Hoje, eles estão mais dos lados do que sobre a cabeça, mas já tive muito.
Às vezes não parece, mas saibam que sou uma natureza fiel. Gosto de repetir o mesmo restaurante, a mesma mesa, os mesmos rituais e gosto de cumprir agendas como um cão. Aliás, amo os cães.
Também gosto de repetir o mesmo cabeleireiro ou o mesmo barbeiro. Tanto que fui cliente do Nei por mais de 35 anos. Comecei com ele no atual Shopping João Pessoa, lá por 1969. Permaneci com ele quando ele atravessou a rua e foi parar à frente e ao lado de meu ex-colégio, o Júlio de Castilhos.
Durante o longo período em que cortei cabelo no Nei, surgiu o Trianon e todos os jogadores de futebol passaram a deixar suas madeixas com ele. Não obstante minha presença, ele ficou famoso.
Uma vez, o Nei estava trabalhando na minha cabeça, enquanto Falcão tinha sua careca lavada ao lado. O Nei me perguntou:
— Há quantos anos tu vens aqui?
— Há uns 20.
E Falcão se meteu no papo:
— E como é que tu ainda tem cabelo?
Pois é, na época eu ainda tinha bastante.
Com o tempo, começaram a aparecer bolas de futebol desenhadas nas paredes do Nei. Todos os jogadores que iam ali deixavam seus autógrafos em tinta preta ou branca. No começo, eram só colorados e gremistas, mas logo apareceram nomes como Sócrates, Zico, Reinaldo… Em poucos anos, as paredes foram totalmente preenchidas pelos craques.
Depois, o Nei — que era colorado, claro — se aposentou e eu passei a cortar o cabelo por R$ 5,00 ali na Azenha. O cara vinha e apenas metia a máquina na altura 3. Era rápido e eu achava que, de acordo com o cheiro dele, ele pegava aquela pouca grana e comprava tudo de cachaça barata.
Então foi a vez do Reinaldo. Ele perguntava se eu queria ler durante o corte e me mostrava as últimas playboys. Se eu parasse no rosto, nos peitos ou na bunda de uma mulher, ele dizia, gentil:
— O senhor tem muito bom gosto.
Não fiquei muito tempo com ele. Hoje, eu corto no Régis, aqui ao lado de casa, na BarberShop Independencia. Só que, após 5 anos de fidelidade, a pandemia me impede de visitá-lo. Acho que nossas respirações ficariam muito próximas. A última que o visitei foi em fevereiro. Uma pena. Gosto muito dele.
A Elena cortou meu cabelo lá por maio, fez bom trabalho, mas depois a coisa ficou selvagem. Tenho cabelos sobre as orelhas. Tento fazer rabo de cavalo, mas ainda não dá. Lembro de quando jogava futebol no colégio. Eram os anos 70. Havia um monte de colegas lindas. Meus momentos mais eróticos eram quando eu pedia para uma delas — sempre a mesma — fazer um rabo de cavalo em mim para que meus cabelos não atrapalhassem meu modesto desempenho futebolístico. Ela puxava meus cabelos com as mãos rastreando o pescoço. Era algo arrepiante e eu passava uns dois dias pensando naquilo.
O problema agora é saber quem vencerá. Ganhei de aniversário uma máquina de cortar cabelo. Será que ela chegará antes da Elena fazer um rabo de cavalo em mim?
Dias depois da publicação desta entrevista, recebi uma ligação no celular. Era Paixão Côrtes me agradecendo. Ele disse que, tchê, ficou bem completa. Perguntou se podia utilizá-la em outras publicações, com as fotos também. Respondi que as palavras e a cara eram dele. Deu risada. Só o vi aquela vez. Tive a melhor das impressões do velho gaúcho falecido ontem.
João Carlos D`Ávila Paixão Côrtes nasceu em Santana do Livramento no dia 12 de julho de 1927. É agrônomo, mas sua principal atuação dá-se como folclorista e pesquisador. Paixão Côrtes é um personagem decisivo da cultura gaúcha e do movimento tradicionalista no Rio Grande do Sul, do qual foi um dos formuladores, juntamente com Luiz Carlos Barbosa Lessa e Glauco Saraiva. Juntos, partiram para pesquisas de campo. Viajaram pelo interior, a fim de catalogar traços da cultura do Rio Grande. Em 1948, foi um dos fundadores e organizadores do CTG 35 e, em 1953, criou o pioneiro Conjunto Folclórico Tropeiros da Tradição. Ele será o patrono da próxima Feira do Livro de Porto Alegre. Paixão Côrtes falou ao Sul21 em sua residência, em Porto Alegre.
