Essa história do Antônio é sensacional, mas temo ser um narrador muito inferior a ela. Vou tentar, tá?
Na engenharia, naquele final dos anos 70, nós tínhamos um semestre de Cálculo Numérico e duas opções de professores. A primeiro chamava-se Porto e a segunda Cláudio. Excelente professor, Porto era tido por um gênio e talvez fosse. Hoje, além de gênio, ele seria um grande riponga. Vinha para a aula de sandálias quando estas eram usadas somente por religiosos; usava cabelos compridos, mas não penteados como os nossos daquela época — os dele eram uma zona. As roupas eram andrajos e todos os caras mais inteligentes o escolhiam. Porém, ele tinha duas características da qual eu não gostava: evitava o olhar direto e parecia destituído de humor. Já Cláudio era considerado um sujeito muito competente, mas convencional. Era respeitado. Baixinho, careca, de óculos… Ninguém ousava referir-se a seu estrabismo convergente. E eu me matriculei junto com meu amigo Antônio para fazer a cadeira de Cálculo Numérico com Cláudio. As aulas eram terças e quintas no horário das 20h30 às 22h10.
O que ninguém tinha me contado era sobre a voz monocórdica do professor. Aquilo era pior do que ingerir um vidro inteiro de Dramin estando com o estomago vazio. O cara começava a aula e, em quinze minutos, via-se corpos esparramados pela sala. Se alguém tirasse uma fotografia de nossa sala durante aqueles momentos terríveis, veria todo o tipo de posturas cansadas: gente atirada com a cabeça e os braços sobre a mesa, gente olhando o vazio, gente com os pés para cima, bocejos, gente conversando, conversando, conversando. Cláudio tinha uma mania. Quando finalizava uma demonstração, olhava-nos com ar vitorioso. Então víamos um sutil sorriso manter-se por um longo minuto em seu rosto enquanto nos observava. Eu via aquilo e pensava no quanto ele nos ignorava. Ele era feliz explicando seus teoremas e isso lhe bastava. E a gente, vendo aquele perigoso sorriso, copiava rapidamente o conteúdo do quadro-negro para estudar tudo em casa, quando estivesse efetivamente acordado.
Um dia a coisa foi longe demais. Estava quente, úmido, insuportável como só Porto Alegre sabe ser e a atenção ao professor conseguia ser menor que o habitual. Para completar, parecia que ele não gostava daquele trecho da matéria. A aula estava tão ruim e desinteressante que ele não mostrara ainda seu ar vitorioso. O sofrimento encaminhava-se tristemente para o final quando o Antônio ergueu o braço para fazer uma pergunta. Cláudio atendeu-o de pronto. Para a surpresa de todos, Antônio levantou-se da cadeira. Pelo visto, não podia fazer a pergunta sentado. A coisa ficou ainda mais séria quando ele iniciou sua fala com um sonoro “Prezado professor Cláudio”:
— Prezado professor Cláudio. Gostaria de dizer algo muito importante para mim e que certamente o deixará feliz.
A turma começou a se mexer, acordando da longa aula, verdadeira cura para a insônia. Cláudio observou Antônio de pé e pediu:
— Sim, o que é?
Antônio fez uma cara de absoluta paixão pela ciência matemática e, com voz embargada, começou:
— Professor, eu gostaria de lhe dizer que esta foi a maior e melhor aula que já tive em toda minha vida. O Sr. foi de um brilhantismo irrepetível. Nunca, em minha experiência universitária ouvi observações de tanta pertinácia, explanadas com tanta didática, clareza e talento. O Sr. torna minha vida mais feliz.
É claro que já havia gente rindo, na verdade havia gente dando gargalhadas descontroladas, tal a surpresa e a inadequação àquilo que ocorrera em aula. A coisa era tão inacreditável que o professor quedou-se inteiramente paralisado, sério, no estrado, observando detidamente o autor do discurso, como se ele fosse um ET. Depois, ele passou a olhar também os alunos que riam, dentre eles eu. E passava o olhar de nós para Antônio e de Antônio para quem já chorava de tanto rir. Ator perfeito, Antônio mantinha-se contrito, com cara de devoção. Eu já estava me sentindo mal, quando o professor perguntou a Antônio:
— Tu estás falando sério?
Foi a pergunta mais tola possível. Foi a pergunta de uma pessoa que não está impermeável ao elogio mais chão. Ele queria acreditar no Antônio. A resposta do meu amigo foi mais uma torrente de elogios.
— Professor, faz algumas semanas que me embeveço suas aulas, mas a de hoje ultrapassou tudo o que eu tinha presenciado até hoje nesta universidade. Eu estou agradecido por sua competência e dedicação a nós — disse com toda a seriedade.
Todos estavam quase rolando de rir, quando o professor nos mandou calar a boca em voz tonitruante. A aula continuaria.
Antônio sentou-se. Antes de seguir a tortura, Cláudio ainda voltou-se novamente para o aluno e o encarou longamente. Sua vaidade estava perdendo a guerra interna e ele finalizou o olhar inteiramente vermelho. Viu-se claramente que ele passara a acreditar mais nas risadas.