma pessoa fictícia e, ao mesmo tempo, uma pessoa real. Eu pertenço ao mundo fictício e ao mundo real — estou presente em ambos os impérios. Você também. E todos neste restaurante. E também este objeto e tudo o que podemos perceber e também coisas que não podemos perceber, porque sabemos que, com nossos cinco sentidos, alguma parte da realidade é imperceptível. Não estou sendo esotérico. A realidade é tão importante para mim que sempre quero estar ciente de todas as possibilidades. 

ENTREVISTADOR

Eu me pergunto se é por isso que a tradução parece tão estranha. Como pode a realidade inventada pela versão húngara de Satantango ou Barão Wenckheim ser a mesma que a realidade inventada pelas palavras em inglês ou francês? Não há problema equivalente para outras formas de arte. Bach faz uma cantata e é uma tentativa, para ele, de expressar algum tipo de ideal transcendente…

KRASZNAHORKAI

Não, não. Bach é apenas um músico. Quando começou sua carreira e começou a compor suas próprias cantatas, ele lidava apenas com questões musicais — estrutura, a forma da fuga, o prelúdio, o falsobordone . Ouvimos sua música e temos uma imagem de Bach como um homem santo, sempre olhando para o céu. Mas, na verdade, todos os gênios se interessam apenas pelo físico, pela técnica. Se você olhar para a Turíngia, de onde Bach veio, a Turíngia estava cheia de Bachs — músicos, geração após geração. Bach era realmente sinônimo de um bom músico. 

Quando estive no Japão, fui a uma oficina onde esculturas de Buda estavam sendo restauradas por especialistas. Eram trabalhadores incríveis, gênios, verdadeiros artistas, mas estavam totalmente absortos na questão técnica: como posso consertar esta escultura quebrada? Então, quando o Buda restaurado foi devolvido ao seu lugar, ele agora era sagrado e alguém podia orar a ele. Você pode dizer que isso é uma contradição, mas não havia contradição para eles. O escultor e o restaurador são a mesma coisa. E quando alguém é um verdadeiro poeta, significa que sabe que a palavra tem poder e que sabe usar palavras. Se você tem essa habilidade, só precisa lidar com questões técnicas. 

ENTREVISTADOR

Então você quer dizer que as únicas verdadeiras questões artísticas são questões de técnica? 

KRASZNAHORKAI

Um artista tem apenas uma tarefa: dar continuidade a um ritual. E ritual é uma técnica pura.

ENTREVISTADOR

Acredito que deveríamos destacar uma obra específica para uma análise mais técnica…

KRASZNAHORKAI

Acho que isso se relaciona com outra questão. Se falamos de Homero, Shakespeare, Dostoiévski, Stendhal ou Kafka, todos eles estão neste império celestial. E uma vez que alguém cruza essa fronteira, é proibido dizer: O Idiota é maravilhoso, mas ‘Noites Brancas não é tão bom”. Ou Thelonious Monk — não nos é permitido dizer que sua interpretação não é tão boa em um lugar, ou em outro é muito dissonante. Essas são pessoas sagradas! Não devemos falar de detalhes, mas da totalidade da obra ou da pessoa. Se você criou uma vez, apenas uma vez, uma obra que é de gênio, depois disso, aos meus olhos, você é livre. Você pode fazer merda. Você continuará sendo absolutamente a mesma pessoa sagrada, e essa merda é uma merda sagrada, porque, tendo cruzado essa fronteira, essa pessoa é invulnerável. 

Estou convencido de que Franz Kafka é um fato em um império que eu, à distância, só posso admirar. Sinto alegria por esse império existir e por figuras como Dante, Goethe, Beckett e Homero terem existido, e ainda existirem, para nós. Tenho certeza de que todos os pensamentos sobre essas figuras, essas figuras sagradas, têm algo em comum. Minha imagem de Kafka não será tão diferente da sua imagem de Kafka.

Isso responde à sua pergunta? 

ENTREVISTADOR

Bem, só que é uma recusa em responder à minha pergunta! Posso colocar de outra forma? O que você está dizendo sobre Bach parece relacionado à sua ideia de que qualquer significado que uma obra possua será alcançado através da pura concentração na técnica. Você escreveu certa vez: “O mundo, se existir, tem que estar nos detalhes”. E talvez a obra, se existir, tenha que estar nos detalhes também — como se fossem aspectos diferentes da mesma coisa?

KRASZNAHORKAI

Para mim, os detalhes são os mais importantes, sim. Os menores detalhes são uma questão de vida ou morte. Um erro numa frase me mata. É por isso que não suporto ler meus livros, porque é quase impossível escrever um livro, em trezentas páginas, sem um único erro de ritmo. E talvez não seja uma questão de perfeição, mas sim um desejo de me importar com os menores detalhes, porque não há diferença de importância entre os menores detalhes e o todo. Qual é a diferença entre uma gota do oceano e o oceano como um todo? Nada. Nada.

ENTREVISTADOR

Isso também está relacionado ao que você disse antes — que você tem quase o livro inteiro na cabeça antes mesmo de começar o processo real de escrita?

KRASZNAHORKAI

Sim, mas há algo mais. Quem escreve os livros? Se você tem a sensação de que pode decidir algo no meio da obra, então você não está na obra — você está fora dela. Se você tem a sensação de que está escrevendo o livro, você está fora da obra em si.

ENTREVISTADOR

Há implicações para a interpretação da obra, para a crítica literária? Se eu perguntasse sobre o significado de A Melancolia da Resistência , seria uma pergunta estúpida? 

KRASZNAHORKAI

Estúpida? Não. Depende de quem pergunta. Falar com você é um tipo diferente de conversa. Eu honro o que você faz. Não é por acaso que estamos aqui, porque normalmente não me sento duas ou três vezes, durante dois ou três dias, com alguém. E, claro, presumo que você também tenha seu próprio interesse na resposta à sua pergunta — essa questão sobre significado. Ela sempre retorna ao problema do todo e dos detalhes, de como os detalhes se tornam um todo. 

ENTREVISTADOR

Você está dizendo que as duas coisas — os detalhes e o todo — são tão interdependentes que não se pode pensar em uma sem pensar na outra? De modo que, de certa forma, uma obra é uma terceira coisa, nem os detalhes nem o todo? 

KRASZNAHORKAI

Buda nunca permitiu que alguém falasse sobre totalidade porque era uma abstração — porque totalidade carece de realidade. Temos que ter muito cuidado ao usar a palavra totalidade . Por exemplo, acreditamos que o mundo, o universo, é infinito. Isso é um fiasco, porque se o mundo fosse realmente infinito, então este objeto [ apontando para um copo de chá ] não poderia existir. 

ENTREVISTADOR

Por que não?

KRASZNAHORKAI

Porque tudo o que você pode experimentar na existência é finito. Neste copo, há pequenas partes finitas, elementos subatômicos e assim por diante. Intangíveis para nós, mas não infinitos. 

ENTREVISTADOR

Há um momento no final de Satantango em que percebemos que o romance está em um loop — que os últimos versos são também os primeiros versos do romance, como escritos por um de seus personagens. Acho que é o único momento metaficcional em seus romances, a única regressão absoluta. Era óbvio para você desde o início que o livro teria essa estrutura circular?