Sul21 – O senhor possui duas grandes linhas de trabalho: uma como etnógrafo – por seu trabalho de pesquisa e documentação – e outra, ligada ao movimento tradicionalista.
Paixão Côrtes – Na semana passada, lancei, num CTG de Flores da Cunha, uma espécie de resenha de todas as minhas publicações, que vão desde os livros até os folhetos, artigos e opúsculos. O trabalho mostra todas as capas das edições e reedições organizadas cronologicamente. Estou com 83 anos, mas tenho a sorte de ter visto organizarem isso para mim. A gente fica trabalhando e não tem ideia do que produziu. (PaixãoCôrtes mostra a publicação. O número de obras é efetivamente muito alto. Há livros sobre música e danças e os folhetos sobre gastronomia e tradições de regiões específicas. Ele nos convida a trocar a sala, onde estamos, para o que chama de “sua baia”, porque diz ter “sentido” que a charla seria longa. A “baia” é onde trabalha, um escritório cheio de livros. Ele senta na sua cadeira predileta, coberta por um pelego.)
Sul21 – A Feira do Livro de Porto Alegre habitualmente tem um ficcionista como patrono. Esta é a primeira vez que ela se curva à cultura popular e a alguém que faz outro gênero de trabalho. Um trabalho ligado a uma antropologia intuitiva, que os antropólogos titulados pouco se dignaram a fazer, ou seja, a pesquisar e documentar o folclore gaúcho no território, lá fora, como os gaúchos dizem.
PC – Inicialmente, quero dizer que me senti muito lisonjeado (por ter sido escolhido patrono), pelo simples fato de eu não ser um escritor na concepção atual e, sim, um escrevinhador: recolho as temáticas da cultura popular, estudo-as e tento dar a elas nova dimensão, através da divulgação em texto escrito, devolvendo ao povo o que é dele. Eu vou às pessoas, vejo-as, ouço-as e trato de sentir a alma popular de nossa coletividade. A expressão pessoal e individual e o desenvolvimento econômico e social não interessam a meus trabalhos; seria outro estudo. Interessam-me os aspectos espontâneos e coletivos da cultura, sua identidade. Interessa-me preservar aquilo que o tempo dirá se terá continuidade em cada etnia. O que me interessa é dar às pessoas um conforto, um ânimo e uma certeza de que pertencem a uma coletividade.
Sul21 – E o instantâneo?
PC – Pois é, tchê, o instantâneo, o modismo, o oportuno e o circunstancial “justificam”, entre aspas, ações que são inteiramente desprovidas de sentido histórico. Dá muita tranquilidade o valor dado às origens como uma forma de identificar e projetar as comunidades dentro de um universo maior. E o maior mérito de um povo civilizado é não apenas compreender-se a si mesmo, mas compreender a si mesmo de forma a compreender os outros. O conhecimento de si é uma forma de projetar conhecimento para fora, entende? E como é que os homens simples, jovens, rurais vão projetar sua originalidade num universo maior sem conhecer a realidade e as vivências do seu passado cultural, social e artístico? É aí, então, que se estabelece a ação e a reação e o respeito de um pela cultura do outro.
Sul21 – Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia, escreveu Tolstói.
PC – Mas isso é uma verdade evidente, né? E este conhecimento pode renovar valores e melhorar a própria humanidade. E com mais paz, tchê, que é o que a gente procura. Mas voltando à Feira, foi por tudo isso que, apesar de me sentir honrado e surpreso com o convite, passei a achar natural que me colocassem ao lado de escritores, ensaístas, historiadores, professores e coisa e tal para concorrer a patrono. Pô, depois de 60 anos olhando diariamente nos olhos do povo, acho que eu merecia um reconhecimento, apesar de que vou te dizer uma coisa: só agora, aos 83 anos, é que estou começando a produzir coisas mais maduras. Meu novo livro já está em 700 páginas. Mas como, tchê? É porque hoje eu relaciono melhor as coisas. Estou, de verdade, descobrindo o significado daquilo que eu recolhi há anos. Hoje, vejo com mais exatidão as peculiaridades que me ajudam a reproduzir uma época passada.
