Eu e Alfredo Southall

Atendendo ao pedido de Charlles Campos e de outros amigos que sublinharam a gravidade, a tristeza e a importância do caso, além de relatarem que estes fatos são inteiramente desconhecidos no centro do país, faço retornar este post à capa do blog. Ele ficará aqui também amanhã. Agradeço a leitura de quem veio e vier aqui, assim como o verdadeiramente extraordinário grupo de comentários.

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— Alfredo Southall é o dono da cidade. Todo mundo pede bênção a ele. Não há, na região, quem não lhe obedeça — disse o cara da Itautec. — Se ele gostar, venderemos lá como água.

— Arrã — sempre o mesmo papo de vendedor, pensei.

Foi assim que ouvi falar pela primeira vez, em 1994, na figura de Alfredo Southall. Nós tínhamos uma pequena empresa de desenvolvimento de software e nossa nova parceira, a Itautec, queria fazer negócios em São Gabriel. Eu não queria, pois se toda nossa equipe estava com muitíssimo trabalho em Porto Alegre, como iríamos atender a 400 Km de distância? Mas fui voto vencido. Meu sócio tinha a fantasia de que a Itautec iria nos deixar cheios de clientes e, bem, devíamos ir.

E lá se foi Milton Ribeiro, um funcionário e o vendedor da Itautec para São Gabriel. Entramos na sala de reuniões dos Supermercados Southall e esperamos uma hora pela entrada do Imperador. Ele apareceu de botas de fazendeiro, bem sujas, e o maior séquito de baba-ovos já visto por mim. Era um sujeito enorme, daqueles que não se sabe o quanto tem de músculos ou gordura, com cabelos precocemente brancos e uma postura de chefia que disparou todos os meus sinais de alerta. Posso comprovar que identifico problemas em poucos segundos. Era o caso.

Junto com ele, vinham os gerentes de cada um dos supermercados, o advogado, o contador, alguns responsáveis pelas fazendas, o chefe do RH, havia de tudo, não sabia para quê. Afinal, nosso sistema controlaria apenas os pedidos, o estoque das lojas, o contas a pagar, etc. Mas logo soube o motivo de toda aquela gente. Alfredo precisava de uma platéia para suas demonstrações de poder; além disso, gostava que rissem de suas gracinhas. A cena montada me irritou ainda mais. Depois de um longo discurso a respeito de como gostava de negociar — acompanhado por assentimentos imediatos de sua claque –, ele passou a palavra ao advogado. Este disse que gostaria de fazer algumas objeções à proposta que eu apresentara. A primeira era um erro de português que o documento continha. Todos riram. O homem disse que o verbo “acessar” não existia. Dei-lhe razão, era um neologismo. Completou reclamando que eu utilizara a palavra inglesa “back-up” e não “cópia de segurança”. OK, concordei que os documentos tinham de ser escritos em vernáculo. E o que havia além disto? Nada, era só aquilo. Foi minha vez de rir, pensando no motivo que levara a ele me expor ao ridículo.

O problema é que rábula ligou o que tenho de pior: o humor ácido. Eu estava louco para pegá-lo. E o fiz segundos depois.

Ele seguiu falando que precisava de “quatro frente de caixa” em cada supermercado. Eu disse que ele tinha razão ao dizer “quatro frente de caixa”, pois, em língua portuguesa, só se usa o plural quando são seis ou mais (*). A claque toda riu, Alfredo também, mas o advogado e o vendedor da Itautec ficaram vermelhos de ódio. Meu parceiro achava ou sabia que aquilo fora um grave erro. Depois, ninguém mais se aventurou a falar, apenas Alfredo, eu e meu vendedor. Alfredo queria instalar o sistema para testes por 60 dias, sem pagar nada. Eu era contra, pois sabia muito bem o valor do nosso trabalho, do treinamento de todos os funcionários, das estadias e desconfiava do velho. Mas estava claro que meu parceiro estava disposto a tudo para agradar. Houve um intervalo para o almoço. Não nos convidaram para almoçar.

