O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov (nova tradução de Irineu Franco Perpetuo)

O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov (nova tradução de Irineu Franco Perpetuo)

O Mestre e MargaridaComo também aconteceu com o Ulysses de Joyce, este é o terceiro O Mestre e Margarida que leio. Ambos os livros têm três traduções no Brasil — na verdade, O Mestre tem quatro, mas uma é do inglês.

A primeira leitura foi feita em uma edição da Ars Poetica com tradução direta do russo por Konstantin G. Asryantz, Eu não indico, pois achei o texto truncado, nada fluido. Se não me engano, era uma edição de 1992 (não possuo mais o exemplar).

A segunda, igualmente do russo, era de Zoia Prestes e saiu pela Alfaguara em 2009. Já era bem melhor, mais ainda não de todo satisfatória.

Esta terceira tradução, de Irineu Franco Perpétuo (Editora 34) é excelente, sem dúvida, a melhor de todas. Porém, ainda houve outra tradução que desconheço, feita a partir do inglês. Ela foi publicada em 1975, pela Nova Fronteira, e em 1985, pela Abril Cultural. É de Mário Salviano Silva.

Importante informar que o texto utilizado por Irineu foi aquele estabelecido pela mais recente edição crítica russa. Acontece que Bulgákov jamais publicou seu livro em vida, tendo deixado várias versões dele. Os atuais estudos buscaram chegar o mais próximo possível do que seria o desejo do escritor.

Abaixo, republico um artigo que escrevi recentemente para o Guia21 a respeito de Bulgákov e sua obra-prima, quando dos cem anos da Revolução Russa, mas eu já tinha publicado outro artigo aqui no blog em minha antologia pessoal de 50 maiores livros.

Foi muito prazeroso percorrer as 408 páginas da nova edição. São 32 capítulos e um epílogo. 28 deles e mais o epílogo se passam basicamente em Moscou e 4 em Jerusalém — consistindo no fragmento do romance do Mestre. Então, vamos ao texto que não seria possível sem o auxílio de minha Elena Romanov.

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Stálin tinha real interesse por arte, costumando ir a concertos, óperas e peças de teatro. Foi ele, pessoalmente, quem assistiu, reprovou e fez proibir uma ópera de Shostakovich, por exemplo. Também assistiu quinze vezes — não é exagero — à peça Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov. Simplesmente adorou. Stálin também costumava telefonar de madrugada para assessores e outras pessoas quaisquer com quem tivesse assuntos a tratar. Sofria de insônia e, com sua fama, é claro que assustava quem recebia as ligações. Telefonou uma vez para Bulgákov após este lhe enviar quase uma centena de cartas pedindo permissão para emigrar. A lenda diz que foram várias ligações, mas uma aconteceu com certeza.

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O conteúdo desta ligação é bem conhecido. Bulgákov ficou com medo e teve receio de insistir quando Stálin disse que preferia que ele permanecesse na URSS. O líder prometeu-lhe um emprego em um teatro, o que acabou acontecendo. Assim ele encontrou trabalho no Teatro da Juventude de Trabalho de Moscou (TRAM), e depois no Teatro de Arte de Moscou. Neste século, o dramaturgo espanhol Juan Mayorga escreveu uma peça que começa com o famoso telefonema de Stálin para Bulgákov, chamada Cartas de Amor para Stálin.

Anos depois da conhecida ligação, Bulgákov tentou se tornar um escritor “soviético”, dento dos padrões do realismo socialista. Em 1939, ele começou a trabalhar em uma peça laudatória ao líder. Mas Stálin, ao ler os esboços, parece não ter ficado satisfeito e, sem falar com o autor, indiretamente proibiu Bulgákov de terminá-la, não permitindo o acesso do escritor e de sua esposa aos arquivos em Batumi, cidade georgeana onde Stálin iniciou sua vida política. A peça era cheia de clichês socialistas, nada era vivo. E o Secretário-Geral sabia como Bulgákov podia escrever.

