Este livro é um torpedo, uma obra-prima. Simenon era um mestre da análise psicológica. Em O homem que via o trem passar, acompanhamos Kees Popinga, um sujeito de lógica nada normal. Normal, Popinga assim parece nas primeiras páginas. Em sua bela vila em Groningen, na Holanda, ele leva uma vida pacífica e previsível com sua esposa, a quem chama de “mãe” — exceto na cama, espero — e seus dois filhos, Frida e Carl. Popinga exerce uma importante posição na melhor casa de importação e exportação da região, a de Julius de Coster en Zoon. Em suma, está tudo certo, tudo está bem planejado e certinho nesta vidinha enfadonha. Kees proíbe-se de entrar em certos bares que são taxados de inadequados. Quanto ao bordel local, onde, durante anos, estivera Pamela, a mulher que ele considerava a mais atraente que existia, Popinga nunca colocaria seu pé. Por nada no mundo. Pamela era uma das amantes de de Coster.
Sem spoilers. Tudo que contarei agora está no início do livro. Um dia, ocorre um problema na firma e Popinga precisa falar com o chefe à noite. Não o encontra, mas, finalmente, por acaso, ao passar por um bar, Popinga o vê pacificamente instalado numa mesa de bar. O chefe também o vê e gesticula mui gentilmente para que Popinga entre. Com total tranquilidade e cinismo, Julius anuncia ao seu encarregado de negócios que a Companhia será declarada em liquidação muito em breve porque, entre outras coisas, ele, Julius, contrabandeia e contrabandeia há vinte anos. Então, Julius conta-lhe que decidiu desaparecer discretamente, naquela mesma noite, para se refugiar na Inglaterra, onde uma poupança o espera. E aconselha Popinga a fazer algo semelhante. Ali mesmo, de Coster lhe entrega uma graninha e faz uma vaga promessa de retomar futuramente seus negócios com Popinga.
E o mundo de Kees cai. Em primeiro lugar, com o dinheiro que lhe foi dado por de Coster, Popinga compra uma passagem para Amsterdam. Acontece que de Coster abandonou ali, no Carlton Hotel, a famosa Pamela, que ali mantinha há algum tempo. Popinga se apresenta a ela e, sem preâmbulos, por achar natural seu pedido (“afinal, era o trabalho dela, não era?”), exige passar uma hora de sexo com ela. A jovem cai na gargalhada na cara dele. Azar dela.
Depois, ele vai para Paris. Embora os personagens que o rodeiam — principalmente Jeanne Rozier, seu amante Louis e um bando de bandidos — pertençam à realidade, existe, para Popinga, apenas uma realidade: a sua. Kees Popinga reina supremo, está nas manchetes, escreve aos diretores de certos jornais para corrigir o que, segundo ele, é falso nas matérias a seu respeito. Ele até se dá ao luxo de escrever ao Comissário que o persegue. Aos poucos, ele se deleita com a fama, mas sobretudo com a habilidade excepcional com que escapa de seus perseguidores, pessoas que vivem dentro das normas. Ele acaricia, lisonjeia e constantemente insiste no valor de sua inteligência. Kees Popinga escapa de todos porque é o mais esperto.
O livro é enormemente envolvente. Kees é de enorme verossimilhança. Simenon explora seu personagem em profundidade, lá de dentro de seu cérebro de psicopata. O resultado é espetacular. Não pensem em um livro sangrento, nada disso. Sangue não é com Simenon, seu negócio são seres humanos. E, apesar do desvio e da perversão e da megalomania, é a impressão de um ser humano que o leitor leva de Kees Popinga, O homem que via o trem passar.
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Georges Simenon é um clássico. Sempre lhe pediram que escrevesse um grande romance e ele achava graça. “Meu grande romance é o mosaico formado por minhas pequenas novelas”. Está respondido, não? Para que o grande romance se há 200 deliciosos pequenos romances — seja com ou sem o detetive Maigret? Gosto de seus policiais com Maigret, mas prefiro os “romances sérios” (expressão de Simenon) como O Gato, O homem que via o trem passar, Sangue na Neve e tantos outros. Há estas e mais muitas outras obras perfeitas formando o vaso mosaico do escritor.
Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde, obviamente, o mal comanda. Parece o Rio Grande do Sul.
