Por que esperei tanto para ler Jane Austen?

Por que esperei tanto para ler Jane Austen?

Por Joshua Raff
Tradução mal feita por mim

Cheguei tarde a Jane Austen. Como velho e fiel leitor vitalício, não tenho uma explicação simples para essa omissão, mas quando minha família decidiu ler Orgulho e Preconceito como um projeto de leitura familiar logo após a pandemia nos forçar ao isolamento, aproveitei a chance de preencher esta lacuna na minha alfabetização.

Depois que encontrei meu equilíbrio em sua linguagem, fiquei viciado. Deixei de lado os outros livros que estava lendo e me dediquei a Jane. Segui Orgulho e Preconceito com Emma e depois Persuasão em rápida sucessão. Cada um tem ótima narrativa, com o peso adicional de comentários sociais nítidos em uma linguagem que é elegante, intrincada e reconfortante ao mesmo tempo, uma combinação que parecia faltar nos outros livros que eu tinha lido durante o pandemia. E, como pai de duas filhas, senti um tipo especial de admiração pelas jovens heroínas de Austen, que parecem ter sua idade e serem modernas ao mesmo tempo. Particularmente Elizabeth Bennet em Orgulho e Preconceito, que se encaixa mas não se encaixa, que lê, que observa com algum humor as pessoas ao seu redor e o mundo em que habitam. E que, em uma das cenas favoritas de todos, enfrenta a imperiosa Lady Catherine de Bourgh, de uma forma que as heroínas ainda mais modernas teriam orgulho de imitar.

Por que levei tanto tempo para ler Austen? Foi o preconceito masculino da minha educação? Eu comprei a percepção dela como muito feminina… E o que há em seus romances que oferece fuga e consolo para esses tempos estressantes?

Jane Austen

Antes de começar minha busca por Jane, eu sabia ainda menos sobre Austen e sua vida do que sobre seus livros. E eu não apreciava sua base de fãs obsessiva. Testemunhe as legiões de leitores de todas as idades, todas tomadas por histórias ambientadas quase inteiramente no mundo estultificante e aparentemente estreito das classes superiores da Inglaterra da Regência. Ela é popular no Japão, por exemplo, onde existem até versões em mangá de seus livros, de acordo com a estudiosa de Austen, Catherine Golden. Além de sua base de fãs japoneses, suas histórias foram transferidas para a Índia (Noiva e Preconceito) e para a Los Angeles contemporânea (Clueless, um favorito da família), para mencionar apenas alguns. Seus livros foram até mesmo reformulados como histórias de vampiros e zumbis. Existem Sociedades Jane Austen em todo o mundo celebrando todas as coisas relacionadas a Jane.

As mulheres parecem constituir os principais leitores de Austen. As aulas de Catherine Golden em Austen no Skidmore College, onde ela detém a Tisch Chair in Arts and Letters, são predominantemente ocupadas por mulheres. Estou supondo que o mesmo se aplica a muitas outras faculdades e universidades. “Os fás são tipicamente mulheres e principalmente bebem chá”, Jeanne Kiefer conclui na pesquisa mais recente de Jane Austen (Anatomy of a Janeite: Results from The Jane Austen Survey 2008). Existe uma conexão? Estou muito feliz por finalmente ler Austen, mas você não pode me fazer beber chá.

Os homens que encontram Austen tendem a fazê-lo mais tarde na vida do que as leitoras, de acordo com Kiefer. Isso certamente é verdade para mim. Mas a resistência do leitor masculino a Austen parece ser um fenômeno relativamente recente. O professor Golden me disse que até meados do século 20, os homens eram grandes leitores de Austen. E os romances de Austen foram até enviados para soldados britânicos no front em ambas as Guerras Mundiais, em edições feitas especialmente para caber no bolso de seus uniformes.