Nós também. Bulgákov morreu em 1940 e sua maior obra, O Mestre e Margarida, veio a público somente em 1966-67. Ou seja, ela permaneceu desconhecida de seus contemporâneos. Mas ele já tinha publicado peças de teatro e outras obras em prosa, como as extraordinárias novelas Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro. Sua arte é de absoluto virtuosismo. Se o campo onde se sente melhor é o da sátira corrosiva, ele também sabia descrever cenários bíblicos, como fez em partes de O Mestre.

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Mikhail Bulgákov (1891-1940) nasceu em Kiev, na Ucrânia, que era então parte do Império Russo. Ele foi o primeiro filho de Afanasiy Bulgákov, professor da Academia Teológica de Kiev. Seus avôs eram clérigos da Igreja Ortodoxa Russa. No início da Primeira Guerra Mundial, voluntário na Cruz Vermelha, foi imediatamente enviado para o front, onde foi gravemente ferido em duas ocasiões. Em 1916, formou-se médico na Universidade de Kiev e depois, junto com seus irmãos, alistou-se no Exército Branco.

Após a Guerra Civil, com a derrota dos brancos e a ascensão do poder dos soviéticos, sua família emigrou para o exílio em Paris.  Apesar de sua situação relativamente privilegiada durante os primeiros anos da Revolução, Bulgákov viu-se impedido de emigrar da Rússia devido a um insistente tifo. Nunca mais viu sua família.

As lesões da guerra tiveram graves efeitos sobre sua saúde. Para aliviar sua dor crônica, especialmente no abdômen, foi-lhe administrada morfina. Ficou viciado, mas parou de injetá-la em 1918. O livro Morfina, publicado em 1926, atesta a situação do escritor durante esses anos. Em 1919, ele decidiu trocar a medicina pela literatura.

Elena Shílovskaya
Elena Shilovskaya

Em 1932, Bulgákov casou-se com Elena Shilovskaya, que seria a inspiração do personagem Margarida de sua novela mais famosa. Durante a última década de sua vida, Bulgákov trabalhou em O Mestre e Margarida, além de escrever peças, fazer revisões, traduções e dramatizações de romances. Alguns foram para o palco, outros não foram publicados e ainda outros foram destruídos.

20171021-tenorPara quem hoje lê Bulgákov, o fato do escritor não apoiar o regime comunista é apenas uma informação complementar. O que interessa é que ele foi o mais brilhante dos gozadores, dos zombeteiros. O autor ria da burocracia e dos governantes. Porém, como dissemos acima, Stálin adorava de uma de suas peças. Não obstante o amor do chefe, o escritor suportou grande assédio da NKVD, que chegou a procurá-lo em casa e prendeu-o em mais de uma ocasião.

Muitas evidências sobreviveram sobre a atitude do escritor em relação ao poder soviético na década de 1920.  Entre eles há artigos na imprensa branca e materiais de interrogatórios. Porém, curiosamente, os brancos o criticavam por ser pró-revolução e os revolucionários pelo motivo contrário. Para os comunistas, sua arte era um “brancovanguardismo” e ele seria um “reacionário social”; para os brancos, ele seria apenas um vendido. É curiosa a posição de admiração de Stálin, apesar da polêmica. Muitos escritores que não apoiaram a liderança de Stálin foram presos. Bulgákov não.

Bulgákov morreu de um problema renal em 1940, aos 49 anos.

Dois assessores do diabo numa escultura em Moscou: o gato Behemoth e Korovin com seu monóculo quebrado
Dois assessores do diabo numa escultura em Moscou: o gato Behemoth e Koroviev com seu monóculo quebrado

Em vida, Bulgákov ficou conhecido principalmente pelas obras com as quais contribuiu para o Teatro de Arte de Moscou de Konstantín Stanislavski. Foram muitas comédias e adaptações de romances para o teatro, casos, por exemplo, de Dom Quixote e Almas Mortas. Bulgákov também escreveu uma comédia grotesca fazendo com que Ivan, o Terrível, aparecesse em Moscou na década de trinta. Um sucesso.