Então, eu e o cara da Itautec discutimos. Eu dizia que aquele não era nosso jeito de trabalhar e que tínhamos clientes referência aqui e ali. Eles que fossem visitá-los a fim de fazer a compra com maior segurança. Só que, ao final, deixei-me dobrar e, durante a tarde, não abri a boca na continuação do ato público com a multidão gabrielense. Voltei para Porto Alegre à noite, mas nosso funcionário ficou por lá, instalando o sistema para os testes. Fui obrigado a voltar ainda uma vez para nova reunião. Com toda a cena remontada — um monte de gente, piadas, etc. — Alfredo Southall avisou que não queria o sistema. Sinceramente, achei maravilhoso e desinstalei o aplicativo. Ele me convidou para almoçarmos; o advogado foi junto. Foi um encontro amigável. Eles me contaram que o foco era o Supermercado Southall. Dava muito mais lucro. As terras — ele era dono de hectares, hectares e mais hectares — seriam vendidas bem aos poucos, quando valesse a pena.

Um dia, passados dois meses, eu estava trabalhando sozinho num sábado, pois tenho o hábito de procurar os horários de silêncio para me organizar. Tocou o telefone e um cara efetivamente apavorado começa a dizer que dera um problema grave. Que problema? Ora, aparecia na tela a mensagem “Entrar em contato com o telefone 51 XXXX XXXX”. Expliquei calmamente que não entendia como ele tinha aquela versão do sistema, pois era uma versão de teste que expirava em 60 dias. Perguntei de onde ele falava. A resposta vocês já imaginam: ele falava de São Gabriel, do Southall. Alguém tinha copiado o sistema, mas não contara que ele possuísse a mais banal das seguranças.

Disse-lhe que nosso aplicativo estava instalado indevidamente, mas que segunda-feira eles poderiam entrar em contato conosco a fim de comprar o sistema e receber a cópia definitiva. Segunda-feira, nova ligação. Era o contador deles, me perguntando muito irritado o preço. Disse-lhe que considerava nossa proposta ainda válida. Ele me disse que ligaria em dez minutos. Nossa empresa já fechou e ainda aguardo o telefonema.

Depois, a Fazenda Southall ficou famosa. Pequena parte dela foi para a reforma agrária, a área mais interessante ficou com Alfredo e sua pouca vontade de trabalhar. A fazenda tornou-se símbolo da resistência dos grandes latifundiários e foi “vítima” de várias invasões do MST, algumas sangrentas.

O ápice ocorreu na última sexta-feira. Ao rechaçar mais uma invasão, o sem-terra Elton Brum da Silva, que tinha dois filhos e 44 anos, foi morto com tiros nas costas …

… por alguém do alto escalão da Brigada Militar. Tão alto que ninguém pode saber quem foi. Pelas marcas nas costas, mais parece um fuzilamento.

A promotora Lisiane Villagrande, do Ministério Público de São Gabriel, foi muito rápida e considerou “extremamente profissional” a ação da Brigada. Logo ela que, em 2003, numa reunião de fazendeiros da região, leu sob aplausos o despacho da ministra Ellen Gracie, do Supremo Tribunal Federal (STF), que anulava a desapropriação das fazendas Estância do Céu, Santa Adelaide, Caieira, Posto Bragança e Salso Fazenda (13,2 mil hectares), de propriedade de Alfredo Southall. Lisiane é proprietária de terras na cidade.

Sábado, enquanto a Zero Hora estampava a manchete “MST ganha seu mártir” e o comando da Brigada caía, a imprensa gaúcha esquecia de falar sobre a improdutividade das fazendas e muito menos pensavam em Elton Brum da Silva ou em sua família.

Obs.: Escrito com auxílio do RS Urgente e de Zero Hora.

(*) Obrigado, Bia!

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