KRASZNAHORKAI

De jeito nenhum. Quando trabalho, começo do começo e nunca sei mais do que meus personagens. No início de Satantango, eu não tinha ideia de que, no final, toda essa construção, como uma forma musical, voltaria e começaria novamente do começo — mas em outro nível, porque quando você relê este livro, você o lê com a consciência de que foi escrito por alguém que é um personagem do livro. Não, eu nunca trabalhei com essa concepção.

ENTREVISTADOR

Porque torna o romance infinito.

KRASZNAHORKAI

Ah, não. Não, acho que não. Só o incontável finito pode existir.  

ENTREVISTADOR

O que quero dizer é que, teoricamente, ele é capaz de ser lido infinitamente, ou infinitamente, em uma espécie de círculo. 

KRASZNAHORKAI

Você se lembra do que Buda nos disse sobre o círculo?

ENTREVISTADOR

Não. 

KRASZNAHORKAI

Se você seguir um círculo, depois de um tempo entenderá que um círculo não existe. É simplesmente um ponto que não existe. Há uma grande diferença entre o infinito e o finito incontável. Afinal, o que você acha que acontece quando o dançarino sufi se dissolve no nada? 

ENTREVISTADOR

Mas, para finalizar a questão dos finais, você disse que Barão Wenckheim seria seu último romance. Mas eu sei que você ainda está escrevendo. Isso significa que o que você está escrevendo agora não é um romance? 

KRASZNAHORKAI

Pequenas coisas, não uma grande construção. Já escrevi três pequenos livros desde o último romance. O primeiro, Projeto Manhattan (2017), é um prólogo para a segunda obra, meu livro sobre Nova York. Um título provisório poderia ser algo como “Trabalho de campo para um palácio”. E também terminei um livro que queria escrever desde o início, porque adoro Homero desde a minha juventude. Fiz uma viagem no outono passado à Dalmácia, na costa do Adriático. Essa jornada me levou a uma ilha no Adriático, e um mito da Odisseia subitamente retornou, e escrevi um livro sobre ele. Um pequeno livro, como uma novela.

ENTREVISTADOR

Você realmente não acha que escreverá outro romance depois do O retorno do barão de Wenckheim?

KRASZNAHORKAI

Romance? Não. Quando você ler, vai entender. O retorno do barão de Wenckheim, deve ser o último. 

 

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Sempre foi e sempre será assim

Sempre foi e sempre será assim

Por Elena Romanov

Tarde chuvosa de domingo. Muitos dias sem sair de casa. Não, não vou xingar os irresponsáveis… Tenho impressão de que nesse mundo sempre foi e sempre será assim.

Quem se destacava antes do isolamento — como Mônica Salmaso, por exemplo –, continua dando jeito de se destacar durante. Com a mesma energia e beleza. Sempre foi e sempre será assim.

Hoje, passei bastante tempo “brincando de massinha”. Muito legal transformar as coisas com as mãos. O processo é quase artístico. Farinha, água, sal, óleo. Brincamos bastante com os tamanhos e formas. Dividimos. E a coisa se transforma. Brincamos com as temperaturas e a coisa se transforma em comida e se torna irresistível.

Acho que a essência da arte é essa. Brincar e fazer descobertas com a alegria de uma criança. A arte não se acumula com os pesos dos resultados guardados. O mais importante é a impressão volátil. A gente sabe que sentiu. Mas não sente para sempre. Passou.

Sempre foi e sempre será assim. 🤔

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Leveza, o melhor Greg News que vi até hoje

Leveza, o melhor Greg News que vi até hoje

No Facebook, a Elena já fez um merecido elogio ao programa de ontem de Gregório Duvivier, o Greg News, chamado “Leveza”. O tema foi a necessidade da arte e teve um final absolutamente emocionante, com a família de Gregório — ele é filho de Olivia Byington — cantando lindamente “Menina amanhã de manhã” (“Vai”), de Tom Zé. Ele, sua mãe e irmãs arrasaram num final digno para um texto sobre a presença das artes na pandemia. E, como escreveu a Elena, fazendo um contraponto com outra família que nos tortura diariamente com suas desnecessidades de tantas coisas que prezamos na civilização.

Ignoro os autores do texto, mas devem ser o próprio Gregorio Duvivier com a habitual colaboração de Bruno Torturra e Alessandra Orofino. O programa vai ao ar toda sexta-feira às 23h, na HBO.

Deve ser fácil encontrar o programa no Youtube. Uma pesquisa de ‘Greg News Leveza’ deve resolver a questão.

Aliás, está aqui:

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman

O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman

Ia escrever hoje sobre obra-prima de Bergman, que revimos neste fim de semana. Mas este artigo me pareceu tão explicativo que resolvi apenas copiá-lo. Até porque não gostaria de perdê-lo. As fotos foram colocadas por mim. (MR)

Por Cibele Carvalho Quinelo

O Diretor

Ernest Ingmar Bergman nasceu em Uppsala, na Suécia, em 1918. Filho de um pastor luterano, teve uma infância rígida, marcada por castigos psicológicos e corporais, temas freqüentes em seus trabalhos.

Começou a fazer e dirigir teatro ainda adolescente. Tornou-se famoso como roteirista na Suécia, escrevia para os maiores cineastas da época, e, com Sorrisos de Uma Noite de Amor fez seu nome como diretor de cinema, mas foi com O Sétimo Selo que ganhou fama internacional.

Foi o principal responsável pela recuperação, para o cinema sueco, do prestígio que este perdera na década de 20, com a partida de importantes cineastas para Hollywood.

Fez um total de 54 filmes, 39 peças para o radio e 126 produções teatrais, onde seus temas principais eram Deus, a Morte, a vida, o amor, a solidão, o universo feminino e a incomunicabilidade entre casais, tema onde foi pioneiro no cinema. Tornou-se autor completo de seus filmes e renovou a linguagem cinematográfica. Seus primeiros filmes trazem com frequência influências do naturalismo e do romantismo do cinema francês dos anos 30. Alguns chegaram a ser repelidos por causa do erotismo e expressionismo.

Bergman batendo um papo com a morte
Bergman batendo um papo com a morte

É muito conhecido por seu domínio do métier, por seu conhecimento técnico de câmera, luzes, processos de montagem, criação de personagens e qualidade de celuloide e som. Sempre trabalhava com a mesma equipe técnica e atores.

Ganhou Oscar com os filmes A Fonte da Donzela e Fanny e Alexander.

Da peça ao filme

Bergman dava aulas na Escola de Teatro de Malmö, em 1955. Procurava uma peça para encenar para alguns jovens. Acreditava que essa era a melhor maneira de ensinar. Nada encontrou e então resolveu escrever ele mesmo, dando o titulo de Uma pintura em madeira.

Era um exercício simples e consistia num certo numero de monólogos, menos uma parte. Um dos alunos se preparava para o setor de comédia musical, tinha uma aparência muito boa e ótima voz quando cantava, mas quando falava era uma catástrofe, ficando com o papel de mudo, e ele era o cavaleiro.

Trabalhou bastante com seus alunos e montou a peça. Ocorreu-lhe um dia que deveria fazer um filme da peça e tudo aconteceu naturalmente. Estava hospitalizado no Karolinska, em Estocolmo, o estomago não estava muito bom, e escreveu o roteiro, passando o script para o Svensk Film Industri, que não foi aceito, e só quando veio o sucesso Sorrisos de uma noite de amor (filme que recebeu um premio importante no festival de Cannes) que Ingmar obteve permissão para filmá-lo.