20171020-um-coracao-de-cachorro-e-outras-novelas-mikhail-a-bulgakovEm meados de 1920, Bulgákov conheceu os livros de H.G. Wells e, profundamente influenciado, escreveu várias histórias com elementos de ficção científica. Um exemplo é a extraordinária novela Um Coração de Cachorro, onde Bulgákov critica abertamente — e com impressionante cinismo e ironia — a primeira década do poder soviético. Outro é a hilariante Os Ovos Fatais.

Morfina merece menção especial. Trata-se do diário de um companheiro do protagonista, o médico Poliakov. É uma crônica da autodestruição, escrita em termos perturbadores. Ele escreve no início do livro: “Eu não posso ajudar a louvar quem primeiro extraiu a morfina das cabeças das papoulas”. No mais, é uma história clínica escrita por um mestre. “Como viciado, eu declararia que o ser humano só pode funcionar normalmente após uma injeção de morfina, mas eu era médico”.

A grande obra-prima

A novela satírica O Mestre e Margarida, escrita para a gaveta, sem chances ou tentativas de publicação durante sua vida e que foi publicada por sua esposa vinte e seis anos após a morte do escritor, certamente lhe garante a imortalidade literária. Por muitos anos, o livro só pôde ser obtido na União Soviética como samizdat, antes de sua aparição por capítulos na revista Moskva. É o grande romance do período soviético e que contribuiu para criar várias expressões do dia a dia russo. É que um manuscrito do Mestre, destruído, constitui um elemento importante da trama e, de fato, Bulgákov teve que reescrever o romance após ter queimado o próprio manuscrito.

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Sabem aqueles livros que valem por cada palavra? Que é engraçado, profundo, social, histórico, existencial e grudento? Pois O Mestre e Margarida satisfaz todas as condições acima. A influência do livro pode ser medida pelo reflexo da obra não somente na cultura russa, mas na mundial. O livro Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, tem clara e confessa influência de Bulgákov; a letra da canção Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, foi escrita logo após Mick Jagger ter lido o livro, assim como Pilate, do Pearl Jam, e Love and Destroy da Franz Ferdinand, a qual é baseada no voo de Margarida sobre Moscou. Mas nem só a literatura e o rock homenageiam Bulgákov: o compositor alemão York Höller compôs a ópera Der Meister und Margarita, que foi apresentada em 1989 na ópera de Paris e lançada em CD em 2000.

O romance começou a ser escrito em 1928. Em 1930, o primeiro manuscrito foi queimado pelo autor após ver censurada outra novela de sua autoria. O trabalho foi recomeçado em 1931 e finalizado em 1936. Sem perspectiva alguma de publicação, Bulgákov dedicou-se a revisar e revisar. Veio uma nova versão em 1937 e ainda outra em 1940, ano de sua morte. Na época, apenas sua mulher sabia da existência do romance.

Uma versão modificada e com cortes da censura foi publicada na revista Moscou entre 1966 e 1967, enquanto o samizdat publicava a versão integral. Em livro, a URSS só pôde ler a versão integral em 1973 e, em 1989, a pesquisadora Lidiya Yanovskaya fez uma nova edição — a que lemos atualmente — baseada em manuscritos do autor.

Uma amiga russa me escreve por e-mail: “Eu tinha uma colega de quarto que lia apenas O Mestre e Margarida. Ela terminava e voltava ao início. E dava gargalhadas e mais gargalhadas. Na Rússia o livro foi tão lido que surgiram expressões coloquiais inspiradas por ele. A frase dita por Woland ‘Manuscritos não ardem’ é usada quando uma coisa não pode ou não será destruída. Outra é ‘Ánnuchka já derramou o óleo’, para dizer que o cenário de uma tragédia está montado”.