O burgomestre de Furnes é de uma crueza e verossimilhança extraordinárias. Parece um estudo sobre o perversidade e o embrutecimento de um homem. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a algumas tragédias, recentes e antigas: um jovem funcionário lhe pede dinheiro e diz que se matará se não receber — o moço cumpre a promessa; uma filha doente mental é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela; ele tem um filho fora do casamento – o qual é apenas suportado por Terlink, que mantém sua mãe como empregada da casa – e a própria gestão de Furnes é… Deixa assim. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de pessoas que têm dificuldade de viver sem ele. A segurança com que Simenon leva sua narrativa também não demonstra compaixão. Por que o livro é tão bom? Ora, por Simenon explorar cada poro e, afinal, mostrar certas vulnerabilidades de seu monstro.
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Agatha Mary Clarissa Miller ou Agatha Christie nasceu há 125 anos, em 15 de setembro de 1890, na cidade inglesa de Torquay, às margens do Canal da Mancha. Foi romancista, contista, dramaturga e poetisa mas destacou-se espetacularmente no gênero policial, tendo sido chamada, ainda em vida, de Rainha do Crime. Durante sua longa carreira — que durou dos anos 20 até sua morte, no ano de 1976 –, publicou mais de oitenta livros, alguns sobre o pseudônimo de Mary Westmacott.
Durante esta semana, fãs de Agatha Christie invadiram Torquay para celebrar os 125 anos de nascimento da “Rainha do Crime”. Apesar de, presumivelmente, faltarem os venenos e um cadáver, seus fãs tentaram recriar o ambiente de seus livros bebendo chás em jardins cheios de flores ou comendo em restaurantes com toalhas de mesa brancas. O único neto da escritora, Mathew Prichard, disse qua a simplicidade é a chave de sua popularidade. “Minha avó escreveu livros para entreter as pessoas. Gostava de pensar que as pessoas os liam quando estavam no hospital ou em uma longa viagem de trem”, completa.
Seus livros, alguns deles com quase cem anos, continuam vendendo milhões de exemplares. Segundo o Guiness, Christie é a romancista mais bem sucedida da história da literatura mundial em número total de livros vendidos. Somados, eles venderam cerca de quatro bilhões de exemplares. Tais números totais só perdem para as obras do dramaturgo e poeta William Shakespeare e para a Bíblia. A Unesco dá conta de que ela é a escritora mais traduzida do planeta. Ten Little Niggers — publicado no Brasil como O Caso dos Dez Negrinhos ou como E não sobrou nenhum em nova e reveladora tradução –, de 1939, é o romance policial mais vendido da história, além de figurar na lista dos livros mais vendidos de todos os tempos.
Ela e Georges Simenon são a rainha e rei de um gênero que jamais saiu de moda. No Brasil, em 2014, suas obras ganharam novo fôlego. No ano passado, Agatha recebeu oito novas edições pela Globo Livros e a Nova Fronteira. Simenon foi pelo mesmo caminho na Companhia das Letras. Os críticos sempre preferiram o belga, seu detetive Maigret e outros romances, mas o público tornou Agatha, Hercule Poirot e Miss Marple mais populares.
Agatha trafegava em mundo que não existe mais, quando assassinos usavam venenos hoje esquecidos e tinham como profissão atividades que não existem há décadas. O universo de Agatha Christie é a Inglaterra dos anos 20. Sua própria personalidade e história estão mescladas ali, na estrutura social rígida da era pós-vitoriana, na valorização da nobreza e do “bom” sobrenome, e até nos detalhes de decoração nos ambientes descritos. Com cenas suntuosas, jantares, óperas e viagens de trem, seus livros apresentam uma visão idílica do desaparecido mundo da alta sociedade inglesa, que continua seduzindo milhares de pessoas.
Ao contrário de seus irmãos, Agatha nunca teve chance de frequentar a escola e foi educada pela mãe num ambiente recluso, onde interessou-se pela música clássica e o canto lírico. Agatha chegou até mesmo a estudar música em Paris. Também através da mãe, teve seus primeiros contatos com a literatura. Durante a Primeira Guerra Mundial, trabalhou como enfermeira e no setor de medicamentos. Ali, recebeu muita informação farmacêutica. Desta forma, conhecia muitos venenos e gostava de utilizá-los em suas histórias.