Bergman disse em uma entrevista “Foi baratíssimo e muito simples”, mas na biografia critica de Peter Cowie, a origem de O Sétimo Selo é tratada de modo a aparecer um pouco menos simples. Cowie fornece mais pormenores do que Bergman sugere, diz, que a peça original é um ato para dez estudantes, entre eles Gunnar Bjornstrand, e foi levada a cena pelo próprio Bergman em 1955. Mas a encenação que arrebatou a critica ocorreu em setembro do mesmo ano quando um outro elenco, que contava com a presença de Bibi Anderson dessa vez, representou no Teatro Dramático Real de Estocolmo, sob a direção de Bengt Ekerot (ator e diretor renomado que interpretou a Morte em O Sétimo Selo).

Apenas alguns elementos foram aproveitados no roteiro final do filme: o medo da peste, a queima da feiticeira, a Dança da Morte. Mas a partida de xadrez entre a Morte e o Cavaleiro não havia, e, nem existia o artístico-bufanesco “santo casal” Jof e Mia com seu bebê. Somente Jons, o Escudeiro, não sofreu mudanças.

vamos jogar o setimo selo

Bergman retornou a Suécia, reescreveu o roteiro e reuniu a equipe. Deram-lhe trinta e cinco dias e um orçamento apertado. Foram gastos cerca de 150 mil dólares e o diretor manteve-se dentro do cronograma e do orçamento. O filme foi feito em 1956 e estreou na Suécia em fevereiro de 1957.

Contexto Histórico

O século XIV, que é a época diegética de O Sétimo Selo, assinala o apogeu da crise do sistema feudal, representada pelo trinômio “guerra, peste e fome”, que juntamente com a morte, compõem simbolicamente os “quatro cavaleiros do apocalipse” no final da Idade Média.

Inicialmente, a decadência do feudalismo resulta de problemas estruturais, quando no século XI, a elevada densidade demográfica na Europa, determinou a necessidade de crescimento na produção de alimentos, levando os senhores feudais aumentarem a exploração sobre os servos, que iniciaram uma série de revoltas e fugas, agravando a crise já existente.

As cruzadas entre os séculos XI e XIII representaram um outro revés para o sistema feudal, já que os seus objetivos mais imediatos não foram alcançados: Jerusalém não foi reconquistada pelos cristãos, o cristianismo não foi reunificado, e a crise feudal não foi sequer minimizada, já que a reabertura do mar Mediterrâneo promoveu o Renascimento Comercial e Urbano, que já contextualizam o “pré-capitalismo”, na passagem da Idade Média para a Moderna.

cavaleiro o setimo selo

O trinômio “guerra, peste e fome”, que marcou o século XIV, afetou tanto o feudalismo decadente, como o capitalismo nascente. A Guerra dos Cem Anos (1337-1453) entre França e Inglaterra devastou grande parte da Europa ocidental, enquanto que a “peste negra” eliminou cerca de 1/3 da população européia. A destruição dos campos, assolando plantações e rebanhos, trouxe a fome e a morte.

Nesse contexto de transição do feudalismo para o capitalismo, além do desenvolvimento do comércio monetário, notamos transformações sociais, com a projeção da burguesia, políticas com a formação das monarquias nacionais, culturais com o antropocentrismo e racionalismo renascentistas, e até religiosas com a Reforma Protestante e a Contra Reforma.

O filme toca imaginativamente nesse mundo antigo, saturado de feiticeiras, cavalos, fome, peste e fé, depositando confiança em nossa imaginação.

bruxa o setimo selo

O filme

Foi o décimo filme que Bergman dirigiu e é uma de suas poucas tramas não-realistas. O roteiro original se lê como peça de teatro e poderia, com alguns retoques, ser montada como tal. Não se encontra nenhum Plano Geral, Zoom ou Pan, nada de Exterior Dia Floresta; nem Interior Dia Taverna; é como uma peça, com relativamente poucas rubricas. Podemos encontrar muitas influências culturais tanto no filme como no próprio roteiro: o quadro dos dois acrobatas de Picasso; A Saga dos Folkung e O Caminho de Damasco de Strindberg; os afrescos religiosos que Bergman viu na Igreja de Haskeborga.

Houve apenas três dias de locação nas filmagens: a sequência de abertura e as tomadas na encosta do morro. As condições atmosféricas, a locação e a luz eram perfeitas e não foi preciso repetir as tomadas. Foi um filme cheio de improvisações, a maior parte filmado nos estúdios, em Rasunda (Suécia). Bergman conta que em uma sequência na floresta, olhando com muita atenção podemos ver as janelas envidraçadas de um bloco de apartamentos, e a torrente na floresta era o transbordamento de um cano solto que ameaçava inundar o local.

A velocidade do andamento das cenas , como uma cena passa para a outra dizendo tudo o que precisa e encarando grandes e pequenas questões com a mesma seriedade, buscando o óbvio, fazem parte do mundo bergmaniano. A clareza dos diálogos, a maneira teatral como são utilizados, também fazem parte desse mundo.

O filme, assim como toda a obra do diretor no seu início, é considerado neo-expressionista. Os cenários são muito rústicos e simples, a maquiagem é impressionante, e muitas vezes os atores aparecem machucados, ou com dentes podres, desprovidos de qualquer regra de higiene atuais, o que dá mais realismo ao filme.

artistas o setimo selo

O Sétimo Selo foi dedicado a Bibi Andersson e ela, assim como Max Von Sydon, Erland Josephson, Ingrid Thulin, Liv Ullman, Harriet Anderson e Gunnar Bjosrnstrand, que começaram com ele no teatro, se tornaram para sempre “atores bergmanianos” e seguiram carreiras internacionais.

O título é uma referência ao capitulo oito do livro das revelações. A história é simples. Um Cavaleiro e seu Escudeiro voltam das Cruzadas. O país está assolado pela peste. Eles se encontram com a Morte e o Cavaleiro faz um trato com ela: enquanto conseguir contê-la numa partida de xadrez, sua vida será poupada. Na viagem pela terra natal, encontram artistas, fanáticos, ladrões, patifes, mas por toda parte a presença da Morte, empenhada em ganhar o jogo por meios lícitos e ilícitos. No fim, todos, menos os artistas, são arrebanhados por ela. Intelectualmente a trama do filme é entretecida com dois: o da busca, pelo Cavaleiro já desesperado, de alguma prova, alguma confirmação de sua fé, e o da atitude do Escudeiro, para quem não existe nada, para além do corpo em carne e osso, senão o vazio.

leite o setimo selo

O filme articulou perguntas que não se atrevia fazer: quais eram os sinais verdadeiros de que existia um Deus? Onde estava o testemunho coerente de qualquer benevolência divina? Qual era o propósito da oração? A dúvida do Cavaleiro, sua determinação de se apegar aos exercícios exteriores da crença quando o credo interior estava esmigalhado coincidia com a situação de muitos. Mostrou com uma visão simples e totalmente moderna para a época, o relacionamento de Deus com o Homem.

A natureza religiosa da obra de Bergman se manifesta de imediato no filme. Em uma entrevista declarou que utilizava seus filmes para encarar seus temores pessoais, disse ele: “Tenho medo da maior parte das coisas dessa vida” e “Depois daquele filme ainda penso na morte, mas não é mais uma obsessão”, e em O Sétimo Selo ele enfrentou o seu medo da morte. A Morte está presente todo o tempo, e cada um reage de maneira diferente a ela. Deus e a Morte são os grandes pilares do filme, e em grau menor, mas essencial, mostra seus sentimentos sobre o Amor e a Arte.