As cenas de Pôncio Pilatos, a do teatro, a do belíssimo voo de Margarida e a do baile são citadas aqui e ali com enorme admiração. E a fama é justa.

A ação do romance ocorre em duas frentes, alternadamente: a da chegada do diabo a Moscou e a da história de Pôncio Pilatos e Jesus, com destaque para o primeiro. O estilo do romance varia espetacularmente. Os capítulos que se passam em Moscou têm ritmo vivo e tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém estão escritos em forma clássica e naturalista. Em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Koroviev — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno Azazello e a bruxa Hella, sempre nua.

Arte: Elena Martynyuk
Arte: Elena Martynyuk

Moscou surge como um caos: é uma cidade atolada em denúncias e na burocracia, as pessoas simplesmente somem e há comitês para tudo. No livro, o principal comitê é uma certa Massolit (abreviatura para sociedade moscovita de literatura, que também pode ser interpretada como literatura para as massas) onde escritores lutam por apartamentos e férias melhores. Há também toda uma incrível burocracia, tão incompreensível quanto as descritas por Kafka, mas que formam uma atordoante série de cenas hilariantes.

Naquela Moscou o diabo está em casa e podem deixar tudo com ele, pois Woland e sua trupe demonstram notável criatividade para atrapalhar, alterar, sumir e assombrar. O escritor Bulgákov responde sempre à altura das cenas criadas. A cena do teatro onde é distribuído dinheiro e a do baile — há ecos dos bailes dos romances de Tolstói — são simplesmente inesquecíveis. Falei em Tolstói, mas a base de criação de Bulgákov é outro cômico ucraniano: Gógol.

O livro pode ser lido como uma comédia de humor negro, como alegoria místico-religiosa, como sátira à Rússia soviética ou como crítica à superficialidade das pessoas. Há mais pontos bem característicos: Bulgákov jamais demonstra nostalgia da Rússia czarista — apenas da religião — e Woland não está em oposição direta a Deus. Ele é como um ser que pune os maus e a covardia — é frequente no livro a menção de que a covardia é a pior das fraquezas. E as punições de Woland são criativas, desconcertantes.

Em 2006, o Museu Bulgákov, em Moscou, foi vandalizado por fundamentalistas. O museu fica no antigo apartamento de Bulgákov, ricamente descrito no romance e local dos mais diabólicos absurdos. Os fundamentalistas alegavam que O Mestre e Margarida era um romance satanista.

Mikhail e sua Margarida
Mikhail e sua Margarida

Nas imagens finais de O Mestre, Mikhail Bulgákov dá uma dura avaliação do mundo que encontrou. Ele seria infernal e sem esperança. Era óbvio que as tentativas de se tornar parte do mundo soviético falharam. Ele não entendia aquele novo idioma.

~ Curiosidades ~

A venda da alma

Sabe-se que Bulgákov foi muitas vezes ao Bolshoi para ver e ouvir a ópera Fausto, de Charles Gounod. Esta ópera sempre o animava, ele voltava feliz para casa. Mas, um dia, Bulgákov voltou do teatro em estado muito sombrio. Ele tinha começado a escrever sua peça sobre Stálin, Batumi. Bulgákov reconheceu-se na imagem de Fausto. Como escrevemos acima, a peça jamais foi concluída por ter sido indiretamente reprovada por Stálin.

Personagem desaparecido

Em 1937, nos 100 anos de aniversário da morte de Pushkin, vários autores apresentaram peças dedicadas ao poeta. Entre elas, havia uma de Bulgákov. Alexander Pushkin distinguia-se das obras de outros autores pela ausência do personagem principal. Bulgákov acreditava que a aparição do homenageado no palco tornaria tudo vulgar e insípido. Sua peça foi considerada a melhor daquele ano.