Os leitores veem em Austen “mulheres jovens bonitas, casas grandes e dramas recatados em salas de estar…”, de acordo com Helena Kelly. Essa é a versão de Austen apresentada em muitas adaptações para cinema e televisão de seus romances, com as bordas de Austen suavizadas. Mas se é assim que conhecemos Austen, Kelly diz: “Sabemos errado”.

Enquanto os romances de Austen acontecem em “espaços feminizados”, nas palavras do escritor e crítico literário William Deresiewicz, Jane é frequentemente caracterizada como “um expoente de grande paixão”. É possível que eu tenha colocado Austen em uma caixa reservada para escritoras particularmente femininas, embora eu leia pelo menos tantos romances de escritoras quanto de homens. É a própria existência de tal caixa (se é que existe uma) evidência de misoginia inconsciente?

Ao contrário das leitoras mulheres, que foram forçadas a se identificar com personagens masculinos durante anos, os homens não tiveram que encontrar coisas em comum com personagens femininas e simplesmente não são bons nisso, diz Deresiewicz. Seu livro, A Jane Austen Education, descreve sua transformação tanto como homem quanto como pessoa, uma vez que ele rompeu essa barreira. Por mais que me deliciasse com o trabalho de Austen, não posso dizer que passei por tal transformação ou, se passei, não percebi, nem minha família ou meus companheiros de zoom. Nunca é tarde demais, suponho.

Pode ser que “homens que lêem”, leitoras de Jane em potencial, sejam afastados pelo tratamento às vezes brutal de Austen para seus personagens masculinos. Eu, pelo menos, fico mais envergonhado, às vezes chocado, com os homens frequentemente vaidosos, insípidos, arrogantes e mesquinhos que povoam os livros de Austen, personagens como Sir Walter Elliot em Persuasão ou o Sr. Collins em Orgulho e Preconceito. Mas Austen não poupa ninguém e há muitas personagens femininas que também se enquadram nessa descrição. E, por necessidade, existem alguns bons homens, muitas vezes pares para as heroínas, uma vez que os livros terminam em casamentos tradicionais. Mas a descrição de Sir Walter que abre Persuasion foi quase o suficiente para eu abandonar totalmente o livro. Obcecado por posição social, seu lugar na sociedade, e impossivelmente vaidoso, “Ele [Sir Walter] considerava a bênção da beleza inferior apenas à bênção de um baronete; e o Sir Walter Elliot, que uniu esses dons, foi o objeto constante de seu mais caloroso respeito e devoção.” E essa é uma das descrições mais brandas de Austen desse homem ridículo. Superei meu desconforto para continuar lendo e estou muito feliz por ter feito isso.

Os poderes curativos ou calmantes da escrita de Austen foram reconhecidos há muito tempo, de acordo com o professor Golden. Não só os soldados britânicos no front receberam cópias de Austen, mas também os soldados em processo de reabilitação. Rudyard Kipling, um grande admirador da obra de Austen, até escreveu uma história sobre um grupo de soldados lendo Austen (The Janeites, publicado em 1924).

O que torna Austen tão atraente em tempos como estes, tempos de isolamento e estresse? É, pelo menos em parte, uma fuga para um mundo, por mais fechado e protegido que possa ter sido, no qual as principais preocupações parecem ser bailes, chás e casamentos, sugere Golden. Mundos ordenados e estáveis, como William Deresiewicz os descreve, ambientados em ambientes rurais e domésticos. E para aqueles soldados nas trincheiras, uma imagem de casa, uma Inglaterra idealizada. Um dos soldados na história de Kipling descreve os romances de Austen: “Eles não eram aventureiros, nem obscenos, nem o que você chamaria de interessantes, mas parece que em tempos particularmente estressantes, a fuga ideal deve ter peso suficiente para enfrentar a crise. Jane tem esse peso.