A tela destinava-se ao divertimento, quem estivesse em busca da verdadeira substância do pensamento abria um livro. Bergman botou isso de pernas para o ar nesse filme, mostrando um cinema não somente para a diversão, mas também para a reflexão.

As pessoas são geralmente muito sérias acerca do que o diretor considera serem questões sérias: Amor, Morte, Religião, Arte. Sua resoluta preocupação com assuntos sérios, mesmo em suas poucas comédias, o distingue e talvez explique porque em certo sentido ele saiu de moda. Ele insiste em enfrentar o todo da vida com seriedade, aborda o total da existência e o que está acima dela, junto com sua religiosidade, transformando-o num estrangeiro de um mundo pós-moderno e em maior parte descrente.

O senso de humor aparece, às vezes sutil e às vezes mais ostensivo como quando a Morte serra árvore para levar o artista, é a cena mais engraçada do filme. Finamente bem humorado – sobre desafios, negociações e as eternas dúvidas e curiosidades em torno de questões metafísicas que atormentaram, atormentam e atormentarão o ser humano. Acredito que Bergman está presente no filme na angústia do cavaleiro que vê sua vida destituída de sentido, e também no ateísmo de seu fiel amigo Escudeiro.

more Ingmar Bergman, Seventh Seal and 1,000,000 more pictures at www.morethings.com/pictures
more Ingmar Bergman, Seventh Seal and 1,000,000 more pictures at www.morethings.com/pictures

O encontro com a Morte

A cena de abertura dá o tom: antes de qualquer imagem a música Dies Irae começa solene. A tela se ilumina, uma nuvem esbranquiçada que se não estivesse ali deixaria tudo cinza e turbulento. O coro interrompe no corte: uma dramática reelaboração da música de Dies Irae. Uma ave aparece pairando quase imóvel no céu, e o pink noise (silêncio), que é muito usado nos filmes de Bergman, dá ainda mais suspense. Outro corte mostra uma praia pedregosa e uma voz calma e suave lê um trecho do apocalipse, ouve-se o barulho das ondas batendo nas pedras.

O Cavaleiro descansa sobre as pedras e um plano mais fechado nos leva para mais perto da ação: tem um tabuleiro de xadrez ao seu lado, e ele segura uma espada na mão. O Escudeiro também dorme e seu amigo abre os olhos e observa o céu.

O dia está nascendo e Antonius se levanta para lavar o rosto. Logo após ajoelha sobre as pedras e faz uma oração, num intenso plano americano, mas seus lábios não se mexem, talvez não saiba mais rezar. Ele vai até o tabuleiro de xadrez, onde as peças já estão montadas, o silêncio traz uma figura parecida com um monge, um fantasma. O Cavaleiro arruma uma sacola e vê aquela figura. Começam a dialogar (uso de planos gerais): “Quem é você?”, “Eu sou a morte”.

E a morte aparece como um homem, uma presença. Segundo Bergman “Essa é a fascinação do palco e do cinema. Se você pega uma cadeira perfeitamente normal e diz “Eis a cadeira mais cara, fantástica e maravilhosa já feita em todo o mundo”, se você diz isso, todos acreditam. Se o Cavaleiro diz “Você é a Morte”, você acredita nisso” .

confessionario o setimo selo

Em outro plano a Morte abre seu manto a fim de levar o Cavaleiro, sua pele é muita branca e a “música medieval” impulsiona a ação.

Após o trato sentam-se para jogar xadrez. Antonius parece estar muito calmo diante da tão aterrorizante Morte. Há até um pouco de ironia quando as peças negras são sorteadas para serem jogadas pela morte, que diz para o Cavaleiro, “Bem apropriado não acha?”.

A imagem se dissolve e vemos Antonius numa igreja, olhando uma imagem de Jesus Cristo. Seu rosto, e o talento naturalmente, mas a seriedade e a capacidade também de serenidade desse ator valorizam o filme. É um rosto pensante, a procura de um entendimento da vida, uma indagação antiga, às vezes banal que nos convence. Seus momentos de extrema emoção são quando geralmente ele se vê só, salvo, talvez, por Deus.

As sombras aparecem muito, há muito contraste de claro e escuro e os closes nos personagens são muito usados. Bergman usava muito o close-up porque acreditava que eles mostravam muito da personalidade dos personagens. O sino da igreja toca sem parar, a imagem de Cristo aparece novamente, mas não é uma imagem comum, parece deformada e sofredora.

O Cavaleiro revela sua fé, sua busca. As imagens que estão por perto dele são difíceis de identificar por causa da sombra. Ele confessa esperar o conhecimento da vida, e nós vemos, entre as grades do confessionário que a Morte é quem o ouve. Ela não quer ser reconhecida e nos mostra suas más intenções. O sino cessa e eles continuam a falar de Deus e agora da Morte. Antonius está nervoso, revela sua estratégia para vencer a Morte e mostra todo seu desespero e sua surpresa ao ver que ela o enganou. Um primeiro plano mostra a expressão de seus rostos. As sombras e a escuridão tomam conta de quase toda a tela, e vemos apenas o vulto dos personagens e as grades do confessionário. A Morte vai embora, e ele observa sua mão, o sangue que pulsa nela. Antonius Block se apresenta para os espectadores junto com sua fé, coragem e satisfação, talvez até orgulho de jogar xadrez com a Morte.

morte o setimo delo

Os flagelantes

A cena com os flagelantes é maravilhosa. Começa com a apresentação dos artistas, numa inocente maneira de divertir o público do vilarejo. Eles dançam, cantam, brincam, tocam instrumentos quando a música entra, dando um clima de terror a cena. É um contraste ver a alegria dos artistas seguidas de tanta dor, culpa, desespero e fé dos torturadores: “Eles acreditam que a peste é um castigo de Deus por eles serem pecadores”.

Os olhos de Jof e Mia se enchem de espanto, assim como a de todas as pessoas que vêem a procissão. A música é apavorante.

Eles passam por uma porteira carregando Imagens e Cruzes. Pessoas deficientes, muito magras e idosas impressionam. Estão vestidos como monges, com roupas esfarrapadas, se ouve os gritos e o barulho dos chicotes. Os closes aparecem freqüentemente mostrando o espanto das pessoas que vêem os flagelantes passar.

Essa cena foi feita em um só dia, os extras foram feitos em clinicas geriátricas da cidade.

flagelantes o setimo selo

A dança da Morte

Após todos serem arrebanhados pela Morte, o plano que segue é o de Mia, olhando para o céu com seu filho Mickael e Jof ao seu lado, dentro da carroça. Ela acorda o marido e se vêem a salvo. O céu está claro e a cena é a mais iluminada do filme. Eles parecem felizes, os pássaros cantam e, saindo da barraca, jof observa a montanha. Sua expressão é de espanto ao ver todos eles, o ferreiro e lisa, o Cavaleiro, Raval, Jons e Skat, na mais famosa cena do filme, a Dança da Morte. A imagem do ator se difundi com a da dança. “Dançam rumo a escuridão e a chuva cai nos seus rostos”, “No céu tempestuoso”, diz Jof. A trilha impressiona.