Sul21 – O senhor está falando em ciência do folclore, em etnomusicologia, em pesquisa. Como isso funcionava no campo? Que métodos o senhor utilizava para recolher as informações, como fazia para tornar aquilo palpável?
PC – O negócio era o seguinte: nos primeiros anos, lá por 1947, eu entrava em comunidades onde eu jamais estivera, de quem eu só conhecia parte da história. E saía perguntando, falando com os mais velhos. Olha bem, tchê, eu tinha 20-22 anos, chegava lá de bota, bombacha e lenço no pescoço, eu sou um homem do campo e não um gaúcho de palco, microfone e holofote. Eu ia buscar a cultura daquelas pessoas lá na convivência com eles, num diálogo direto, sem tecnologia nem nada. Buscava mais aos idosos para saber de suas vivências e acabava causando muita espécie porque eu, jovem, de 20 anos, não procurava a sociedade das moças e, sim, a dos velhos e das velhas e eles não me conheciam. A estranheza era a seguinte: o que esse guri está fazendo aqui, saído de não sei onde, me perguntando umas coisas sobre a família e sobre o tempo de moços de seus pais? Deve estar procurando alguma herança!
Sul21 – E o senhor perguntando como ele sapateava…
PC – Claro! E o sujeito pensando, mas por que ele precisa saber como eu sapateio? Por que tenho que dar satisfações a esse desconhecido? Então, foi muito difícil adotar, criar um sistema onde eu fosse anotando todas aquelas coisas e ainda relacionando com o meio social e econômico. Eu levava umas anotações prévias sobre a região e começava tateando. “O senhor conhece a chimarrita, o balaio, etc.?” E, naquela época, não existia gravador. Só o Instituto de Música tinha um gravador que pesava 10 quilos e gravava o som em fita de papel. Hoje, ninguém sabe o que é, mas eu tenho tudo guardado. A coisa era assim: eles me diziam como dançavam cada música e eu tentava imitar porque o bagual tinha vergonha de fazer aquilo sem música.
Sul21 – Então eles cantavam para o senhor.
PC – Mas, claro, isso eles tinham que fazer. Então eu girava prum lado e eles diziam, não, é para o outro lado, e eu anotava a posição dos pés. Direito 1, esquerdo 1, direito 2… Tudo desenhadinho para não esquecer. Anotava também as letras e ah, tem uma coisa importante: eu tenho muito boa memória, mas ela funciona de um jeito gozado. A música entra pelo ouvido e vai para o cérebro, mas eu só decoro a melodia se ela vai para o pé. Então, se eu não dançasse, não conseguia voltar para casa com ela no ouvido. Daí, falava com meus amigos músicos a fim de que eles tirassem a música e transformassem tudo aquilo em partituras. Eu cantava e dançava para eles. Depois, com o gravador do Instituto tudo ficou mais fácil e eu cheguei a refazer algumas visitas para ter certeza das anotações. Tava tudo certo.
Sul21 – Enquanto o senhor pesquisava num lugar, Barbosa Lessa fazia pesquisas paralelas noutro lugar, certo? E tudo era feito em fins-de-semanas, porque ambos trabalhavam.
PC – Ah, pois é, um trabalhão. Raramente, nós viajávamos juntos. E era só um gravador. Eu comprava duas passagens no ônibus, uma para mim e outra para o gravador, que era enorme. Quando alguém reclamava, eu mostrava a passagem “dele”. E tudo saía do nosso bolso. Aí, eu gravava tudo naquele trambolho e devolvia o gravador ao Instituto. Senão, tinha que trazer no ouvido.