Seus romances são mais do que boas histórias, mesmo para o leitor casual. Seus comentários cáusticos sobre classes sociais e alguns outros males de seu tempo transcende o mero escapismo e torna seus livros uma diversão digna em dias difíceis. O comentário de Austen sobre o papel e a situação das mulheres, mesmo das mulheres privilegiadas, é tão relevante hoje quanto era há duzentos anos. O que eu suponho que seja triste por si só. Seus insights sobre as emoções humanas, “discurso livre e direto”, de acordo com o professor Golden, nos levam diretamente para a mente de seus personagens e fornecem um imediatismo que fala aos leitores hoje, prova de que a natureza humana e a emoção não mudaram tanto desde a época de Austen.

A linguagem de Austen costuma ser mordaz, mas também é um alívio da alta vulgaridade de hoje. Talvez pareça antiquado, mas há paz a ser encontrada ali, no ritmo, na contenção, na poesia e na elegância que é produto de outra época, inteiramente. E, claro, há o gênio de Austen. Austen retrata uma sociedade altamente regulamentada, seus personagens limitados por uma intrincada teia de regras. Eu não gostaria de viver naquela época, mas como ficção é um contraponto bem-vindo ao caos que parece nos cercar hoje. Existe uma polidez ou etiqueta que é sufocante e atraente, exigindo que seus personagens permaneçam no controle de seu comportamento, não importa o quão turbulento seja seu tumulto interno. Os vilões de Austen violam essas normas sociais aceitas de forma grosseira, enquanto as heroínas (e alguns heróis) se perdem em pequenos caminhos que se avultam no mundo estreito em que seus personagens vivem. E em um estranho paralelo com nossas vidas circunscritas durante a pandemia, o mundo de Austen, como o nosso, é limitado, tanto geograficamente quanto por ordem social.

Acontece que o resto da minha família está deliciada com minha conversão a Austen. E embora algumas coisas pareçam estar melhorando em nosso mundo desde que terminei de ler Persuasão , os eventos recentes são terríveis o suficiente para exigir uma distração valiosa, embora ocasional, da seriedade mortal dos eventos ao nosso redor. Jane Austen é a coisa certa. Estou saindo para ler a Abadia de Northanger .

Carta pública de Mempo Giardinelli a Mario Vargas Llosa

Carta pública de Mempo Giardinelli a Mario Vargas Llosa

Admirado Mestre, onde quer que esteja:

Eu não tive a sorte de ser seu amigo, mas, como você sabe, considero-me seu devoto discípulo. Ambas as vezes em que nos encontramos, uma em Buenos Aires, outra em Lima, cumprimentamo-nos calorosamente, e outras vezes o Sr. me enviou saudações, das quais me orgulho, por outros meios. Mas o que é mais importante para mim é o fato de ter lido quase toda a sua obra com prazer e paixão. Mais: como professor de graduação e pós-graduação, eu sempre dou aulas sobre seus romances, ao menos uma por ano — em 2016 eu abordei Os Filhotes — e sempre retorno a suas palestras sobre Flaubert e Arguedas.

Desde logo vou dizendo que não concordo com nenhuma de suas idéias políticas, mas até agora optei por não contradizê-lo, apenas lamentando silenciosamente várias de suas declarações. Toda vez que eu lhe vi na TV, mudei imediatamente de canal em tributo à qualidade de sua prosa, de sua poética e de seus personagens. Mesmo quando se armou um protesto em 2012, aqui em Buenos Aires, porque o Sr. iria inaugurar a Feira do Livro, escrevi neste jornal que seu Prêmio Nobel foi “irrepreensível por premiar uma estética literária moderna, inovadora, original e escrita à margem da civilização imperial”. E eu também escrevi que “para além do grande narrador, é também um cruzado neoliberal, destes que se espantam com qualquer gesto equivocado kirchnerista, mas que tolera ver Menem rifar o país, o petróleo, as ferrovias, os portos marítimos, etc.”. E chegamos a 2015, quando você fez campanha eleitoral dizendo que, “se fosse argentino, votaria em Macri”. Neste caso, também mantive silêncio, apesar de que me doía vê-lo manifestar-se.