“Você e suas fantasias” diz Mia sorrindo, acredita que tudo não passa da imaginação de Jof. Eles vão embora por uma trilha da encosta, os pássaros voltam a cantar e a música agora transmite paz e alegria.

Essa cena foi feita com muita improvisação, tão em cima da hora que um dos atores (o ferreiro) precisou de um dublê. As condições do tempo eram perfeitas e Bergman não precisou repetir a tomada.

danca da morte o setimo selo

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

22 detalhes fascinantes que provavelmente você jamais notou na Torre de Babel de Bruegel

22 detalhes fascinantes que provavelmente você jamais notou na Torre de Babel de Bruegel

Hoje em dia é muito fácil admirar as obras mais importantes das artes plásticas de todos os tempos. Basta guglar e é gol. Mas há algumas pinturas que exigem uma abordagem particular. A Torre de Babel, de Pieter Bruegel, O Velho, é uma delas. Esta obra-prima foi pintada em 1563 e, para admirar o original, você precisa visitar o Museu Kunsthistorisches em Viena. Quando olhamos para a pintura parece que podemos ver tudo, mas na verdade não é assim tão fácil. Bruegel é conhecido pelos múltiplos detalhes. Seus Provérbios Holandeses é outro desses casos. São tantos detalhes que… Bem, vamos à Torre de Babel.

Apresentamos alguns detalhes que não são assim tão fáceis de perceber ao primeiro olhar.

(QUER VER MAIOR? CLIQUE SOBRE AS IMAGENS).

A Torre de Babel (aspecto geral)

42205-1000-1455808769-origin_captions-1

1. A visão distante: Um castelo, um rio com um moinho de vento, prados e montanhas.

41455-1000-1455808769-1

2. Os viajantes caminham em direção à torre.

42005-1000-1455808769-2

3. Jardins são visíveis por trás do muro.

41005-1000-1455808769-3

4. Uma carroça está passando por cima de uma ponte, enquanto as mulheres estão lavando roupa no rio ao lado de um pequeno moinho de vento.

41055-1000-1455808769-4

5. Existe um poço ao lado do rio, e as pessoas estão plantando algo na horta.

41255-1000-1455808769-5

6. À média distância: há ferreiros perto da torre.

41305-1000-1455808769-6

7. Algumas pessoas estão descansando ou dormindo, enquanto outras trabalham.

41505-1000-1455808769-7

8. Os trabalhadores no nível mais baixo fazem o reboco de uma parede.

41405-1000-1455808769-8

9. Carroças de material de construção estão subindo.

41355-1000-1455808769-9

10. Outros estão para serem carregados.

41855-1000-1455808769-10

11. Uma jangada.

41805-1000-1455808769-11

12. Barcos descarregam suas mercadorias.

41755-1000-1455808769-12

13. A visão distante: Casas e hortas.

41655-1000-1455808769-13

14. Vacas no pasto e viajantes dirigem-se para a cidade.

41705-1000-1455808769-14

15. A torre: A torre está sendo construída por tanto tempo que há pessoas que vivem no local da construção: algumas delas estão cuidando de seus jardins de flores, outros colocam roupas para secar, e outros cozinham ao fogo.

41905-1000-1455808769-15

16. Um andar acima, podemos ver praticamente a mesma coisa.

41955-1000-1455808769-16

17. O trabalhadores

42155-1000-1455808769-17

18. Mais trabalhadores.

42105-1000-1455808769-18

19. O primeiro plano: os pedreiros.

42055-1000-1455808769-19

20. Alavancando pedras muito pesadas.

41605-1000-1455808769-20

21. Nimrod – o rei bíblico que ordenou a construção da Torre de Babel.

41555-1000-1455808769-21

22. Trabalhadores rezando..

41105-1000-1455808769-22

via

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

100 anos da beleza e da fúria de Iberê Camargo

100 anos da beleza e da fúria de Iberê Camargo

Publicado em 16 de novembro de 2014 no Sul21

O homem sem fé não cria. Fé em quê? No que faz.
Iberê Camargo

O prédio da Fundação Iberê Camargo (foto abaixo) está fechado, mas o motivo é nobre: é que está sendo montada a exposição Iberê Camargo: século XXI, que comemora os 100 anos do nascimento do artista. A mostra comemorativa ficará aberta à visitação entre os dias 18 de novembro de 2014 a 29 de março de 2015. (E, portanto, já fechada na data desta publicação. Mas creio que o texto não fica, de modo nenhum, invalidado). Ela foi concebida contemplando os principais temas de suas obras e suas repercussões na produção de artistas brasileiros contemporâneos. Diferenciando-se do formato convencional de exposições comemorativas, em geral um conjunto representativo ordenado cronologicamente, a mostra destaca a poética de Iberê em diálogo com trabalhos de dezenove artistas brasileiros de várias gerações.

Pela primeira vez, todos os espaços do edifício sede da Fundação serão tomados como expositivos. A totalidade do prédio projetado por Álvaro Siza, desde o lado de fora ao interior tortuoso das rampas, passando pelo grande átrio, acolherá obras e conjuntos de obras com afinidades com os grandes eixos tratados pelas várias séries de Iberê Camargo. Séries como “Carretéis”, “Núcleos”, “Fantasmagorias”, “Ciclistas” e “Idiotas” serão apresentadas na companhia de trabalhos de outros artistas. O cinema, que Iberê tanto apreciava, ocupará as rampas que levam de um andar ao outro, como também a literatura, que ele amava a ponto de praticá-la.

Iberê Camargo, nascido em 18 de novembro de 1914, foi um artista sofisticado, dono de uma arte impactante, impaciente, torturada e visceral. A fase mais importante deste gaúcho de Restinga Seca não pode ser menos decorativa e indulgente. Por isso, não deixa de surpreender que, em nossa época, sistematicamente acusada de superficial e de privilegiar o entretenimento — o que também é verdade — , a arte de Iberê tenha alcançado tamanha relevância que chegue ao ponto de sua importância poder ser vista no caminho da Zona Sul de Porto Alegre desta forma:

Fundação Iberê Camargo na Av. Padre Cacique, 2000 em Porto Alegre | Foto: Bernardo Ribeiro

O ensaio de Paulo Venancio Filho, Iberê Camargo, desassossego do mundo, não deixa dúvidas sobre o caráter de Iberê: “Dostoievsquiano, revoltado, angustiado, trágico, sinistro, violento, atormentado pela consciência” foram algumas das expressões utilizadas. Ao menos quando trabalhava ou falava sobre arte, pois o pintor, fora do ambiente artístico, foi sempre descrito como um homem educado e afável.

Poucos dias antes de morrer, em 9 de agosto de 1994, Iberê Camargo, já bastante debilitado pelo câncer, acordou Maria, sua esposa, no meio da madrugada. Pediu a ela que o levasse até o ateliê, pois queria finalizar uma tela. Achava que era a última oportunidade de fazê-lo antes de ser internado. Solidão é o título da obra inacabada. Se o fato demonstra uma postura absolutamente dedicada à arte – “Minha arte e minha vida são a mesma coisa”, dizia – , o título da obra também é muito significativo para quem disse, a respeito da morte: “Sempre fui um caminhante solitário. (…) Não nasci em cacho. Nasci só e morrerei só. (…) Não participo de paradas de sucesso. Não pertenço a grupos. Vivo recolhido. Não me importo em saber de que lado sopra o vento. Sou quem sou, faço o que faço.”, declarou Iberê para Lisette Lagnado no livro Conversações com Iberê Camargo.

