Meu nome é vermelho, de Orhan Pamuk

Meu nome é vermelho, de Orhan Pamuk

Vamos evitar os spoilers, apesar de que aqui será complicado fazê-lo.

O excelente Meu nome é Vermelho, do turco Orhan Pamuk, investiga dois assassinatos brutais e oferece uma linda e provocativa exploração da natureza da arte em uma sociedade islâmica. Mas a forma com que o romance é escrito também impressiona. Afinal, não é todo dia que se lê um livro com 20 narradores, alguns mais predominantes que outros. Dentre eles há um cachorro, uma árvore, a cor vermelha e um cavalo, bem como a Morte, Satanás e um cadáver. Todos fazem importantes contribuições para a narrativa, mas no centro do palco estão Negro, Ester — a casamenteira judia –, o próprio Assassino, vários miniaturistas e Shekure, o grande amor de Negro. Apesar do alto número de narradores, a leitura é fácil e a gente jamais se confunde sobre quem fala, porque cada capítulo é narrado por apenas um deles e seu nome está sempre no título do mesmo, enorme, pra ninguém se enganar: Meu nome é Vermelho, Eu sou meu cadáver, Meu nome é Negro, Serei chamado Assassino, Eu, Shekure, assim por diante.

Negro, após 12 anos de ausência, retorna à sua terra natal, Constantinopla, no meio de um inverno rigoroso. E descobre que tudo mudou. A bela Shekure, a mulher que ele desejava desde adolescente, casou e enviuvou na sua ausência, estando mais uma vez à procura de um marido. Entretanto, o seu pai, um ex-embaixador rico e influente em Veneza, conhecido por todos como “Tio”, embarcou num projeto há muito acalentado, a compilação de um livro de iluminuras para o Sultão no qual o mundo será retratado realisticamente e em perspectiva, à maneira dos pintores renascentistas que o Tio passou a admirar na Itália.

Este, porém, é um empreendimento perigoso, pois os fundamentalistas islâmicos estão na cidade e odeiam a arte ocidental. No primeiro capitulo, um dos ilustradores que trabalhava no livro que está sendo preparado para o Sultão já foi encontrado no fundo de um poço com o crânio esmagado e, em pouco tempo, haverá mais uma morte.

Estamos em Istambul (ou Constantinopla), no final dos anos 1500 — um tempo no qual o Império Otomano atingia seu auge, apesar de cada vez mais desafiado pelo Ocidente inovador. Proibidos pelo Alcorão de pintar imagens realistas, os miniaturistas da cidade fizeram durante séculos imagens estilizadas de pessoas, plantas e cavalos. A sua crença era a de que apenas Alá poderia “criar pessoas”, jamais os artistas. Então, estes eram proibidos de retratar rostos, de reproduzi-los. Só Alá poderia fazer o mesmo. Mas quando um novo Sultão — após também visitar Veneza, cheia de retratos realistas de potentados e de gente do povo, além de pinturas que usavam perspectiva — encomendou um livro ao Tio, que incluiria retratos no estilo ocidental, os artistas e mulás reacionários ficaram em polvorosa.

Depois que um famoso gravador e outra pessoa envolvida no projeto são encontrados assassinados, o Sultão exige que o autor dos crimes seja preso ou todos os miniaturistas serão condenados à morte. Negro, sobrinho de Tio Efendi, envolve-se na investigação. Ele consulta o famoso miniaturista Mestre Osman — que sente que uma era está acabando e fura seus próprios olhos –, bem como os artistas que trabalharam no livro. Com apelidos como Borboleta, Cegonha e Oliva, esses artistas relembram e discutem a diferença entre a arte ocidental e a islâmica enquanto proclamam sua inocência. Ameaçado de tortura pelo Sultão, Negro finalmente consegue descobrir o assassino.

Trata-se de um rico banquete de ideias e conhecimento.

Deixem eu explicar melhor. Naquele mundo não havia ainda a celebração do artista. Os autores eram proibidos até de assinar seus trabalhos. Estes eram apenas ornamentais, sem estilo pessoal e, como dissemos, sem perspectiva. Os rostos eram iguais, pois retratar pessoas reais poderia gerar idolatria e adoração. Então, como escrevi, o Sultão solicitara um projeto secreto. O Tio Efêndi vai contratar um grupo de 4 dos melhores miniaturistas para criar uma obra de gênero ocidental, onde ele, o Sultão, deverá ser retratado. Um deles morre — o primeiro narrador é este cadáver. Outro também é assassinado e um dos narradores é o assassino. Desta forma um dos narradores assume duas identidades, como narrador explícito e… como o misterioso assassino. A gente só vai saber quem é no final, pois o assassino é um dos narradores não confiáveis e trata de se esconder. Aliás, nesta trama policial, temos 20 narradores nada confiáveis…

O parentesco com O Nome da Rosa é bastante óbvio. Como a obra de Eco, é um whodunnit (*) cheio de charme e profundamente erudito. O tema ostensivo de Meu nome é vermelho é a ameaça de ocidentalização da arte pictórica otomana. O tema subjacente é de como o islamismo defende suas convicções.

O amor pelas crianças é particularmente grande em Meu nome é Vermelho. Shekure, que leva o nome da própria mãe do romancista, é absolutamente devotada a seus dois filhos pequenos, que, como o romancista e seu irmão na vida real, se chamam Orhan e Shevket, e o livro é dedicado à filha mais nova de Pamuk, Rüya. Esta reunião de pais e descendentes, passado e presente, fato e ficção, da mesma forma que a arte islâmica, reúne tudo no mesmo plano, sem gradações de perspectiva e é, obviamente, deliberada.

Recomendo demais.

Orhan Pamuk (1952)

.oO0.

(*) Quem matou?, Whodunnit ou Who Done It é um recurso narrativo típico da ficção, em especial na literatura e na teledramaturgia. Consiste, inicialmente, no assassinato de um dos personagens pertecentes à trama, desencadeando um procedimento investigativo acerca da identidade do responsável pelo crime. Na literatura o Whodunnit também é bastante utilizado em romances policiais. Um dos primeiros autores a explorar o gênero foi Edgar Allan Poe em Os Assassinatos da Rua Morgue, mas se tornou mais conhecido a cargo de autores como Arthur Conan Doyle com o detetive Sherlock Holmes, Agatha Christie com Hercule Poirot, Miss Marple e outros detetives, além de Georges Simenon com o Comissário Maigret e Stieg Larsson nos livros da Trilogia Millennium.