O Impostor, de Javier Cercas

O Impostor, de Javier Cercas

O Impostor narra o escandaloso caso de Enric Marco. Marco era uma espécie de “testemunha viva” da história da Espanha recente, tendo participado da Guerra Civil Espanhola, sido deportado para a Alemanha, sobrevivido ao campo de concentração nazista de Flossenbürg, e — de volta à Espanha — participado da luta antifranquista por quase quatro décadas… Só que não.

Mais: Marco era uma das “reservas morais” do país, tinha concedido mais de 8 mil palestras, fora entrevistado por todos os meios de comunicação, detalhara suas histórias em minúcias — pois possuía enorme conhecimento de história e criara sua própria biografia sempre com um pé firme na verdade –, só que era tudo fantasia. Neste “romance sem ficção”, Cercas conta toda a lorota de Enric Marco, O Impostor mostra os mecanismos através dos quais Marco forjou uma nova biografia em vida.

Enric Marco é um grande personagem. Diz o Google que ele, aos 100 anos, ainda está vivo. Ele tem mil máscaras, sendo uma espécie Alonso Quijano, o homem que criou Dom Quixote para si mesmo. Porém, se o tema e o personagem são sensacionais, às vezes Cercas fica aquém do mesmo, dando voltas e mais voltas para sempre reencontrar a famosa citação de Faulkner que diz que “o passado nunca passa, não é sequer passado, mas apenas uma dimensão do presente”. Cercas fez muitas entrevistas com Marco e com quem o cercava, e foi pouco a pouco destruindo praticamente todas as afirmações sobre a biografia do mentiroso. O livro também comenta bastante a relação entre os dois e isto é um de seus pontos altos. O diálogo imaginário que ele tem com Marco é soberbo.

Marco tem uma relação de amor e de ódio com o autor. Primeiro quer que ele o salve, que o livro sirva para recuperá-lo frente à opinião pública. Depois, quando vê que o escritor desmonta cada uma de suas versões dos fatos, quase chora dizendo “deixe-me ao menos alguma coisa”. Também retrata o seu “escritor” como “um pequeno burguês neurótico e fraco, com a consciência sempre a incomodar”, mas que acaba por lucrar com seus personagens: “Você não suspeita de que vivi o que vivi e inventei o que havia inventado só para você contar?”.

Marco é um midiopata, um homem obcecado por aparecer e por tornar-se uma “autoridade”, que quer ser admirado de qualquer maneira. E era uma autoridade… Ante a qual a opinião pública espanhola quedou-se boquiaberta.

Quem descobriu a impostura de Marco foi o historiador Benito Bermejo, um daqueles caras que não se contenta com qualquer resposta. A falta de coincidência em alguns pontos das próprias falas do “herói cívico”, meteram um mosquito no ouvido de Bermejo, que partiu para uma investigação mais exaustiva. Tal investigação revelou a grande mentira de alguém que representava a Associação das Vítimas do Nazismo na Espanha, daquele que durante 20 anos foi uma figura emblemática na Federação das Associações de Pais de Estudantes da Catalunha, daquele que foi secretário da CNT (Confederação Nacional do Trabalho) no final dos anos setenta. E Marco jamais foi deportado, nunca pôs os pés num campo de concentração alemão, nem foi um ferrenho opositor do franquismo. Enric Marco era uma invenção, uma ficção.

Cercas escreve o livro sem a intenção de defender ou justificar o ato aberrante. Sua finalidade está mais próxima da necessidade de um confronto com o espelho. Dele e do próprio leitor. Quantos de nós somos impostores? Algumas mentiras são nobres como Platão consideraria, oficiosas como Montaigne colocaria, ou uma válvula de escape da realidade como Nietzsche afirmava? Pois Marco, depois dos 50 anos de idade, decidiu se levantar contra o anonimato de sua vida. E o fez mentindo, inventando uma história heroica que conseguiu manter por mais 30 anos, sabendo aproveitar-se do esquecimento histórico.

A realidade mata e a ficção salva. Essa premissa ressoa insistentemente à medida que as páginas passam. Talvez sim. A mentira de Marco é a Rainha das mentiras, é a Mentira das mentiras, é uma zombaria implacável contra a dor de quem realmente morreu ou sobreviveu no inferno. Porém, nela também fica clara a necessidade humana de sobreviver diante da realidade inóspita e avassaladora.

Recomendo.

Obs.: A edição brasileira, com a figura de Marco ocupando a parte vazada da capa, é um achado.

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Javier Cercas, em ‘O Impostor’

Javier Cercas, em ‘O Impostor’

Para mim, a autoironia é apenas o grau zero da decência, o mínimo de honestidade que alguém deve ter, principalmente se escreve nos jornais: afinal, a crítica começa pela autocrítica, e quem não é capaz de rir de si mesmo não tem o direito de rir de nada.

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O Rei das Sombras, de Javier Cercas

O Rei das Sombras, de Javier Cercas

O Rei das Sombras é Manuel Mena, um tio do autor Javier Cercas. Aos 19 anos, em 1938, este tio morreu na Batalha do Ebro, a mais sangrenta de toda a Guerra Civil Espanhola. Para vergonha de Cercas, o tio era falangista, um apoiador de Franco. Mas era (é) o verdadeiro herói de sua família, principalmente de sua mãe e tias que o citavam (citam) como um ser perfeito. Pura idealização, claro. Mena morreu quando era tenente de um grupo de atiradores, uma unidade de assalto. O livro conta duas histórias entrelaçadas: o da investigação de Cercas a respeito de seu tio e a crônica de sua história até a morte.