Não obstante a dureza destas palavras, os amigos de Iberê lembram que ele exigia a solidão apenas em seu trabalho. De resto, “era generoso, gentil, falante, conciliava a solidão da criação ao convívio tranquilo no dia a dia”. Porém seu humor era de exemplar acidez. Não, não era um otimista. E ficou ainda menos após envolver-se numa tragédia em 1980, quando o homem gentil provou ser apenas um homem controlado.

Iberê estava numa rua do Rio de Janeiro, acompanhado de sua secretária, quando testemunhou em plena rua uma briga violenta entre um casal. Nervoso, o homem ameaçou-o por estar observando interessadamente a cena, empurrou a secretária e depois Iberê. Agredido, o artista – que tinha posse de arma – disparou dois tiros, matando o agressor. Foi absolvido por legítima defesa, porém nunca se recuperou da tragédia. O caso teve grande repercussão e o pintor resolveu voltar a morar em Porto Alegre e, ao mesmo tempo, trazer a figura humana de volta a seus óleos e gravuras.

Com efeito, o caso deixou Iberê abaladíssimo e influenciou de forma cabal sua obra. Como resultado, surgiram quadros de figuras esquálidas, grotescas, torturadas, espectrais e zombeteiras, cheias de angústia. Era como um Goya moderno, dedicado a retratar não os horrores da guerra, mas de seus fantasmas interiores. Do Rio, Iberê retornou a Porto Alegre em 1982, abrindo seu atelier na rua Lopo Gonçalves. Em 1986, foi morar e trabalhar no bairro Nonoai.

A artista plástica Lou Borghetti – que depois foi aluna e assistente de Iberê – conta sobre o primeiro encontro entre ambos, ocorrido justamente em 1980.

Ele estava com uma mostra na Galeria do Centro Comercial Azenha. Naquela época eu não conhecia de perto sua pintura. Passei em frente a galeria e me deparei com uma tela grande, escura e muito dramática. Pensei: não gosto, vou embora. Andei uns metros, voltei. Parei novamente, olhando a tela através do vidro e novamente meus pensamentos eram de como alguém pode pensar algo assim, pintar assim, eu não teria esta tela em minha casa, ou teria? Olhei para dentro da galeria, com pouca gente, num pequeno espaço expositivo bem acolhedor. Entro, não entro, entro, só pra ver a tela sem o vidro e ter certeza de que não gosto. Entrei, pensei, mas quem é esse pintor que de tão forte e corajoso me provoca tanta sensação de desconforto, mas ao mesmo tempo não consigo parar de olhar. Não tive dúvida, perguntei: Quem é o pintor? E um senhor alto, atencioso e muito gentil se aproximou e disse: – Sou eu. – Ah, desculpe, eu posso ser franca? – Claro. – Não gosto da sua pintura, me aflige muito.

E ele, do alto de sua extrema gentileza disse: – Nem eu.

Este diálogo faz eco a um outro, ocorrido no Rio de Janeiro nos anos 40. Logo que chegou ao Rio, Iberê Camargo foi procurar um dos grandes nomes do modernismo, Cândido Portinari. Portinari mostrou-lhe o que tinha em seu ateliê e perguntou se Iberê gostava. A resposta foi outro “Não”. Portinari achou natural: aquele menino ainda precisava se acostumar aos modernistas. Com uma de suas pinturas, Iberê recebeu um prêmio: uma viagem à Europa. Foi lá, entre Roma e Paris, que fortaleceu sua formação. Na Itália, estudou com De Chirico e na França teve aulas com André Lhote.

Voltando ao Brasil em 1950, começou a trilhar um caminho muito pessoal: o dos carretéis que usava como brinquedos durante a infância. Na séries Núcleos, formas de carretéis invadem cada tela com pinceladas densas, camadas pastosas de tinta em tons negros ou azulados. Críticos estrangeiros, ao observarem as obras desse período, tendem a traçar analogias com o expressionismo abstrato de De Kooning e Pollock.

Mas Iberê gostava era dos mestres — dos renascentistas, de Goya, de Rembrandt — e, entre os contemporâneos, preferia associar seu espírito criativo ao de Picasso, pelo desejo de retornar aos clássicos e dar a eles uma roupagem moderna.

– Meu aprendizado não se fez apenas através de cópias de grandes mestres. Embora não tenha – graças a Deus! – cursado uma academia de arte, na juventude frequentei ateliês de mestres, na Europa. O conhecimento, uma sólida cultura plástica como a entendo, jamais poderá sufocar a originalidade de um artista, se ele realmente a tem. Conheci em Paris, um escultor brasileiro, bolsista, que não frequentava museus para não perder a personalidade, esquecendo, talvez, que só se perde o que se tem. Mo Museu do Prado, encontram-se, lado a lado, cópias e originais de mestres: Delacroix après Rubens; après Tiziano.”

De volta a Porto Alegre, começa sua fase mais soturna da carreira. Figuras espectrais e disformes permeiam séries como As Idiotas, Fantasmagorias, Ciclistas e Tudo Te é Falso e Inútil (título inspirado em um verso de Fernando Pessoa). Grande parte dos trabalhos tardios de Iberê está exibida na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. “Além de lamentar os rumos do mundo e voltar-se para os desejos e angústias da humanidade, ele produzia para apalpar a eternidade e dominar o tempo, para continuar conosco por mais tempo”, afirma o escritor Paulo Ribeiro, que conviveu com Iberê nos últimos anos de vida.

Acamado, no hospital, antes de morrer Iberê recebeu a imprensa. Com a mesma fúria presente em telas criadas com verdadeiros nacos de tinta que formam impressionantes relevos, chamou os donos das galerias de arte de débeis mentais, disse que a arte brasileira da década de 90 era feita só de bugigangas. “Ah, e se sair do hospital e quiserem me deixar de mau humor é só me convidarem para um coquetel. Não vou!”.

http://youtu.be/wB_v0iiuBHs

Abaixo, algumas das principais obras de Iberê Camargo:

Da série As Idiotas
Da série Ciclistas
Fantasmagoria IV
Carretel 1984
Face
O Grito
Hora X
Mulher de Chapéu Preto, homenagem a Maria Leontina
Carretel Azul
Tudo te é falso e inutil III
Solidão
Carretéis - Mário de La Parra
Carretéis – Mário de La Parra
Paisagem, 1941 | Foto: Pedro Oswaldo Cruz
Paisagem, 1941 | Foto: Pedro Oswaldo Cruz
Sem título, c. 1941/42 | Foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti
Sem título, c. 1941/42 | Foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti
Mendigos do Parque da Redenção IV, 1987 | Fundação Iberê Camargo: Digitalização
Mendigos do Parque da Redenção IV, 1987 | Fundação Iberê Camargo: Digitalização
Sem título, 1989 | Foto: Fábio Del Re
Sem título, 1989 | Foto: Fábio Del Re
Dentro do mato, 1941/1942 | Foto: Fábio Del Re
Dentro do mato, 1941/1942 | Foto: Fábio Del Re
Sem título, 1942 | Foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti
Sem título, 1942 | Foto: Luiz Eduardo Robinson Achutti

