Relato de uma Viagem à Itália (VI)

Alguns de meus sete leitores talvez nem lembrem mais que abandonei o relato de minha viagem à Itália. Parei no capítulo V e o retomo agora de forma a apagar minha desídia. Na última parte publicada, eu e Flavio Prada estávamos aos beijos na estação de trem de Rovereto. Sim, ele me deu dois beijinhos à russa. Ignorava que os italianos também eram dados a este gênero de expansões e fiquei na minha, apenas virando levemente o rosto, por medida de precaução. Talvez ele estivesse me tomando por outro, talvez nem fosse o Flavio, sei lá. Afinal, nunca se sabe, só o conhecia dos blogs.

Quando combinamos a visita de dois dias a ele em Riva del Garda — …

…cidade paradisíaca numa bela região montanhosa como mostra a foto acima –, trocamos alguns e-mails em que Flavio mostrava-se preocupado com o roteiro de viagens pelas redondezas de Riva e com o cardápio que nos seria servido. Ele queria saber do que gostávamos, o que queríamos ver, etc. Não respondi, disse-lhe apenas que não fizesse nada diferente do normal e que, como não conhecíamos aquela região, ficaríamos nas mãos dele. Imaginem se eu faria exigências a um anfitrião que desconhecia pessoalmente e que gentilmente nos receberia junto a sua família de esposa e três filhos? Nunca! Mas Flavio voltou à carga e fez-me entender que tudo tinha que ser pensado com grande antecedência. Consultei a Claudia e ela me disse que os italianos eram assim mesmo. Gostavam de tudo acertadinho. Pedi-lhe uma sugestão de cardápio e ele nos respondeu com algo consistentemente majestoso. Também descreveu-nos os vinhos… Salivando, concordamos com tudo. E ele nos fez uma proposta de roteiro muito mais interessante do que as que pesquisáramos. Tudo certo.

Depois de três minutos de Flavio Prada, já tinha reconhecido o blogueiro que faz humor de quase todos os modos, mas principalmente explorando as contradições entre forma e conteúdo. É alguém em quem a piada brota de um rosto sério, que apenas ri – e muito – quando percebe o entendimento do interlocutor. De novo a forma e o conteúdo em oposição. Vi ainda que ele tinha em comum com a Claudia a característica de não explicitar seu afeto por palavras, mas através de atos. Novamente, o conteúdo vem sem forma, inesperadamente. Estou acostumado a isto e concluí que seria muito bem tratado. Fui.

Estava um frio de rachar. Depois de uma rápida visita ao MART (Museo d`arte moderna e contemporanea di Trento e Rovereto), fomos deixar nossas malas no apartamento da família, em Riva. Lá, conhecemos a Marly, mulher do Flavio, com a qual tinha tido uma curiosa conversa telefônica no dia anterior: ela falava em italiano e eu respondia em português, sem que nenhum dos dois notasse nada de estranho. Ficamos sabendo que nossa chegada lamentavelmente desalojara dois dos filhos deles, que iriam para o quarto da irmã. Lá, tivemos nosso primeiro e qualitativamente nada modesto almoço.

Para quem não sabe, o Flavio, além de arquiteto e escritor, é pintor, músico e cineasta amador. Quando seus filhos Beatriz, Julio e Marcelo chegaram, tivemos a exibição de alguns incríveis curtas nos quais seus filhos são explorados como atores. Há uma cena de perseguição que até agora não sei como foi filmada e a cara de delinqüente de seu filho Marcelo é absolutamente engraçada. Também tivemos alguns solos do guitarrista e tecladista (roqueiro) Flavio. Depois de comermos feito uns animais, a cena era a da foto abaixo. Acredito que as pessoas ficam burras depois de comer demais. É a burrice pós-prandial. Olhem a foto e tentem analisar o que se pode esperar de gente assim. Bem, eu fui lavar a louça, pois considero esta tarefa não seja muito exigente mentalmente.

Acho que saímos só ao entardecer. Visitamos o local do I Congresso Intergáctico de Blogueiros de Riva del Garda que, desta vez, apresentou um acrécimo de 100% de comparecimento em relação ao primeiro evento. Gostaríamos que ficasse registrada a profunda animação dos congressistas, assim como a neve sobre a mesa dos debates.

Voltamos para o apartamento onde comemos novamente (e eu voltei a lavar a louça ). Depois disto, contradizendo a burrice pós-prandial, eu e o Flavio ficamos conversando como velhos amigos até mais ou menos às 4 da madrugada. Foi uma conversa séria, em grande parte sobre política. Durante o papo, tive a idéia de montar o Bombordo para ver se tornava mais produtivo um certo grupinho de discussões que fica desfiando teses e mais teses para o Yahoo ler.