Na narrativa dos acontecimentos, Cercas não faz conjecturas, não chuta nada. É tão pragmático que exagera, evitando usar a primeira pessoa e chamando a si mesmo de Javier Cercas, um membro a mais da família. O autor passa boa parte do livro tateando entre sombras e revelações, dúvidas e descolamentos pela Espanha, e os melhores momentos são as conversas com os companheiros de viagens e as testemunhas do passado, na tentativa de reconstruir a história fática e moral dos envolvidos.

O final do livro é excelente. Sem spoilers, digo que Cercas viaja para Bot a fim de visitar o hospital de campanha que viu os últimos momentos de Manuel Mena. Um vizinho local e sua mãe sabem quase tudo, mas como arranhar a realidade do que pensava Mena?

Pobre morador do pequeno povoado onde nasceu Cercas, há sinais de que Manuel Mena talvez tenha compreendido que estava perdido numa guerra que não era sua. Mas como fazê-lo sair de seu silêncio?

Por vergonha, Javier Cercas sempre relutara em investigar a história do tio-avô fascista herói familiar, na verdade um anônimo fora das salas da família que ostentavam sua única foto vestido como milico.

O Rei das Sombras não chega ao nível da obra-prima que é Soldados de Salamina. Há muita informação desnecessária sobre a investigação de Cercas. Apesar da prosa sempre ágil, bem humorada e original de Cercas, há muita erudição sobre movimento de tropas, batalhas ganhas e perdidas, coisas que podem fazer a alegria de um historiador, mas que incomoda um leitor comum como eu. Mas a análise dos mistérios do heroísmo pessoal e coletivo é interessante. 

Cercas: bom livro, mas que só deve ser procurado por quem já leu Soldados de Salamina

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Soldados de Salamina, de Javier Cercas

Soldados de Salamina, de Javier Cercas

Soldados de Salamina

— Para escrever romances não é preciso imaginação — disse Bolaño. — Só a memória. Os romances são combinações de lembranças.

— Todas as boas narrativas são narrativas reais, pelo menos para quem lê, que é o único que conta.

Javier Cercas, Soldados de Salamina

Soldados de Salamina, de Javier Cercas, é um grande, excelente livro. Não é bem um romance, é antes uma reportagem, mas a história contada é tão inacreditável que mais parece um romance. Melhor dizendo, pode-se supor algumas poucas liberdades criativas, poucas. O grosso da história é verídica. O que lemos é uma série de surpresas, formando um mosaico de imenso efeito. Quando parece vamos respirar, entra em cena de Roberto Bolaño iluminando o relato de uma forma que só lendo.

A célebre Batalha de Salamina ocorreu entre a frota persa de Xerxes I e a grega, comandada por Temístocles. A vitória foi grega e, de certa forma, decidiu o destino da Europa.

Porém, se o título livro de Javier Cercas faz alusão à batalha, a ação de Soldados de Salamina acontece na Espanha, durante a Guerra Civil. O livro vendeu 300 mil exemplares só no país e recebeu todo um leque de prêmios. A história gira em torno da figura real de Rafael Sánchez Mazas, escritor e ideólogo fascista da Falange Espanhola e de como ele escapou do fuzilamento. A Guerra Civil Espanhola estava acabando e as tropas republicanas se retiravam, destruindo pontes e vias de comunicação para se proteger. Sánchez Mazas, prisioneiro dos republicanos, apesar de alvejado em um fuzilamento coletivo, consegue escapar apenas com alguns furos na roupa. Quando saem em sua busca… (sim, há pessoas que detestam spoilers). A história é muito bem contada, cheia de digressões, poesia e bom humor.

Sánchez Maza não apenas sobreviveu como tornou-se ministro do ditador Francisco Franco. Na primeira parte temos uma pesquisa-reportagem onde conhecemos a história de Sánchez Mazas e na segunda uma reportagem, tudo escrito com grande beleza literária. O texto de Cercas é prazeroso e grudento. Como um repórter gonzo, Cercas se coloca na história. Conhecemos até sua namorada, talvez a única personagem fictícia do livro, mas não podemos afirmar com certeza… Na segunda parte, também entra no relato o escritor Roberto Bolaño, amigo de Cercas. O chileno deu-lhe muitas sugestões e direcionamentos.

Sánchez Mazas era um literato, um escritor nascido em uma família tradicional que, inspirado pelas ideias fascistas que conhecera na Itália, participou da fundação da Falange Espanhola e trabalhou ativamente na divulgação de suas ideias. Cercas conheceu sua história através do próprio filho do falangista. Ficou obcecado, escreveu a reportagem, mas depois Roberto Bolaño lhe diz que talvez conheça um anônimo que participou do fuzilamento como atirador. E nova busca é empreendida.

Talvez aqui tenhamos outro personagem fictício, mas novamente não podemos garantir. O fato é que Miralles, o tal atirador, é absolutamente sedutor e tem uma incrível cara de personagem de Bolaño.

Recomendo fortemente.

Javier Cercas: obra-prima | Foto: Divulgação
Javier Cercas: obra-prima | Foto: Divulgação

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