Sul21 – Podemos voltar poucos anos? Quero relembrar de quando o senhor tinha 17 anos, mudou de colégio – foi para o Júlio de Castilhos no turno da noite – e, junto a outros estudantes, quis estender os festejos da Semana da Pátria até o dia 20 de setembro, data da Revolução Farroupilha, fundando o departamento…
PC – Departamento de Tradições Gaúchas do Colégio Júlio de Castilhos. Como eu estava ausente da vivência contínua com a vida no campo que me era familiar, comecei a conversar com as pessoas e fui vendo que um era de Cruz Alta, outro de Bagé, não sei mais onde. E aí combinávamos: “Aparece lá para tomar um mate”. Tomar mate, naquela época, só dentro de casa. Na rua, nem pensar. Nem na porta de casa. Bombacha ninguém ousava vestir em Porto Alegre.
Sul21 – Vocês logo perceberam que o Colégio Júlio de Castilhos poderia abrigar essa iniciativa?
PC – Ah, não foi tão simples. O negócio é que eu botava bota e bombacha e ia para a aula. E era aquele comentário só. Eu morava na Sarmento Leite, e o antigo prédio do Julinho era na João Pessoa, onde fica hoje a Faculdade de Economia da UFRGS. De noite, eu ia pilchado. Quando fazia frio, ia de poncho. Chovia, botava um chapéu. O pessoal falava: “Olha o guasca de fora”, “Olha o guapo”. E eu não me ofendia, sabia o que eu era, eles não estavam me ofendendo ao dizer aquilo.
Sul21 – E as moças?
PC – As moças não participavam. Elas estavam em outra. “Miss”, “Star”, tudo nome americano. E eu fui indo, vestido assim. Foi aí que eu comecei a pensar: por que a gente não faz um núcleo de resistência a essas loucuras norte-americanas e tudo o mais que está aí? Fui bolando, pensando, sozinho. E aí um dia, no Grêmio Estudantil, expus a coisa: “Acho que a gente deveria preservar as nossas tradições”, etc. Tinha a Chama da Pátria, no 7 de setembro, data magna da pátria. Foi aí que tive a ideia de tirar uma centelha da pira da pátria e levar para o Júlio de Castilhos, fazer uma continuidade da chama da pátria, lá num candeeiro, até o 20 de setembro. E o pessoal dizia: “Mas como?”. Então fui na Liga de Defesa Nacional, um órgão muito importante na época. Eu conhecia o major Vignolli. Apresentei minhas intenções, numa carta que nós tínhamos preparado. Ele me perguntou: “Então, qual é a ideia?”. E eu, numa insolência que só hoje percebo, respondi: “Vou tirar uma centelha da pira da pátria para levar para o Colégio Júlio de Castilhos”. Imagina, eu com 18, 19 anos. Aí ele chamou um sujeito: “Ô Pimentel, vem aqui”. O sujeito chega e diz: “E aí, Paixãozinho, como é que vai?”, todo entusiasmado. Era amigo do meu pai, com quem tinha trabalhado lá em Santa Maria, me conhecia desde pequeno. E perguntou: “O que é que tu estás fazendo aqui?”. A ideia era prolongar do 7 de setembro até o 20, da Revolução Farroupilha. Aí eles me perguntaram como é que eu queria fazer isso, se era a cavalo, como é que era e tal. Eu tinha pensado em três cavalos – um com a bandeira do Rio Grande, outro com a bandeira do Colégio Júlio de Castilhos e outro com a bandeira do Brasil.
Sul21 – Mas qual era a importância de pegar a centelha da pira da Pátria?
PC – Era muito importante, porque aquela centelha era uma homenagem aos pracinhas que morreram na segunda Guerra Mundial, em Pistoia. O fogo vinha de lá, atravessava o Atlântico, chegava a Recife e descia até aqui. Nós éramos nacionalistas, brasileiros e gaúchos. Nós queríamos participar desta homenagem, dando continuidade do nosso jeito, do nosso modo, de cavalos, bombachas e música nossa. Houve um baile, até. Bom, nós queríamos aquele mesmo fogo dentro de um candeeiro, que era a luminária dos nossos galpões.
Sul21 – E os gaúchos, de onde saíram?