Tesouro

No romance A Guarda Branca, Bulgákov descreveu com bastante precisão a casa em que morara em Kiev. Lá, haveria um tesouro. Os novos proprietários da casa quase a derrubaram, quebrando paredes ao tentar encontrar o dinheiro descrito no romance. É óbvio que não encontraram nada e ainda ficaram irritados com o escritor.

História de Woland

Woland recebeu seu nome a partir do Fausto de Goethe. No Fausto, ele é citado apenas uma vez, quando Mefistófeles pede para que espíritos malignos abram espaço pois “O nobre Woland está chegando!” Em outros Faustos ele aparece como Faland ou Phaland. A primeira edição de O Mestre continha uma descrição detalhada (15 páginas manuscritas) de Woland. Esta descrição está perdida. Além disso, na versão inicial, Woland era chamado Astaroth (um dos demônios mais altos do inferno, de acordo com a demonologia ocidental). Mais tarde, Bulgákov o substituiu.

O protótipo de Behemoth

Em russo, diz-se Begemot. O ultrafamoso assistente de Woland tinha um protótipo real, só que este não era um gato, mas um cachorro: o grande cão preto de Bulgákov chamava-se Behemoth. Esse cachorro era muito inteligente. Uma vez, quando Bulgákov estava comemorando o Ano Novo com sua esposa, logo após o relógio de parede dar doze badaladas, o cachorro também latiu 12 vezes, embora ninguém lhe tivesse ensinado.

Escultura de Behemoth em Kiev | Wikimedia Commons
Escultura de Behemoth em Kiev | Wikimedia Commons

Memória

Desde os primeiros anos de vida, Bulgákov demonstrou possuir uma memória excepcional. Lia muito. Diz a lenda que ele leu tantas vezes o romance Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, que o sabia de cor.

Coleção

Bulgákov tinha todos os ingressos de teatro — peças, ópera e concertos — a que compareceu.

Crítica soviética

O escritor também colecionava, coladas em um álbum, recortes de jornais e revistas com críticas de suas obras. Dava ênfase às mais devastadoramente hostis. De acordo com Bulgákov, ali havia 298 críticas negativas e apenas 3 elogiosas.

Defesa de Stanislavski

A primeira produção no Teatro de Arte de Moscou de Os Dias dos Turbin foi garantida por Konstantín Stanislavski. Ele simplesmente afirmou que, se a peça fosse banida, fecharia o teatro.

Stálin e Os Dias dos Turbin

Stálin gostava muito da peça e assistiu-a pelo menos 15 vezes, aplaudindo com entusiasmo desde o camarote destinado a membros do governo. Oito vezes ele desceu para falar com os artistas após a peça, a fim de incentivar a necessidade da luta política na literatura.

Uma das últimas fotos. Mikhail Bulgákov, com sua esposa Elena Shilovskaya
Uma das últimas fotos. Mikhail Bulgákov, com sua esposa Elena Shilovskaya

(*) Com pesquisa de Elena Romanov

Livro comprado na Bamboletras.

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Dias tristes: fim da Ipanema, da Sala dos Clássicos e morte do Hagemann

Dias tristes: fim da Ipanema, da Sala dos Clássicos e morte do Hagemann
Charge do Latuff descomemorando o fim da Ipanema
Charge do Latuff descomemorando o fim da Ipanema

Não era um grande ouvinte da Ipanema. Ouvia mais quando tinha carro e precisava de barulho para vencer o som da rua. Era o período glorioso de Kátia Suman e Mary Mezzari. Algumas tardes da Kátia eram realmente extraordinárias. Ela conseguia enfileirar uma tal série de músicas, com um tal ritmo e entusiasmo, que parecia que quem estava fazendo música era ela. É preciso talento e conhecimento para obter aquele efeito e ela conseguia quando queria. Era, deve ser ainda, tarada pelo Led Zeppelin. Mas havia também o alemão Victor Hugo, o Mutuca e programas surpreendentes — e ótimos — como o Musica Mundi e o Arrasa Quarteirão. Acabou. E acabou para virar mais do mesmo. A péssima programação da Band AM vai tomar conta da rádio.