Lamentei estar cansado e ter pedido a ele para me retirar e ir dormir. Quando entrei no quarto, a Claudia já dormia há mais ou menos dois anos. Deitei cuidadosamente na cama para não acordá-la – ela sofre de insônia, eu não – e, quando coloquei minha cabeça no travesseiro, certo de um sono reparador, ouço uma gargalhada, digamos, imoderada, vinda das minhas costas. Não, prezado leitor, não fui enrabado, acontecera que minha cabeça pressionara um saco de risadas que fora colocado ali pelo diabólico Julio, de nove anos, o segundo filho do Flavio. Procurei debaixo do travesseiro, nada. Abri a fronha, nada. A Claudia começou a reclamar e disse que eu estava acordando a casa inteira. Mandei calmamente ela calar a boca. O guri tinha posto fronha dentro de fronha para dificultar meu acesso à merda gargalhante. Acabei por acertar um soco no meu travesseiro e as risadas pararam. Então, cuidadosamente, pus meu travesseiro no chão para que a coisa não disparasse mais, enquanto a Claudia tinha um ataque de riso a meu lado. Eu, o usurpador do quarto, fiquei paradinho o resto da noite, temendo novas armadilhas.

Muito cuidado ao visitar Flavio Prada, portanto.

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Relato de uma Viagem à Itália (V)

Já tínhamos combinado com o Flavio Prada que passaríamos dois dias em sua casa, em Riva del Garda. A combinação foi estranha para mim, pois o Flavio desejara que nós aprovássemos com dois meses de antecedência o cardápio que nos serviria… Confesso que cheguei a pensar que fosse uma brincadeira dele e respondi que qualquer coisa nos satisfaria, que não éramos muito chatos, etc. Mas logo vi que ele queria mesmo que opinássemos. A Claudia observou:

— Milton, teu amigo já é 100% italiano. Este tipo de coisa é bem deles. Querem tudo combinadinho e nada pode dar errado. Não sei como ele ainda não especificou nossa agenda.

Então tá. Trocamos vários e-mails em que os pratos iam sendo um a um escolhidos. A Claudia ousou sugerir uma simplificação do cardápio, mas a modéstia de minha cara-metade foi escorraçada por nossos futuros anfitriões. Logo depois, o esperado: Flavio queria acertar uma agenda, aonde iríamos, etc. Disse que dois dias era muito pouco, que éramos uns trouxas, aquelas coisas do Flavio; mas depois de algumas explicações e piadas, a agenda saiu. Então tá.

Porém me adianto, devo retornar a dois dias antes de partirmos de Porto Alegre, quando a Claudia me chamou no computador.

— Milton, este aqui é o Flavio Prada?

Olhei melhor a foto.

— Sim, não tinha visto isso.

— E esta aqui, tu tinhas visto?

— Também não.

— Bom, espero que ele seja divertido – completou ela.

— Eu também! — suspirei.

Voltamos à Itália. Pegamos o trem para Rovereto em Verona. É uma longa subida em que a neve e as montanhas vão surgindo até cercarem-nos totalmente. A viagem é linda, mas as fotos ficaram horríveis. Tentei de todas as formas mostrar que havia montanhas dos dois lados, atrás e na frente. Talvez outro tivesse conseguido, eu não. E muitas fotos mostraram meu lamentável reflexo no vidro. Deu tudo errado. Gostei da mais despretensiosa:

Quando chegamos na estação de Rovereto, devíamos finalmente encontrar o Flavio. Olhei para os lados e não vi ninguém. Fiz uma piada para a Claudia, dizendo que estava me sentindo como Tolstói na estação de trens perto de Iasnaia Poliana. (Não entendeu? Vá ler qualquer notinha biográfica do cara!) Era neve e mais neve e ninguém nos esperava. Até que surgiu um sujeito em tudo semelhante ao Flavio Prada das fotos. Caminhava rápido, sem olhar para os lados e estava passando reto. Chamei-o:

— Flavio?

Ele descreveu uma curva em torno de nós e disse:

— Eu não sou Flavio Prada! E não gosto de ser confundido com blogueiros!

Comecei a rir, nos abraçamos e… coisa esquisita. Ele me deu dois beijinhos à russa. Ignorava que os italianos também eram dados àquele gênero de expansões e fiquei na minha, pensando que tínhamos saído muito rapidamente de Iasnaia Poliana para o Kremlin. Afinal, o Flavio ostentava um chapéu que poderia ter sido em outra encarnação uma chapka soviética.

Saímos de carro. Fomos ao Mart, o Museu de Arte Moderna de Rovereto e viajamos até Riva del Garda. Na estrada, paisagens assim. Vejam como o Flavio sofre.

Interrupção Brusca: Antes de eu terminar o post, entrou no ar o filme da Verbeat — dirigido por Flavio Prada — sobre minha visita à Itália e sua assinatura de contrato em nossa prestigiosa empresa. Vejam o filme, comprem o livro e curtam as sensacionais blogueiras dançantes presentes na película!

Bom filme!

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