PC- Eu convencia um, que convencia outro. Mas aí não tinha arreio. E cavalo? Não tinha. Fui falar com o doutor Pimentel: “Olha, consegui um piquete bom. Gente firme. Mas não temos cavalo, nem arreio”. O doutor Pimentel disse que conseguia os cavalos, do Regimento Osório. “E os arreios?”, perguntei. “Isso vai ser difícil”. Falei para ele: “O senhor me arruma uma caminhonete e dois homens que eu dou um jeito”. Cinco horas da manhã saímos em direção a Belém Novo. Foi clareando o dia e iam aparecendo aquelas figuras a cavalo; eu mandava parar a caminhonete e começava a dar um discurso sobre o gaúcho, a pátria, o gauchismo, e os caras ficavam atônitos (risos). Assim arranjei 14 arreios. Só na palavra! Devolvi um por um, eu mesmo. Montamos os arreios e conseguimos oito pessoas. Faltou gente para montar, as pessoas ficavam com vergonha. Tu podes imaginar oito loucos vestidos de gaúcho, de faca?
Sul21 – A revolução Farroupilha não era comemorada?
PC – Não, era tudo proibido. Os símbolos estaduais eram proibidos. Não era feriado, não tinha nada e nós comemoramos com um baile no Teresópolis. Um veio pilchado, o outro não. Nós tínhamos uma bandinha alemã que nem sabia tocar a nossa música, foi uma dificuldade ensinar alguma coisa para quem só sabia tocar valsinha. E todo mundo chorando por causa da fumaça do churrasco. Uma bagunça, tudo improvisado.
Sul21 – E a expansão do movimento? E o CTG 35?
PC – O nome nós decidimos numa reunião em 5 de janeiro de 1948, mas a fundação foi em 24 de abril. Foi difícil. Não conseguimos o registro civil. Nós queríamos um CTG, eles falavam em associação; eles falavam em presidente, nós em patrão; eles falavam em vice-presidente, nós em sota capataz; eles em relações públicas, nós em invernada disso ou daquilo. E lá dentro também era confuso. Nós tínhamos poucas descrições, partitura nenhuma, então o Lessa e eu começamos a procurar. Eu viajava muito, pelo serviço, então íamos cada um para um lado. Começou em Palmares. Eu estava falando com um rapaz sobre danças tradicionais e ele me falou da tal “dança do pezinho”. Eu não sabia: “Que dança do pezinho? Vocês dançam isso?” E o cara: “Claro, lá na praia, nas festas”. E aí formou-se um grupo e nós fomos a Palmares para pesquisar. Bem, se a 100 quilômetros de Porto Alegre tem uma dança dessas, como é que não vai ter por esse Estado inteiro?
Sul21 – E os clubes?
PC – O clubes não nos aceitavam. Ninguém podia entrar num clube de bota e bombacha.
Sul21 – E os escritores que dizem que o senhor e Barbosa Lessa “inventaram” as tradições e toda a mitologia gaúcha?
PC – É gente desinformada, são pessoas com raízes urbanas que não consideram o campo. Eu não penso ou invento nada. Tenho horas e horas de fitas e documentação. É só estudar. E como é que eu vou inventar se eu não sou compositor nem sei escrever partitura, se não sou músico? Como é que eu vou inventar coreografia sendo engenheiro agrônomo? Como é que eu vou inventar cultura trabalhando em outro ofício durante toda a semana. Mas se tem que sapatear ou montar num cavalo, ah, isso eu sei fazer. Ser me pedirem para dançar com uma prenda, vou dançar com o respeito e a nobreza que a mulher merece. O que é isso? Como é que eu e o Lessa faríamos para criar toda essa montanha de coisas que está nesses livros aí? Bom, nesse caso, nós seríamos geniais. Só que não somos, só fizemos registrar o que existia.
Sul21 – Há preconceito.
PC – Há preconceito, mas não adianta, hoje é conceito. Mas é claro que tudo vai mudando, a cultura é dinâmica, nada é estático. Mas é um dinamismo coerente com a cultura original. Isto parece ser difícil de entender. Por exemplo, passei dez anos estudando os Birivas, alguns diziam mas o que é isso, Paixão? Pois é, está aí, olha este livro, Danças Birivas. Encontrei tudo, por onde eles andavam, suas canções e vestimentas. Isso é depois de 1732 e está tudo documentado. Só havia conhecimento sobre a indumentária masculina, mas me diga se há um baile sem a presença feminina, ainda mais numa época onde talvez o baile fosse a única chance de ver uma mulher com a qual se pudesse casar. Claro que havia os vestidos delas e está tudo aí. Chula, dança dos facões, chico do porrete, fandango… só homem dançando? Como é que uma sociedade se reunia, certamente de raro em raro, sem mulheres. Hein? É inimaginável. Elas ficavam em casa? Claro que não. Levei anos para saber por onde andaram, o que cantavam, dançavam, comiam, vestiam, se recreavam, etc. Sim, desapareceram, mas há que descobrir a origem de tanta coisa que chegou a nós de outro jeito. Agora, se o crítico não lê o livro para retrucar com conhecimento, eu não posso fazer nada, só não dou bola. Eu só reproduzo.
