Ditadura militar: os fatos com os quais o Comitê Carlos de Ré nem sonha

Baseada em fatos verídicos ocorridos em 18 de dezembro de 2013. Os nomes dos envolvidos foram dramaticamente alterados.

Pois então houve aquele rebuliço legal do dopinha. Pela primeira vez, pudemos ver todas as esquerdas juntas, as falsas e as verdadeiras. O governador falou, o prefeito discursou, assim como os menores irredutíveis e os torturados. Já que a proposta era a de chamar a casa da morte de Centro de Memória Ico Lisboa, lá estava seu irmão Nei cantando. Também houve performances teatrais e a presença de nosso cartunista preferido. Sim, o conhecido Palestuff lá deixou seus traços.

Por Bernardo Jardim Ribeiro

O que as pessoas não souberam foi de um drama real que ocorreu lá fora, naquela tarde quentíssima. O jornal Vermelho23 mandara o repórter Emir Pereira e o fotógrafo Leonardo Ribas fazerem a cobertura do evento. Na saída, eles encontraram dois amigos, os célebres Zezé Cinzano — editor do Jacaré — e o fotógrafo de duas rodas e dois metros Cauan Sanguinetti. Zezé trouxe a ideia de mudar o nome da Rua Santo Antônio para Ico Lisboa. Ora, ele já vira ações semelhantes num passado recente e sobraram alguns poucos adesivos, que ele recebera. Um deles o do próprio Ico Lisboa! Entraram logo em acordo e subiram lentamente a rua sob o sol escaldante de nossa triste capital. Emir saiu do grupo não por receio, mas por responsabilidade; afinal, sua matéria era esperada na redação. Mas os outros permaneceram para a ação. E arrastaram-se até a esquina.

Em ação anterior, Duque de Caxias recebeu um nome muito mais digno.
Em ação anterior, a Duque de Caxias recebeu um nome muito mais digno.

Lá chegando, a primeira dúvida foi a de quem subiria nas costas de quem. Leonardo pegou sua máquina fotográfica e saiu dando ordens:

— Cauan, dá um pezinho pro Zezé. Eu vou registrar em foto. Só vou pegar as mãos e a mudança de Santo Antônio para Ico Lisboa na placa.

Mas Cauan fez um muxoxo e discordou. Queria um outro esquema qualquer. Ficaram Leonardo e Zezé conjeturando enquanto Cauan sumia. Foi neste momento que chegaram, de moto, dois expeditos brigadianos ou porcos, como são mais conhecidos em nossa meiga cidade. Um deles, o Coronel Bicaco, estava preocupado, falando no rádio aos gritos, mostrando serviço à população circunstante. Já o outro, chamado Tenente Portela…

— O que tu tá fazendo com este plástico na mão? — perguntou a Zezé.

A resposta de Zezé foi um tanto agressiva:

— Tu não tem nada a ver com o que eu estou fazendo. É ilícito ficar parado na esquina com um adesivo na mão?

— Se tu vai colar essa merda no poste, é.

— Tu não pode sair questionando todo mundo na rua.

— Não tô questionando todo mundo, rapaz. Tô falando contigo.

Leonardo é um hedonista que tira diversão de tudo. Ele pensava em impor sua visão de mundo quando quedou-se boquiaberto ao observar Cauan saindo de uma lavanderia próxima com uma enorme escada. Desatento, ele passou entre os dois homens da lei, deixando a escada cuidadosamente encostada no poste onde se apoiava Zezé. Sim, como estamos vendo, tudo, SEMPRE, pode piorar.

Depois de cometer tal ato, Cauan sentiu o clima meio assim. Portela parecia deliciado.

— Nunca vi postura mais natural: um sujeito com um adesivo e uma escada ao lado de um poste acompanhado por dois amigos, sob o sol de cinquenta graus de Forno Alegre. É uma nova religião?

— Sou acusado de quê, porra? — perguntou Zezé, hesitando entre brigar com o guarda ou estrangular Cauan. Mas o policial militar também estava aquecendo.

— Olha aqui, seu idiota. Nada de me desrespeitar. Tá pensando o quê? Olha a tua situação! — vociferou Portela.

Nesta altura, Leonardo tratou de vir com panos quentes, apesar da temperatura.

— Olha aqui, seu guarda, o elemento é gente boa. É que a gente estava ali no dopinha. O Sr. sabe o que é o dopinha? É um dos lugares onde a polícia torturava e matava gente como o Zezé e eu durante a ditadura. Ah, gente como tu também, porque já vi que tu é um cara digno e sério, que não gosta de coisa errada… Mas, porra, como o teu amigo berra neste rádio, hein?

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— Poderia não interromper a enrolação, por favor?

— Então, a ideia da manifestação de hoje, que teve a presença do governador e do prefeito, era a de conseguir que o estado adquirisse a casa de número 600, ali embaixo ó, para fazer o Centro de Memória Ico Lisboa, um sujeito que foi irmão do Nei Lisboa e que foi morto na cas… Mas, porra, esse teu amigo nem precisa de rádio pra falar com o QG, né?

— Deixa o Bicaco, desembucha.

— Então, para colaborar com o evento de que participou o teu chefe, o governador Tarso Genro, a gente estava pensando…

— CARALHO! Nós estamos na rua errada! — berrou o Coronel Bicaco, inteiramente estressado. — Temos que ir é na Santo Inácio e a gente veio pra Santo Antônio. Vamo pra lá agora!

Portela preparou-se para seguir seu colega, mas antes dirigiu-se a Leonardo.

— Tu é um cara legal e educado.

E a Zezé:

— E tu é um baita chato.

E foram embora para salvar algum endinheirado na Santo Inácio. Afinal, é a especialidade da corporação.

Já a placa…

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Observações finais:
1. As fotos são de Bernardo Jardim Ribeiro e Carlos Latuff (última).
2. Peço desculpas aos envolvidos nesta brincadeira.

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