E, ontem à tardinha, fui procurar um CD e dei de cara com a Sala dos Clássicos Eruditos fechada. Era ali na Galeria Chaves, no primeiro andar. Em seu lugar estava uma reles agência de viagens. A loja da Margarida e da Mirta era o local que substituía o porão da King`s Discos da Cristina e do Júlio. Era um local de encontros de músicos e melômanos. A gente podia encomendar o que quisesse. Elas davam um jeito. Passei muitas e boas horas lá. Já conhecia até o banheiro, pois às vezes ficava muito tempo batendo papo…. Mas agora acabou.

LAURO-HAGEMANN-Elson-Sempé-PedrosoE, nesta madrugada, aos 84 anos, morreu Lauro Hagemann. Conheci o velho comuna no partidão. Como escreveu Franklin Cunha, Lauro dignificou a profissão de jornalista, hoje tão justamente criticada por algumas posições políticas, institucionais e empresariais. Era uma voz que se fazia muito presente em minha casa, pois meu pai sempre preferia que a locução dos noticiários viesse pelo Hagemann, que era uma pessoa ética. Lauro foi cassado pela ditadura, tendo um comportamento impecável de oposição durante o período.

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Os 50 maiores livros (uma antologia pessoal): XVII – O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgákov

Capa de O Mestre e a Margarida, edição da Alfaguara

Sabem aqueles livros que valem por cada palavra? Que é engraçado, profundo, social, histórico, existencial e grudento? Pois O Mestre e Margarida satisfaz todas as condições acima. A influência do livro pode ser medida não apenas por minhas conversas com os amigos russos da Ospa, mas no reflexo da obra na cultura mundial. O livro Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, tem clara e confessa influência de Bulgákov; a letra da canção Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, foi escrita logo após Mick Jagger ter lido o livro, assim como Pilate, do Pearl Jam, e Love and Destroy da Franz Ferdinand, a qual é baseada no voo de Margarida sobre Moscou. Mas nem só a literatura e o rock, que não viveu para ouvir, homenageia Bulgákov: o compositor alemão York Höller compôs a ópera Der Meister und Margarita, que foi apresentada em 1989 na ópera de Paris e lançada em CD em 2000.

Em vida, tudo que o ucraniano Bulgákov (1891-1940) desejava era sair de Moscou e da União Soviética. Escreveu mais de uma centena de cartas a Stálin, justificando-se e pedindo permissão para deixar o país. Afinal, se tudo o que escrevia era proibido, era um inútil para a URSS. Tanto escreveu cartas que acabou recebendo um telefonema do próprio Stálin: este lhe oferecia um emprego num teatro, para o qual deveria escrever pecinhas tranquilas com seu indiscutível talento — e Stálin sabia reconhecer quem o tinha —  e referendava o “desejo” de não ver o escritor fora do país. E Bulgákov sobreviveu escrevendo umas poucas peças de sucesso para o teatro, além de adaptar para o palco Dom Quixote e Almas Mortas.

Bulgákov brincando de Koroviev: censura e cartas a Stálin

Ele começou a escrever o romance em 1928. Em 1930, o primeiro manuscrito foi queimado pelo autor após ver censurada outra novela de sua autoria. O trabalho foi recomeçado em 1931 e finalizado em 1936. Sem perspectiva alguma de publicação, Bulgákov dedicou-se a revisar e revisar. Veio uma nova versão em 1937 e ainda outra em 1940, ano de sua morte. Na época, só sua mulher e amigos sabiam da existência do romance.

Uma versão modificada e com cortes da censura foi publicada na revista Moscou entre 1966 e 1967, enquanto o Samizdat publicava a versão integral. Em livro, a URSS só pôde ler a versão integral em 1973 e, em 1989, a pesquisadora Lidiya Yanovskaya fez uma nova versão — a que lemos atualmente — baseada em manuscritos do autor. A vida era assim na URSS.