Sul21 – E o Laçador? Como foi a história do monumento?
PC – Em 1954, São Paulo comemorava 400 anos de fundação e fez um grande evento nacional, convidando todos os estados brasileiros, inclusive o Rio Grande do Sul. E eu tinha fundado o conjunto Tropeiros da Tradição, que era um grupo de músicas e danças folclóricas e lá fomos nós representar o RS. Havia um enorme estande, um pavilhão e havia sido previsto um concurso para uma alegoria, um símbolo que falasse do estado. Cada candidato apresentava um projeto e lá estava o Antônio Caringi. Só havia quatro artistas propondo projetos. E me convidaram de surpresa para fazer parte da comissão julgadora. Lá estavam o Dante Laytano, o Moisés Vellinho e outras pessoas de destaque na época. Eu era um bagual e nem sei porque me chamaram, mas me convidaram e eu fui. E cada artista mostrou uma maquete e fez uma exposição de motivos, vendeu seu peixe. E eu fiquei por lá avaliando. Eu gostei mais do projeto do Caringi e ele venceu.
Sul21 – O Sr. conhecia ele?
PC – Não. E aí me pediram para escrever um arrazoado justificando a escolha. Eu fiquei louco de medo. O que eu sabia de obras de arte? Aí, o Caringi veio me visitar em minha casa para detalhar a vestimenta do Laçador. Ele queria saber de cada laço, de cada detalhe, como fazia, como usava, etc. E eu ia explicando tudo para ele. Aí ele voltou umas três ou quatro vezes com dúvidas e eu acabei de modelo para o monumento. Ele ia lá em casa e eu ficava lá parado com ele desenhando, rabiscando. Pegava o laço assim, assado, uma chatice. Dava opções para ele, puxava o lenço para cá, para lá. Ele me perguntava se podia colocar isso, ah, isso pode; ou aquilo, aquilo não pode, porque nenhum laçador usa assim. E a estátua saiu.
Sul21 – E o fato do senhor ser um colorado de quatro costados, sendo que a torcida do Grêmio é quem usa o Laçador como um símbolo seu? Há até chaveirinho para vender com o Laçador gremista.
PC – Olha, eu sou até cônsul cultural do Inter. Apesar de o Laçador ser um símbolo de todos os gaúchos, acho que os caras nem imaginam uma coisa dessas… Meu pai foi goleiro e ponta-esquerda do Inter entre os anos 1912-17. O apelido dele era Peru e, quando criança, eu era o Peruzinho. Meu avô, avó, pai, eu, todos os filhos e netos, todos são colorados. Todo mundo é bi da América e futuro bi mundial, tchê. O mundo está dominado, está tudo dominado! (risadas)
Sul21 – E, para terminar: no que a sua atuação na Feira diferirá dos antecessores?
PC – Ontem, eu falei com o presidente João Carneiro. A programação foi levemente alterada para agregar mais alguns eventos de cultura popular. Haverá então quatro ou cinco “momentos originais”, não tradicionalistas. São pessoas vivas que, com roupas originais, remontarão a formação do Rio Grande do Sul. Vão estar tocando se apresentando e cantando lá na feira. E eles terão momentos de saudação onde explicarão ao público o que estão representando, seja mouros ou cristãos, remontando as lutas ibéricas, as desconhecidas manifestações africanas calhambolas e também o tradicionalismo vigente nos dias atuais. Mas tudo ainda tem de ser ajustado ainda. Foi tudo muito intenso nos últimos dias, houve muito trabalho. A abertura será com matraca e não com sino. A matraca é como chamavam as pessoas no interior do estado. Não sei se somos belos ou maravilhosos, sei que somos autênticos e que ajudamos a formar o que está aí. E o pessoal da Feira está sendo sensível aos pedidos simples de um patrono um pouco diferente. (A esposa de Paixão Côrtes, Marina, diz que ele tem uma entrevista marcada com uma rádio de São José do Norte naquele minuto. Não obstante ela estar com o telefone na mão, os dois não têm pressa. Ela diz que foi contra a candidatura a Patrono da Feira.)
