Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert

Que Horas Ela Volta?, de Anna Muylaert
Val e Dona Bárbara
Val e Dona Bárbara

Que Horas Ela Volta? entrou modestamente em cartaz, mas logo ganhou críticas entusiasmadas e o público apareceu. Lançado em 27 de agosto, o filme dobrou o circuito de exibidores e público em poucos dias. O número de ingressos vendidos por semana subiu 116% em um mês e o filme já está em terceiro lugar entre os mais vistos no Brasil em 2016, acima de produções como Missão Impossível – Nação Secreta e outros blockbusters.

A situação do brasileiro de classe média que vê Que horas ela volta? é bastante peculiar, pois o filme é um retrato seu na intimidade com seus serviçais. De certa forma, o filme acusa sua plateia. Por exemplo, hoje, eu não tenho empregada doméstica, porém, ver o filme foi como observar o mundo através dos olhos da velha Inah que morava com minha mãe. E minha familiaridade com o tratamento que Val recebe foi acrescida pela lembrança dos péssimos costumes de algumas pessoas com as quais convivi.

A história é simples e brasileiríssima. Depois de deixar a filha com a avó no interior de Pernambuco e passar 13 anos como babá de um menino de classe média em São Paulo, a empregada Val vive certa estabilidade financeira. Manda dinheiro para a família, orgulha-se do que tem em seu pequeno quarto nos fundos da casa, junta algum, mas convive com a culpa de não ter criado sua filha Jéssica.

Neste período, Val tornou-se uma segunda mãe para o menino Fabinho e também a administradora da casa dos patrões. Porém, às vésperas do vestibular do menino, ela recebe um telefonema da filha. Ela quer apoio para vir a São Paulo também fazer vestibular.

Aquilo parece uma segunda chance para Val. Afinal, ela finalmente poderá ser uma mãe para sua filha.

Val e Jéssica
Val e Jéssica

Val fala com os patrões e eles aceitam hospedar a menina junto com a mãe no quartinho. A família paulista está disposta a receber bem a menina por um tempo, porém, como ela não segue as regras de comportamento esperadas para uma filha de serviçal, a situação se complica. A menina é livre demais, inteligente demais, participante demais, não se submete com naturalidade às regras da casa.

Esses conflitos farão com que Val precise finalmente se movimentar. Regina Casé faz o papel de Val. Sua interpretação é notável, arrasadora mesmo, e saímos do cinema com a certeza de que ela passou a vida inteira trabalhando como empregada daquela casa.

É uma aula de Brasil, uma aula cheia de detalhes brilhantes. A Elena chamou atenção para a cena logo após o resultado do vestibular. A mãe reclama que o filho só aceita ser abraçado por Val, mas quando a situação subitamente se inverte — contar o motivo da inversão seria contar o filme –, o filho a abraça e é ela quem fica indiferente ao filho. O Idelber chamou a atenção para a cena da festa. Val serve quitutes sem que ninguém a olhe. Ela não existe. A cena é toda filmada do ponto de vista da empregada e é maravilhosa.

Mas o símbolo principal e visível do filme é a mítica piscina da classe média. Ali, nenhum serviçal que conheça seu lugar entra. Tal veto é uma cena chocante, notavelmente encenada por Muylaert.

Enéas de Souza disse que o filme é um pouco dilmista. Verdade. Ele se utiliza de alguns sonhos do período lulista, como a ascensão da classe C. O tema de fundo é o do preconceito de classe, essa instituição desumanizadora brasileira. A simpatia que sentimos por Val, a que nasceu sabendo seu lugar na sociedade, parece nascer menos dela e do fato de ser engraçada e mais do comportamento superior e asqueroso dos patrões. Causa-nos desconforto ver as mesquinharias típicas da classe média — como separar partes da casa para si e alimentos mais simples para os empregados.

O filme é discretamente libertário. Talvez boa parte de seu brilhantismo venha do desencanto. Não se sabe o futuro da filha Jéssica, mas a cena em que Val entra na piscina quase vazia é muito clara. Val entrou lá, comemorou e até deu uma tímida imitadinha no Gene Kelly de Cantando na Chuva. Mas a diretora e roteirista Muylaert fez com que ela entrasse lá à noite, de roupa, escondida, com a água pelas canelas. Motivo? Ora, a piscina acabara de ser limpa pela desconfiança da existência de “ratos”.

Recomendo muito,

Val e Fabinho
Val e Fabinho

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