Mas, embora eu jamais tenha retrucado as suas opiniões nem muito menos contra-atacado — e não farei isto agora –, quero lhe dizer que fiquei estupefato com o diálogo que você manteve em Madrid, nesta semana, com o presidente de meu país. Ao ver você aceitar e celebrar tanta mentira não literária, concluí que meu silêncio já era demasiado.

Vargas Llosa também têm feito aparições em peças teatrais de sua autoria. Os críticos têm sido irônicos sobre o Nobel-ator.
Vargas Llosa também têm feito aparições em peças teatrais de sua autoria. Os críticos têm sido irônicos sobre o Nobel-ator.

O governo liderado pelo Sr. Macri é um governo de bandidos, em primeiro lugar, porque chegaram ao poder prometendo o que o povo argentino queria e precisava ouvir, mas determinados — desde o primeiro momento — a trair cada uma dessas promessas.

Em segundo lugar, é um governo de facínoras insensíveis, de canalhas que, ao longo de quatro décadas, e em todos os seus governos, depositaram aproximadamente 350 bilhões de dólares em paraísos fiscais. Por isso, o primeiro ato do Sr. Macri foi o de legalizar essas fortunas, que supostamente retornariam ao país.

O Sr. Macri é hoje considerado — não no mundo da América Espanhola, é claro — um dos cinco governos mais corruptos do planeta. E o repertório de escândalos que os grandes jornais e o sistema de televisão argentino omite é chocante. Sabe-se que existem mais de 40 empresas ligadas ao Grupo Socma, de propriedade da “Famiglia” Macri. E são públicos os repetidos “perdões de dívidas” e favorecimentos, como nos casos de Correo Argentino (de seu pai) e Ferrocarril Sarmiento (de seu cunhado).

Claro que fico pasmo por vê-lo celebrar Macri, ignorando tudo isso. O gabinete argentino se assemelha ao do Dr. Caligari, com mais de 50 membros processados (incluindo o presidente e seu vice) e com vínculos perversos com a empresa brasileira Odebrecht, cuja diretoria é grande parceira do presidente.

Você deve saber, com certeza, que a atuação do Supremo Tribunal Federal foi alterada através de decreto e que agora o país é governado por “decretaços” como fizeram há décadas os militares aqui e os ditadores no  Peru. E com certeza está ciente dos favores obscenos a latifundiários e a alvoroçados empresários, que puseram milhões de trabalhadores na rua, destruindo não somente empregos, mas educação, famílias e sonhos. Em pouco mais de um ano, foram fechadas 7000 fábricas e empresas produtivas, o ensino público está em estado terminal e, nestes 14 meses, nossa dívida externa aumentou ad infinitum, para algo que nunca vamos pagar.

Custa-me crer que você, meu Mestre, com a sua acuidade proverbial, preste-se a esta farsa. Pergunto, então: são tão grandes os negócios que nos preparam na Espanha que justifique uma recolonização? São tão grandes esses interesses a ponto de você descartar uma grande carreira literária e favorecer um arruaceiro que se assemelha tanto a seu compatriota Fujimori?

Minha lealdade de discípulo e a consciência de minha pequenez literária não me impedem de ver, com dor, o triste papel encarnado por você na televisão ao discursar platitudes com a finalidade de criticar o presidente venezuelano. Dói-me ouvir suas falas cheias de conotações racistas e classistas.

Me deu muita pena do Sr., Don Mario, ao vê-lo tão generoso e dócil na frente do lamentável governante desta terra que lê e gosta de seus livros. Eu senti dor e um certo embaraço por ser seu admirador.

Sim, sem dúvida, vou continuar admirando sua obra literária, mas que enorme vergonha senti de vê-lo agora, em idade avançada, desempenhando um papel como Zavalita perguntando: “Em que momento se fudeu a Argentina?”.

Seguirei devoto de sua grandeza literária. Mas apenas dela.

Péssima tradução de Milton Ribeiro.