O livro é digno da história contada por minha amiga bielo-russa Elena Romanov (aqui em uma versão livre e talvez equivocada de minha lavra…):

— Eu tinha uma colega de quarto que lia apenas O Mestre e Margarida. Ela terminava e voltava ao início. E dava gargalhadas e mais gargalhadas. Na Rússia o livro foi tão lido que surgiram expressões coloquiais inspiradas por ele. A frase dita por Woland “Manuscritos não ardem” é usada quando uma coisa não pode ou não será destruída. Outra é “Ánnuchka já derramou o óleo”, para dizer que o cenário da tragédia está montado.

O jovem Bulgákov e um daqueles escritores russos

As cenas de Pôncio Pilatos, do teatro, do belíssimo voo de Margarida e do baile eram conhecidas de mim por serem citadas aqui e ali com enorme admiração. E a fama é justa. Digo tudo isto porque é triste ver O Mestre e Margarida, obra muito popular em vários países, ignorada no Brasil.

Em 2006, o Museu Bulgákov, em Moscou, foi vandalizado por fundamentalistas. O museu fica no antigo apartamento de Bulgákov, ricamente descrito no romance e local dos mais diabólicos absurdos. Os fundamentalistas alegavam que O Mestre e Margarida era um romance satanista.

Bulgákov e esposa em 1937. Ele tinha uma Margarida que era pura poesia.

A ação do romance ocorre em duas frentes: a da chegada do diabo a Moscou e a da história de Pôncio Pilatos e Jesus, com destaque para o primeiro. O estilo do romance varia. Os capítulos que se passam em Moscou têm ritmo vivo e tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém estão escritos em forma clássica e naturalista. Em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Koroviev — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno Azazello e a bruxa Hella, sempre nua. Moscou surge como um caos: é uma cidade atolada em denúncias e na burocracia, as pessoas simplesmente somem e há comitês para tudo. No livro, o principal comitê é uma certa Massolit (abreviatura para sociedade moscovita de literatura, que também pode ser interpretada como literatura para as massas) onde escritores lutam por apartamentos e férias melhores. Há também toda uma incrível burocracia, tão incompreensível quanto as descritas por Kafka, mas que aqui vive uma atordoante e espetacular série de cenas hilariantes.

Homenagem do Google aos 120 anos de nascimento de Bulgákov em 2011

Como veem, em Moscou o diabo está casa e podem deixar tudo com ele, pois Woland e sua trupe demonstram toda a sua incrível criatividade para atrapalhar, alterar, sumir e assombrar. O escritor Bulgákov responde à altura das cenas criadas. A cena do teatro onde é distribuído dinheiro e a do baile — há ecos dos bailes dos romances de Tolstói — são simplesmente inesquecíveis. Falei em Tolstói, mas, fora de dúvida, a base de criação de Bulgákov é seu conterrâneo Gógol.

O livro pode ser lido como uma comédia de humor negro, como alegoria místico-religiosa, como sátira á Rússia soviética ou como crítica da superficialidade das pessoas. Bulgákov não é tolo: não há nostalgia da Rússia czarista. E mais: Woland não está em oposição direta a deus, mas como o ser que pune os maus e a covardia — é frequente no livro a menção de que a covardia é a pior das fraquezas (concordo muito). Porém, as punições de Woland são desconcertantes.

Agora é só ler, né? A tradução de Zoia Prestes, para a Alfaguara, é bastante superior à antiga, lançada lá por volta de 1993 pela Ars Poetica.

Finalmente tranquilo: Mikhaíl Afanasyevich Bulgákov em Kiev

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A internet e as relações humanas

Os compositores de obras musicais costumam dar indicações quanto ao modo como deve ser tocada esta ou aquela peça. Entre cronistas não existe este hábito. Mesmo assim, aviso aos meus leitores que esta crônica deve ser lida con amore.