Fontes:
— Paulo Venacio Filho, Iberê Camargo, Desassossego do Mundo, Pactual, 2001
— Lisette Lagnado, Conversações com Iberê Camargo, Iluminuras, 1994
— Jonas Lopes, artigo A arte como expressão da vida de Iberê Camargo.
— Blog pessoal de Lou Borghetti – http://louborghetti.blogspot.com.br/

Iberê Camargo
Iberê Camargo

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Nosso encontro com João Bez Batti

Nosso encontro com João Bez Batti

Eu estava recém separado quando resolvi pegar as crianças e tirar uns dias num hotel fazenda. Escolhi a pousada da Don Giovanni. Nunca tinha ido lá e deixei meu filho Bernardo ser nosso navegador. Perdemo-nos várias vezes, dávamos risadas, mas chegamos. Lugar lindo, acomodações perfeitas. Era uma quarta-feira gelada de inverno, quase zero grau. Ficaríamos até o domingo seguinte. No primeiro passeio, descobrimos algo que me pareceu do outro mundo. O escultor João Bez Batti tinha seu atelier numa casa dentro da fazenda. Já conhecia alguns de seus trabalhos. Havia algumas peças em exposição e fomos examinar cada uma delas quando o escultor chegou-se a nós timidamente, ouvindo e sorrindo do que dizíamos, principalmente do que diziam Bárbara e Bernardo. Ele puxou conversa com as crianças enquanto crescia em mim aquela conhecida dúvida de pai: estaríamos ou não incomodando?

bez battiMais um pouco e fomos embora. Depois do almoço, fui babar no travesseiro, mas depois soube que os dois tinham voltado ao atelier e, mais, que passaram horas com o João. No dia seguinte, ele veio me comunicar que tinha comprado pão, leite, nescau, bolachas, sucos naturais, iogurtes para eles e comida para a Bárbara dar para seus gatos. Queria que os guris se sentissem “mais em casa”. No hotel, houve certo pasmo. Bez Batti não costumava disponibilizar seu tempo tão generosamente, ainda mais para crianças. Enchi-os de recomendações e eles foram para o atelier. Às vezes eu conferia a bagunça e era sempre a mesma coisa. João estava seduzido pela Bárbara, que brincava com os gatos e comia (sempre perguntando para o João rir: “Eu sou magra de ruim, né?”), enquanto o Bernardo contava histórias — sempre foi insuperável neste quesito — e fazia perguntas sobre as pedras. Eles também levavam centenas de girinos do lago ao lado para o escultor observar… Voltavam para o hotel molhadíssimos e eu colocava as roupas cheias de barro no secador de toalhas do quarto. Guardei uma muda de roupa limpa e o resto era para encher de terra. A mãe deles que depois lavasse. Só ia chamá-los para o almoço ou algum passeio; a maior parte do tempo eles ficavam com o João. Ficamos amigos, claro.

Nos últimos dias, eu também permanecia no atelier. Passamos a falar sobre pedagogia e literatura. Tínhamos concepções “muito iguais” sobre como criar e acompanhar os filhos. Ríamos a respeito de ambos sermos pais-problema. Ríamos ainda mais porque ambos tínhamos, como ex-mulheres, ex-militantes de esquerda que se tornaram competitivas amantes do dinheiro. Na literatura, João descrevia uma vivência inteiramente diferente da minha. Tinha referências sempre muito interessantes sobre o ambiente dos livros. A cidade, os espaços, os quartos dos personagens, o campo. Ele foi capaz de descrever os ambientes das cenas principais de vários romances, coisa absolutamente distinta de minhas impressões, muito mais factuais e psicológicas. Era um outro gênero de sensibilidade e eu pensava que tudo o que ele me dizia era tão original e estranho que tinha certeza de sua absoluta inutilidade para mim. Mas nunca esqueci o quarto de Raskolnikov de que ele falava, os navios — cada um deles — de Somerset Maugham, as cenas em praças abertas, na rua ou em ambiente fechado. Tudo muito diferente do que lia. Em sua opinião, o bom escritor evita as longas descrições, pois são sempre decepcionantes e limitadoras. Bastava duas ou três coisas e o resto o leitor criava através da experiência. Tem que deixar para a gente, dizia.

Domingo, logo após o almoço, fomos procurá-lo para nos despedir. As crianças já estavam emocionadas e saudosas por antecipação, procurando o João para exporem sua confusão, provavelmente na forma de lágrimas. Eu sabia que a cena seria dramática. Só que não o encontramos. Porém, no momento em que pus o carro em movimento, o grande João Bez Batti veio correndo aos gritos atrás de nós, com uma pequena escultura em cada mão. Parei e saímos. Ele entregou os objetos, um para a Bárbara, outro para o Bernardo. O dono da pousada e os funcionários ficaram novamente pasmos. Nunca antes ocorrera algo assim. Notei que João represava alguma coisa em seus olhos e despediu-se rapidamente. Então voltou, deu-me um abraço e, com dificuldade, falou em meu ouvido direito: “Milton, não me estraga esses guris. Não quero me despedir deles porque tenho que manter minha fama de durão, tá?”.

João, acho que atentei contra tua fama hoje.

.oOo.

Penso que as obras abaixo, com exceção de Operária, estavam no atelier durante nossas visitas:


O Visionário


Operária


Pomba Várzea


Rio das Antas


Cabeça cubista


Caminho das águas

.oOo.

Hoje, João Bez Batti reside e trabalha na Casa Gilmar Cantelli (três links diferentes), a qual restaurou em 2002.

Ele segue realizando trabalhos em basalto. Em sua nova casa, também estão expostos os trabalhos em pintura e cerâmica de Diego Bez Batti, filho que ele certamente não “estragou”.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Em 1910, o ano 2000 seria assim…

Em 1910, o ano 2000 seria assim…

São gravuras de 1910 que buscam mostrar como seria nossa vida no ano 2000. Elas estão na Biblioteca Nacional da França. A autoria é de dois artistas franceses, Villemard e Robida.


Bombeiros voadores


Sapatos motorizados


Barbeiros robôs


Carros estilo Jetsons


Mensagens através de fonógrafos


Um drive-in…


Ouvindo as notícias…


Videoconferências com gramofones


Os operários da construção civil seriam robôs


O professor joga os livros numa geringonça e os alunos ouvem seus conteúdos (observem a animação do pobre “monitor”)…


Fabricação de roupas


Mulher em seu toalete

Obs.: Neste blog muito legal há mais.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

O que você pensa disso?

O que você pensa disso?

Epiphany1

Eles vieram trazer ouro, incenso e mirra? É uma Maria bastante ariana, não? E o rosto do bebê? E seu cabelo? A obra é Epiphany I (1996), pintura de Gottfried Helnwein (1948-).

Mas há as Epiphanies II, III e IV.