Na vida real, Agatha também gostava de brincar de suspense. Em 3 de dezembro de 1926, seu marido, o Coronel Archibald Christie, revelou que tinha se apaixonado por sua amante e pediu o divórcio. Ato contínuo, deixou Agatha para viajar com a nova mulher e alguns amigos. Agatha também foi embora com uma pequena mala. Na manhã do dia seguinte, seu carro foi encontrado em um barranco no lago de Silent Pool em Newlands Corner, com os faróis acesos. Nele, estavam um casaco de pele, sua mala e uma carteira de motorista vencida. O desaparecimento da autora se tornou notícia, pois ela já era sobejamente conhecida na Inglaterra. A polícia ofereceu £100 para quem desse qualquer informação sobre o paradeiro da escritora. Aviões, mergulhadores e escoteiros passaram a buscar Agatha. A busca contou com 15.000 voluntários e foi a primeira a utilizar aviões no país.
Aós 11 dias, Agatha Christie foi descoberta no Old Swan Hotel, em Harrogate. Ela chegou lá de táxi no dia 4 de dezembro. Estava hospedada sob o nome de Teresa Neele (o mesmo sobrenome da amante de seu marido), dizendo ser da Cidade do Cabo, e explicando que era uma mãe de luto pela morte do filho. No hotel, Agatha foi vista dançando, jogando bridge, fazendo palavras cruzadas e lendo jornais. A autora foi reconhecida pelo músico Bob Tappin, que reivindicou a recompensa de 100 libras. Tappin disse que se dirigiu à autora como “Mrs. Christie” e que essa respondeu-lhe que estava sofrendo de amnésia…
Várias teorias foram criadas para explicar o desaparecimento. Alguns dizem que o escândalo foi um golpe publicitário para aumentar a venda de um dos seus livros — The Murder of Roger Ackroyd tinha sido lançado semanas antes do desaparecimento e estava na lista de mais vendidos –, outros que a intenção da autora era apenas vingar-se do marido, simulando uma morte da qual ele fosse acusado de assassinato. Já outros dizem que a autora realmente sofreu um acidente de carro e perdeu a memória.
Agatha só se separou de Archibald em 1928, dois anos após o incidente. No outono do mesmo ano, o arqueólogo britânico Leonard Woolley convidou Agatha para visitar o Oriente Médio, onde estava no comando de escavações em Ur. No ano seguinte, Agatha voltou ao local, onde conheceu o jovem assistente de Woolley, Max Mallowan (14 anos mais jovem que ela). Eles se casaram em 1930. A autora manteve seu nome como Agatha Christie porque era assim conhecida, mas em sua vida particular preferia ser chamada de Mrs. Mallowan.
Agatha Christie escreveu que é difícil para um jovem escritor iniciar sua carreira sem copiar, mesmo que minimamente, o estilo de seus ídolos. Ela considerava iniciar uma obra, como algo muito complicado e muitas vezes ficava horas encarando a máquina de escrever, esperando uma ideia. Para estar pronta no momento que a inspiração chegasse, possuía um caderno que levava sempre consigo para anotar suas ideias de enredos, venenos e crimes.
Todo romance policial é uma batalha entre leitor e escritor. O sucesso está na arte de disponibilizar todos os elementos necessários para a solução do crime e, ainda assim, fazer com que o leitor chegue à página final sem a menor ideia do que realmente aconteceu. Ou com uma ideia errada, o que é ainda melhor. Agatha Christie criava suas tramas com esta maestria, mas seus crimes ficam mais fáceis de desvendar quando o leitor já leu uma quantidade suficiente deles.
Agatha tem um recorde difícil de ser batido. A Ratoeira (The Mousetrap), uma peça que reúne mistério e assassinato, é famosa por ser a peça há mais tempo encenada na história do teatro, com mais de 30 mil apresentações desde sua estréia, em Londres, em 1952. Ela também é notória por seu final inesperado, que os espectadores ao fim de cada sessão são convidados a não revelarem quando saem, pois um spoiler seria fatal para fruição da peça.
