A MESMA CARTA MARCADA, por Marcos Nunes
Fiquei bastante surpreso com o fato de algumas pessoas de minhas relações terem visto – e gostado – de CORINGA. Me obriguei, assim, a vê-lo, ainda que deteste o subgênero “filmes baseados em histórias em quadrinhos com super-heróis”, basicamente porque super-heróis são apenas uma expressão de cultura de massas, que se utiliza da fórmula das soluções mágicas para mascarar a impotência de seus consumidores, inserindo-os em um universo demagógico onde ele tem voz e poder.
Lamento, mas não gostei mesmo do filme, ainda que ele seja diferente dos demais desse subgênero, tanto na construção do roteiro quanto das personagens, além da linguagem cinematográfica que o aproxima mais de filmes realistas como Midnight Cowboy ou hiper-realistas como Taxi Driver e sua violência gráfica. Arthur, o Joker da vez, me pareceu uma fusão de Ratso (de Midnight Cowboy) com Travis (de Taxi Driver).
O tipo esquizo-paranoide que é associado ao cidadão comum, suas mazelas, fracassos e acentuado grau de sociopatia, não me pareceu representar a revolta dos pobres esquecidos pelo capitalismo financeiro versus os ricos que abdicaram de qualquer pretensão a um mundo mais justo e gozam com a multiplicação das injustiças.
Ele me parece mais um… bolsomínion, alheio à política, imerso no ressentimento e, em dado instante, também adepto da solução violenta como expressão de sua potência íntima relegada à marginalidade por um sistema injusto.
Arthur, cuja fisionomia muitas vezes lembra a do vigarista-em-chefe ora no poder, também não sabe de nada, sequer da própria vida e de seu passado. Supostamente a mãe foi vítima de uma trama de ocultação de paternidade sob responsabilidade do vilão da história, o pai de Bruce Wayne (que virá a ser o “Batman”, coisa mais ridícula, um bilionário ocupado em fazer justiça com as próprias mãos para o bem de uma sociedade conflagrada justo pela desigualdade crescente de renda e poder…).
Mas tudo pode ser apenas projeção de mentes paranoicas, mergulhadas no delírio persecutório. Mas também pode não ser.
Nisso entra o discurso subliminar acerca da ignorância, despolitização, incapacidade técnica e fracasso social em que mergulhou a maioria dos habitantes de Gotham City, que passam a cultuar o “assassino do metrô” por ele ter liquidado com três agentes do mercado financeiro (coisa, aliás, bem inverossímil: três corretores do mercado financeiro na madrugada, viajando pelo infecto e perigoso metrô da cidade…).
Isso lembra o que? Exatamente: o revanchismo do pobre que, ao invés de mudar sua condição pela razão e compreensão do jogo político e social de um universo financeirizado, toma para si a figura de um assassino que potencializa suas realizações, dá expressão aos desejos de vingança e às soluções mágicas da violência, da fé cega e faca amolada, que significariam, para essa massa, a fuga do sistema, vitória sobre ele, conquista de força pessoal e coletiva.
Mas tudo que se produz a partir desse herói imerso em complexo de inferioridade é o caos, a anarquia.
Me pareceu que a conclusão do filme é óbvia: dar poder ao povo significará caos irremediável. A miséria que existe é responsabilidade apenas dos próprios miseráveis, mentalmente incapazes e psicologicamente destruídos por uma fusão de ignorância total e desejos irrealizáveis.
Ao imergir na cultura das massas, chega-se à conclusão que o mais perigoso para a sociedade é render-se à demagogia da assimilação dos conceitos do homem comum para melhor feitura e conclusão de um Estado capaz de atender a todos, não apenas àqueles que, em termos darwinistas sociais mais bem dotados, tomam o poder nas mãos, e isso é posto como absolutamente legítimo.
O que é a falta de poder do Coringa se não inadaptabilidade social derivada de males psicológicos derivados não dos conflitos de classe e poder, mas apenas de relações afetivas instáveis e marcadas pelo pendor à esquizofrenia?
Me parece bem estranho que pessoas “de esquerda” tomem o Coringa como símbolo para uma revolta consequente das massas. O que o filme apresenta é justo o posto: ressentidos cuja arma revolucionária é apenas a violência direcionada genericamente aos “ricos”, sem que compreendam qualquer coisa acerca do tecido social construído por determinado modo de produção.
O Coringa representa, isso sim, os bolsomínions, o cara ignorante, violento, preconceituoso, que emerge das massas como expressão do obscurantismo essencial das mentes imersas nas piores patologias. A massa o acolhe como herói, um homem antissistema, despolitizado, que vence como símbolo da estupidez coletiva empoderada.
Funciona, assim, como um aviso contra lideranças políticas “populistas”. E nesse balaio cabe, prioritariamente, quaisquer lideranças políticas de esquerda, jamais os tecnocratas do liberalismo econômico.
Funciona como imagens reveladoras da degradação dos povos, sob única responsabilidade… deles mesmos. São as cartas marcadas de sempre: ou o povo é conduzido por déspotas esclarecidos, ou cria um despotismo próprio, o fascismo, elegendo um líder carismático e pondo-o a serviço de sua irracionalidade patológica.
Não serve como expressão de revolta legítima contra um sistema político e econômico que condena as massas à pobreza e à miséria, mas o inverso: como tal revolta apenas expõe uma massa de ressentidos cuja fúria leva tão somente à perseguição, tortura e morte dos inimigos, designados apenas como “os ricos”.
Diante disso, “chama o Batman”.
E isso é muito pouco. E certamente demais para ter ganho um Leão de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Veneza.