Epiphany2 Epiphany3 Epiphany4

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

As imagens e a fúria de Iberê Camargo

Publicado em 18 de novembro de 2012 no Sul21

O homem sem fé não cria. Fé em quê? No que faz.
Iberê Camargo

Iberê Camargo, nascido em 18 de novembro de 1914, foi um artista sofisticado, dono de uma arte impactante, impaciente, torturada e visceral. A fase mais importante deste gaúcho de Restinga Seca não pode ser menos decorativa e indulgente. Por isso, não deixa de surpreender que, em nossa época, sistematicamente acusada de superficial e de privilegiar o entretenimento — o que também é verdade — , a arte de Iberê tenha alcançado tamanha relevância que chegue ao ponto de sua importância poder ser vista no caminho da Zona Sul de Porto Alegre desta forma:

Fundação Iberê Camargo na Av. Padre Cacique, 2000 em Porto Alegre | Foto: Bernardo Ribeiro

O ensaio de Paulo Venancio Filho, Iberê Camargo, desassossego do mundo, não deixa dúvidas sobre o caráter de Iberê: “Dostoievsquiano, revoltado, angustiado, trágico, sinistro, violento, atormentado pela consciência” foram algumas das expressões utilizadas. Ao menos quando trabalhava ou falava sobre arte, pois o pintor, fora do ambiente artístico, foi sempre descrito como um homem educado e afável. Read More

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Aforismos, de Karl Kraus

Não sou nada original: sou mais uma pessoa que não acredita no politicamente correto. Principalmente no âmbito artístico, é algo que não funciona. Fico pensando no que seria uma versão politicamente correta do Monty Python… É possível? Sim, mas perderia toda a graça. O politicamente correto acaba com o humor e muitas vezes destrói a arte. Por exemplo, dois recentes filmes dramáticos, ambos candidatos ao Oscar, viram uma criancice em suas cenas finais em razão do politicamente correto: Tudo pelo Poder, onde a “consciência” do malvadinho recebe uma chamada na última cena, e Os Descendentes, onde os adúlteros são punidos. Esses filmes poderiam até ser muito bons se mantivessem algum ponto de contato com a realidade. Na realidade, sabemos, quase sempre os bons se ralam, dando lugar aos arrivistas. Fico imaginando a versão PC de Lolita, mas deixa pra lá.

Karl Kraus (1874-1936) não pisa na linha que separa o correto e o incorreto, Kraus vive dentro do incorreto de tal maneira que até este comentarista fica meio sem jeito. Os primeiros aforismos deste volume — que tem excelente tradução de Renato Zwick e luxuosa edição da Arquipélago — são um quase só de ataques à mulher. No início, a gente estranha, depois acha engraçada a misoginia de Kraus. Não se trata de hipérboles, ou seja, de  intensificar algo até o inconcebível. É uma misoginia tão pensada, inteligente, antiquada e terrível que apenas pode ser suportada da mesma forma com que se admira Nelson Rodrigues e tantos outros autores que viviam em sociedades que aceitavam a misoginia e o machismo. Para a contemporaneidade, a genialidade de Kraus vem logo a seguir, quando ataca todo e qualquer ser humano e intelectual e jornalista e político. O mau humor de Kraus manifesta-se principalmente contra seu país de adoção, a Áustria. Aliás, a Áustria também é objeto do ódio de outro gênio indiscutível do século XX, o grande Thomas Bernhard. Com efeito, deve ser um país habitado por um povo repugnante, mas produz bons artistas. Kraus, obviamente, era um colecionador de inimigos.

Os aforismos do livro da Arquipélago foram selecionados em três coletâneas que Kraus publicou em vida: Ditos e Contraditos (1909), Pro Domo et Mundo (1912) e De Noite (1919). As coletâneas tiveram origem na virulência que o autor demonstrava nas páginas do Die Fackel (“A Tocha”) — revista que fundou e da qual foi praticamente o único redator durante quarenta anos. Paradoxalmente, Kraus, um dos maiores escritores satíricos em língua alemã do século XX, trabalhava na imprensa, apesar de odiá-la minuciosamente. Odiava como ninguém a estupidez e a ignorância dos jornalistas de seu tempo. Seus temas são a política, a filosofia, a imprensa e o papel do artista na sociedade.

São pequenos textos e frases furibundas e geniais. Seu autor insiste que todos os aforismos devem ser lidos mais de um vez. É horrível ter que dar razão a alguém tão arrogante, mas o fato é que na segunda leitura cada um dos aforismos ganha significado duplo ou triplo. Fazer o quê? Há muito que aprender com as frases curtas de exatidão milimétrica e múltiplo sentido de Kraus.

A seguir, alguns petiscos:

.oOo.

A relação dos jornais com a vida é mais ou menos a mesma das cartomantes com a metafísica.

.oOo.

A expressão “laços de família” tem um ressaibo de verdade.

.oOo.

A vida de família é uma invasão da vida privada.

.oOo.

Muitos têm o desejo de me matar. Muitos, o desejo de ter dois dedos de prosa comigo. Daqueles a lei me protege.

.oOo.

As penas servem para intimidar aqueles que não querem cometer crimes.

.oOo.

Não há criatura mais infeliz sob o sol do que um fetichista que anseia por um sapato feminino e precisa se contentar com uma mulher inteira.

.oOo.

Eles tratam a mulher como se fosse um refresco. No entanto, não admitem o fato de as mulheres sentirem sede.

.oOo.

Formação é aquilo que a maioria recebe, muitos passam adiante e poucos possuem.

.oOo.

Propostas para que essa cidade volte a conquistar minha simpatia: mudança de dialeto e proibição de reprodução.

.oOo.

Não ter pensamentos e ser capaz de expressá-los — eis um jornalista.

.oOo.

Preciso estar outra vez entre os seres humanos. Pois neste verão, em meio às abelhas e aos dentes-de-leão, minha misantropia degenerou gravemente.

.oOo.

Muitos talentos conservam sua precocidade até idade avançada.

.oOo.

Não tenho mais colaboradores. Eu tinha inveja deles. Eles afastam os leitores que eu mesmo quero perder.

.oOo.

O que distingue Berlim e Viena ao primeiro olhar é a observação de que lá se consegue um efeito ilusório com o material mais desprovido de valor, enquanto que aqui, na produção do kitsch, se emprega apenaas material autêntico.

.oOo.

Quando o pecado se atreve a avançar, ele é proibido pela polícia. Quando se esconde, recebe um alvará.

.oOo.

A ética cristã conseguiu transformar heteras em freiras. Infelizmente, ela também conseguiu transformar filósofos em libertinos. E graças a Deus, a primeira metamorfose não é assim tão confiável.

.oOo.

A sexualidade mal recalcada causou perturbações em muitas casas; a bem recalcada, no entanto, perturbou a ordem do universo.

.oOo.

Ao sadio basta a mulher. Ao erotista basta a meia para chegar à mulher. Ao doente basta a meia.

.oOo.

“Não se permitir mais ilusões”: é então que elas começam.

.oOo.

Devemos ler todos os escritores duas vezes, os bons e os ruins. Uns serão reconhecidos, e ou outros, desmascarados.

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!

Grandiosa obra de arte posta à venda

Em tempos de Bienal do Mercosul, minha filha Bárbara, de 16 anos e que prestará (prestará?) vestibular para História em janeiro, experimentou uma súbita criatividade durante o almoço e criou a peça-instalação Capitalismo Selvagem. Pelo custo de R$ 5.000, damos uma mesa pequena de fórmica, uma toalhinha branca e bela peça abaixo, cunhada por ela. Tudo acompanhado por uma plaquinha

Capitalismo Selvagem

Bárbara Ribeiro

(2011)

Ideal para sua sala. A peça é única e exclusiva. 5 pilas, OK?

Capitalismo Selvagem, obra de Bárbara Ribeiro (peça única, irrepetível, exclusiva)

Gostou deste texto? Então ajude a divulgar!