Suas principais obras, além da peça A Ratoeira, são O Assassinato de Roger Ackroyd, Assassinato no Expresso Oriente, O Caso dos Dez Negrinhos, Morte no Nilo, Convite para um Homocídio e Cai o Pano. Mas há vários outros de mesmo nível. Quando o assunto é Agatha Christie, deve-se esperar uma trama repleta de reviravoltas, diálogos tensos, diversos suspeitos e um final surpreendente. Ah, e esqueça o assassino-padrão. Apesar de conservadora, a escritora jogava a culpa sobre qualquer um — nobres, serviçais, mulheres, homens, ingleses, estrangeiros, qualquer um. os motivos também são vários. Podem ser passionais, movidos pela cobiça ou por “nobres” razões. Então, caro leitor, tente adivinhar o assassino e seus motivos, mas espere por qualquer coisa.
Georges Simenon vendeu aproximadamente 500 milhões de volumes de suas novelas e romances. Trata-se de um excepcional caso de sucesso popular e de crítica. Durante toda a sua vida, os leitores e editores pediram-lhe um grande romance através do qual o autor pudesse ser apresentado. A resposta era sempre a mesma:
– Minha grande obra é o mosaico formado por meus pequenos romances.
Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde o mal comanda.
O método de produção de Simenon é curioso. Ele escrevia seis ou sete romances ou novelas por ano, mas elas não lhe saiam continuamente e sim como espasmos. A história era inventada em 30 ou 40 dias em sua imaginação. Era o período de não escrever, de caça à história, quando ele passeava, ia a bares e convivia com as pessoas. Então, ele avisava aos familiares que trabalhar e todos sabiam o que aconteceria – ele sumiria em seu escritório por algo entre 10 e 20 dias. Nestes períodos, ninguém deveria falar com ele e a ordem era apenas alimentá-lo. Se um fato externo o interrompesse, abandonava o trabalho.
De certa forma, tal concentração está presente em seus trabalhos. As narrativas, a forma de envolver o leitor são via de regra impecáveis. A modernidade não está num trabalho de linguagem ou em tramas complexas ou contrapontísticas, está no fato de que o autor se exime dos princípios morais, apresentando tramas simples onde as atitudes são descritas de forma distante, muitas vezes cruel. Não há Deus nem julgamento, há sucessão de fatos que são jogados ao leitor no momento exato e que fazem excelente literatura.
Acabo de ler O Burgomestre de Furnes, um extraordinário estudo sobre o embrutecimento, o ódio e a avareza. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a diversas tragédias, recentes e antigas: uma filha doente mental que é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela, o câncer da mulher, os vários filhos fora do casamento – o quais são ignorados por Terlink – e a própria gestão de Furnes, cuja falta de solidariedade produz um suicídio no início da história. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de idiotas que têm dificuldade de viver sem ele, mas a segurança com que Simenon leva sua narrativa não é menos monstruosa e sem compaixão.
Além do Burgomestre, os maiores romances desta face de Simenon provavelmente são Sangue na Neve, O homem que via o trem passar, O gato e Em caso de desgraça. Todos podem ser encontrados bem baratinho por aí. Saíram também em pockets.
Georges Simenon vendeu aproximadamente 500 milhões de volumes de suas novelas e romances. Trata-se de um excepcional caso de sucesso popular e de crítica. Durante toda a sua vida, os leitores e editores pediram-lhe um grande romance através do qual o autor pudesse ser apresentado. A resposta era sempre a mesma:
– Minha grande obra é o mosaico formado por meus pequenos romances.
Grosso modo, podemos dividir sua obra em duas partes: os romances policiais com ou sem o célebre detetive Maigret e os duros romances psicológicos que lhe valeram o apelido “Balzac de Liége”, recebido de ninguém menos que André Gide. A popularidade destes livros não deixa de impressionar, pois são escritos em tom menor, são nada solares, sendo antes cheios de personagens deprimentes e deprimidos. Com suas ações quase sempre em cidades pequenas, Simenon envolve-nos numa triste realidade provinciana, onde o mal comanda.
O método de produção de Simenon é curioso. Ele escrevia seis ou sete romances ou novelas por ano, mas elas não lhe saiam continuamente e sim como espasmos. A história era inventada em 30 ou 40 dias em sua imaginação. Era o período de não escrever, de caça à história, quando ele passeava, ia a bares e convivia com as pessoas. Então, ele avisava aos familiares que trabalhar e todos sabiam o que aconteceria – ele sumiria em seu escritório por algo entre 10 e 20 dias. Nestes períodos, ninguém deveria falar com ele e a ordem era apenas alimentá-lo. Se um fato externo o interrompesse, abandonava o trabalho.