HERBERT CARO

Talvez esta seja uma experiência comum a muita gente, talvez não. Antes da Internet e, principalmente, dos blogs, eu utilizava muito o telefone. Conscientemente ou não, reservava horários noturnos para fazer longas visitas telefônicas aos amigos. Eram comuns os telefonemas de mais de uma hora onde exercitava meu razoável dom de escutar e minha discutível oratória. Nesta época, já ouvia uma crítica interna que advertia ter sido um erro grosseiro o quase ter abandonado as conversas que antes tinha em sebos e livrarias nos finais de tarde, assim como a tradicional discussão sobre música erudita na King`s Discos dos sábados pela manhã (onde recebia verdadeiras aulas quando jovem). O telefone, pensava, substituíra pobremente a observação da postura, do olhar e dos gestos dos amigos. É certo que tenho a sorte de possuir muitos amigos e nunca deixei de encontrá-los. Porém aqueles civilizados, alegres, gentis e “casuais” encontros em locais onde se podia jogar conversa fora sem maiores objetivos foi pouco a pouco substituído por vozes ao telefone.

O telefone impedia que se abrisse o leque de amizades como acontece nas livrarias e discotecas. Aos que já estão pensando que foram meus filhos os culpados disto, respondo que a utilização do telefone foi pré-prole e aos que acusarem nossos relacionamentos amorosos de exigências exclusivistas não posso responder, pois não lembro de meu primeiro casamento, tendo até esquecido se o nome de minha esposa era Suélen ou Pâmela…

Já viram que hoje estou em ritmo de conversa… Continuemos. As mudanças foram um sinal dos tempos? Acho que não. Ainda hoje, dia desses, fui passear por algumas livrarias do centro ao final da tarde e encontrei — sempre fora do âmbito das horrendas mega — pessoas falando em livros e contando casos. (Para quem mora em Porto Alegre, posso indicar a Ventura Livros como um local com enorme potencial para se comprar livros e para boas palestras. Os donos são acolhedores e conhecem muito bem aquilo que vendem. O Gustavo e seu sócio são representantes de uma raça que as mega-livrarias – sei lá por quê – parecem desejar extintas: são leitores de primeira linha, sabem muito e são civilizados, solidários, dando até descontos aos amigos…)

Também a Sala dos Clássicos é um local em que pode-se encontrar apaixonados debatedores defendendo o vulgar Concerto Nº 5 para Piano e Orquestra de Beethoven em detrimento do maravilhoso Nº 1 de Brahms. (Importante: eu amo Beethoven, mas este Concerto cujo primeiro movimento é pura ornamentação é de matar. Concordo: há gosto para tudo — no mundo há, inclusive, vegetarianos e pessoas que só ouvem Wagner.)

Voltemos a nosso assunto, pois quero lhes falar que, após abandonar o olhar, o ambiente e o gesto, troquei a voz pelos e-mails e blogs. Hoje, quase não falo mais ao telefone, só o utilizo para recados e conversas curtas. Mesmo as consultas que fiz a alguns amigos e, principalmente, àquela psicanalista formada pela Sorbonne, acerca da interpretação “do tal post da cizânia” resultaram curtíssimas; todos têm computadores conectados à rede em suas casas e as conversas foram esclarecedoras e exclamativas, mas breves. O grosso foi por MSN.

De qualquer forma, os novos vínculos formados pelos blogs e pala rede são muito fortes e creio que este seja um dos maiores elogios que possam ser feitos aos textos numa época em que a literatura fracassa diante de outros meios de expressão. E o leque de amizades potenciais guardado pela rede é aparentemente inesgotável. Não ousaria listar aqui os novos amigos com receio de ofender alguém pelo esquecimento, mas digo que, se eles têm a desvantagem de estar longe, têm a vantagem de nunca terem me decepcionado quando os conheci pessoalmente — ao contrário! Mas não me convenço muito: é raro vê-los, ouvir suas vozes, apertar suas mãos, beijar as bochechas ou alcançar-lhes um copo. Acho triste.

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