Marina – Dá muito trabalho cuidar dele…
PC – Ela diz isso por causa do meu marcapasso. (Sugiro que ele vá no ritmo do marcapasso. Ele dá uma gargalhada, leva-nos calma e gentilmente até a porta. No caminho, diz que ainda não almoçou. Eram 15h30.)
Obs.: Duas perguntas e respostas da entrevista foram copiadas do material escrito que Paixão Côrtes entregou ao Sul21 durante a entrevista. Uma delas é “E as moças?” e a outra foi “E o gaúchos, de onde saíram?”.
Às vezes, Erico Verissimo (1905-1975) aparece com um livro novo. Dia desses, vi o pequeno volume Do Diário de Sílvia, um lançamento relativamente recente dos fantasmas do escritor. Fiquei feliz, pois sabia tratar-se de um dos trechos que mais gostei da trilogia O Tempo e o Vento, mais exatamente do terceiro volume da terceira parte do raramente lido O Arquipélago. Explico: hoje, O Tempo e o Vento é vendido em sete volumes: dois de O Continente, dois de O Retrato e três de O Arquipélago. O diário de Sílvia está lá no final, no terceiro volume d`O Arquipélago. Em 1974, a grande professora de literatura e português Sara, a Sarinha do Colégio Júlio de Castilhos, fez com que lêssemos toda a trilogia. Eu tinha 16 para 17 anos e acabei me apaixonando perdidamente pela personagem Sílvia, com a qual fantasiava e convivia diariamente e que me aparecia com o rosto de Julie Christie jovem…
Para quem não leu o imenso romance, explico que há nele um jogo de ir e vir no tempo entre os anos de 1745 e 1945. A cada capítulo, Erico nos leva a um período diferente e vamos entendendo a estrutura e a história de família Terra Cambará. A Editora Globo foi a primeira a dar-se conta de que os capítulos que formam a história de Ana Terra poderiam ser juntados e arrancados de O Tempo e o Vento — mais exatamente do primeiro volume da trilogia, O Continente — para tornar-se uma novelinha. O mesmo foi feito depois com a narrativa dos feitos do Capitão Rodrigo Cambará, que transformou-se em Um Certo Capitão Rodrigo. Acho que isto foi feito ainda em vida de Erico e, presumivelmente, com sua autorização. Agora, a Cia. das Letras inteligentemente extrai outro trecho do livro e transforma-o num pequeno volume de menos de 100 páginas.
Não resisti e comprei o livro. Sou dos poucos que considera a terceira parte — O Arquipélago — a melhor das três. Esta avaliação não é nada literária, é baseada simplesmente no fato de que Sílvia está lá. Buscava-a em todas as mulheres. Não era uma fixação baseada em erotismo, era algo mais ligado à afinidade, a uma convivência agradável. Ontem, quando comecei a reler o Diário, ia atrás do que sobrara do Milton adolescente e tentava descobrir se ele não era um idiota completo. Surpreendi-me com três coisas: a primeira é de que ela ainda é fascinante para mim; a segunda foi o alto número de referências políticas que Sílvia faz em seu Diário, escrito entre os anos de 1941 e 1943; a terceira é o grau de franqueza (quase crueza) que ela utiliza para caracterizar o fracasso de seu casamento e o amor irrealizado pelo cunhado Floriano.
Descobri então que minha memória dourou a musa, deixou-a um pouco mais etérea, enquanto ela, aos 25 anos, agora pulsando frente a meus olhos de cinquenta e tantos, trata de tocar modernamente sua realidade na imaginária Santa Fé. Voltei a sonhar um pouco, lembrei bastante dos anos jovens de colegial e, ontem, para lembrar os velhos tempos, fantasiei beber uma champanhe com ela na calçada da Av. João Pessoa, tal como ela (Julie Christie) fez com Truffaut.