De certa forma, tal concentração está presente em seus trabalhos. As narrativas, a forma de envolver o leitor são via de regra impecáveis. A modernidade não está num trabalho de linguagem ou em tramas complexas ou contrapontísticas, está no fato de que o autor se exime dos princípios morais, apresentando tramas simples onde as atitudes são descritas de forma distante, muitas vezes cruel. Não há Deus nem julgamento, há sucessão de fatos que são jogados ao leitor no momento exato e que fazem excelente literatura.
Acabo de ler O Burgomestre de Furnes, um extraordinário estudo sobre o embrutecimento, o ódio e a avareza. Joris Terlink é o burgomestre que comanda a população, a economia e os conselheiros do povoado. Todos o temem e ele é consultado para tudo. Sua vida pessoal está associada a diversas tragédias, recentes e antigas: uma filha doente mental que é mantida presa em seu quarto sob o argumento de que não haveria um lugar melhor para ela, o câncer da mulher, os vários filhos fora do casamento – o quais são ignorados por Terlink – e a própria gestão de Furnes, cuja falta de solidariedade produz um suicídio no início da história. Há algo menos sedutor? Terlink é um monstro absoluto, circundado de idiotas que têm dificuldade de viver sem ele, mas a segurança com que Simenon leva sua narrativa não é menos monstruosa e sem compaixão.
Além do Burgomestre, os maiores romances desta face de Simenon provavelmente são Sangue na Neve , O homem que via o trem passar, O gato e Em caso de desgraça. Todos foram reeditados pela L&PM em sua coleção de pockets.
1. Elisabeth Bennet e Fitzwilliam Darcy são o maior casal da literatura e os diálogos de Jane Austen são tão perfeitos e significativos quanto os de Tchékhov.
2. Carro Clonado. Resolvo dar uma olhada em nossas multas de trânsito e descubro que estou limpo, limpo até demais. O site do DETRAN do Rio Grande do Sul diz que meu carro está em um depósito da cidade de Esteio (RS), vítima de um acidente. Olho pela janela e vejo o carro inteirinho ali embaixo, quieto, passivo, aguardando minhas ordens. Ligo para a cidade de Esteio e relato-lhes o fato. A resposta do atendente é simples: seu carro foi clonado, isto é, roubaram um carro com as mesmas características do seu e colocaram uma placa igual à sua nele. Para completar, o ladrão envolveu-se em um acidente. Pergunto-lhe sobre o que devo fazer e ele me diz que é para eu registrar uma ocorrência. Enquanto isto, fico andando por aí com um carro que está teoricamente detido em poder de perigosos meliantes. Eu, no caso. Interessante. Se eu for preso, mostrem este blog para os carcereiros, tá?
3. Sou um chocólatra incondicional. Como um lobo em relação a suas vítimas, posso sentir o cheiro de chocolate há quilômetros de distância. Tal percepção só aumenta quando sei que estou um pouco acima do peso ideal. E a Bárbara fica passando na minha frente com… Peraí, vou chamá-la.
4. Gozado, vi num sebo um livro do grandíssimo escritor alemão Heinrich Böll, O Anjo Silencioso. Não conhecia este. Casa Sem Dono e Opiniões de um Palhaço, ambos lidos em edições espanholas, funcionam como grandes clássicos dentro de minha tantas vezes equivocada cabeça. Nem é Páscoa e vejo Böll ser acometido de ressurreição. Folheio uns livros de Graham Greene: um enorme narrador e cronista do século passado. Houve tempo em que havia católicos relevantes. E Greene era popular. O preconceito de alguns gosta de colocar quaisquer escritores muito lidos como menores. Greene não cabe neste modelo. Dia virá em que todos elogiarão as maravilhosas novelas “sem-Maigret” de Georges Simenon, outro escritor excessivamente lido… O gato, Sangue na neve, O homem que via o trem passar… O Charlles Campos — comentarista habitual deste blog — citou-os como obras-primas. É uma afirmação radical e totalmente verdadeira.
5. Não, hoje eu não estou moderado. Cadê o chocolate que tava aqui, caralho?