Vá e veja, a obra prima absoluta dos filmes de guerra

Finalmente, Vá e Veja ganhou edição nacional em DVD. Filme que nunca foi apresentado em circuito comercial no Brasil (*), tornou-se objeto de culto de uns poucos quando de seu lançamento em VHS, na década de 80. Meu amigo S. — o mesmo deste post – disse-me que os três maiores filmes de guerra já realizados teriam sido Stalingrado, de Joseph Vilsmaier; Glória feita de sangue, de Stanley Kubrick, e Vá e veja, de Elem Klimov (1933-2003). Tenho os três em casa, vi muitos outros e creio que a escolha de S. não é apenas muito boa como inclui o maior filme de guerra de todos os tempos: o espantoso Vá e Veja.

Meu exemplar foi batalhadíssimo. Enfrentei a doída conversão de um VHS milenar para DVD no único intuito de mostrá-lo aos amigos. Quando passei o filme para eles, voltei a constatar o efeito que teve sobre mim ao vê-lo pela primeira vez. Alguns diziam: “é muito bom, é muito, mas muito forte, nunca tinha visto algo assim”. Tal efeito, meus amigos, só se consegue com uma poética muito especial, só se consegue com a narrativa de uma história focada num homem comum e que logra chegar a tal grau de realismo que o filme gruda-se a ele, ao personagem principal, um adolescente. Quando estoura uma bomba muito perto de Fliora, passamos ouvindo por momentos todos os sons distorcidos, como se estivéssemos igualmente ensurdecidos, afetados pelo estouro. Se fosse um romance, seria escrito na primeira pessoa do singular.

O filme trata da história de Fliora, o adolescente que pega o rifle da família a fim de juntar-se aos guerrilheiros soviéticos para expulsar o que sobrava do exército alemão no período final da guerra. O problema do filme é que o ódio dos soviéticos é respondido por um estranho inimigo que não tem nada a perder e que está de qualquer forma retirando-se, só que esta retirada é a de quem está desesperado por voltar a um país que não é mais aquele que deixou mas outro, totalmente destruído. Ou, pior, sabem que retornam para a morte ou para a prisão, ou seja, é uma retirada para o nada. E os nazistas vão torturando e matando o que podem à medida que vão embora de uma União Soviética a qual dedicam todo seu rancor, pois foi ela, afinal, quem lhes ganhou a guerra. Fliora, por seu lado, também perdeu tudo: familiares, amigos, juventude e chão. Esta espiral de ódio respondido por mais ódio é tal forma represada, a loucura é de tal forma armazenada por Klímov que o final do filme é a maior catarse cinematográfica que já vi e senti.

É um filme onde a loucura e a mortandade da guerra é mostrada de forma absolutamente artística e que, paradoxalmente, resulta clara, sem estilizações. Todos perdem neste épico sem heróis e inteiramente destituído de triunfalismo. Toda a arte de Klímov está trabalhando para o maior impacto sobre o espectador. Guerra é loucura, violência e raiva. O rosto do adolescente Fliora ao final do filme — um velho prematuro — é o mais inadequado rosto de vencedor que o cinema já mostrou. E o fato de apresentar documentários nazistas de trás para frente, mostrando — novamente unido ao personagem principal — toda a vontade de Fliora de desfazer a guerra e seu sofrimento é o achado final de Vá e Veja. Espero que agora o filme saia de seu restrito círculo de admiradores e seja finalmente visto, como seu nome recomenda.

Abaixo, todo o filme, mas gostaria de referir-me àquela parte que começa a 1h05min30seg, aos oito minutos finais. Tudo já aconteceu e quase nada é dito. Vale pelo significado das imagens. A música da primeira parte é, naturalmente, de Wagner, misturada a hinos nazistas e discursos; a segunda tem como trilha o Réquiem de Mozart. No ano do lançamento, Vá e Veja teve cerca de 29 milhões de espectadores na ex-União Soviética (como comparação, Titanic, o recordista do mercado brasileiro, teve 16,3 milhões). Portanto, sua relevância não é somente artística.

Vá e Veja (Idi i Smotri/Come and See URSS 1985) de Elem Klimov com Aleksei Kavchenko:

O filme ‘Vá e Veja’ é um dos mais duros e sensoriais retratos da Guerra. Ela vem pelo olhos de um menino camponês de 12 anos, convocado para a batalha entre a resistência e os nazistas pelo domínio da Bielorrússia. É o fim da Guerra, os alemães estão voltando para um país que não há mais e vão destruindo o que lhes passa pela frente. O ódio é incontrolável. Poucas vezes a Guerra no cinema foi retratada com imagens e sons tão impressionantes. Um verdadeiro filme de horror, onde toda ameaça pode surgir a qualquer momento. O roteiro são memórias da infância do próprio roteirista Ales Adamovich, um sobrevivente. ‘Vá e Veja’ pouco faz uso de imagens explícitas, mas a forma como Elem Klímov usa a câmera causa um dano emocional sem paralelos no espectador. (Aquela cena do retorno à aldeia natal onde o espectador vê o que o personagem ainda não viu… O que é aquilo?). É um pesadelo entre o surreal e o onírico, com um impressionante senso de SOM, ESPAÇO e ATMOSFERA.
É o pai dos filmes de guerra. Desde o começo, quando o filme “fica surdo” no momento em que uma bomba explode ao lado do menino, até os minutos finais. É a Sinfonia de Klímov.

(*) Informação contestada provavelmente com razão pela Helen nos comentários.

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