O Violista (Final – Allegro Maestoso)

Romeu foi cedo para o concerto em que interpretaria a Sinfonia Concertante para Violino, Viola e Orquestra, K. 364, de Wolfgang Amadeus Mozart. Chegando ao teatro, arrumou-se, afinou atentamente o instrumento e, como não tinha nada para fazer, foi ver quem estava no teatro antes de praticar mais um pouco. Logo que entrou na área administrativa, viu o maestro Tardue conversando com as secretárias. Procurou evitá-lo, não precisaria de uma discussão naquele momento, mas ele lhe fez um gesto amistoso convidando Romeu a aproximar-se. O maestro tratava de alguma questão administrativa e não dirigiu-lhe a palavra até terminar seu assunto.

– Já paramentado, Romeu? Que horas são? – perguntou finalmente.

Romeu riu e respondeu que o Dia do Violista era uma instituição rara e que pretendia aproveitá-la ao máximo. Tardue levou-o cordialmente até sua sala e disse que sua evolução nos ensaios fora surpreendente.

– Entendo perfeitamente o fato de alguém motivar-se agredindo quem lhe pareça um obstáculo.

Romeu não respondeu e Marc seguiu:

– Sim, eu acredito que você fantasiou uma hostilidade que nunca ocorreu entre nós. Eu, ao menos, não tive a menor intenção. Por que eu teria convidado justo você para substituir o húngaro?
– Que húngaro, maestro?
– Ora que húngaro?! Aquele que habitualmente interpreta a Sinfonia Concertante com Elena e que passou a faltar compromissos por motivo de saúde.

Romeu entendeu que Tardue desejava humilhá-lo citando um fato que antes evitara: o fato de que ele estava no papel de um mero substituto de última hora. Intuitivamente, evitou desconcentrar-se e respondeu

– puxa, maestro, não sabia. Que sorte a minha, não? Pois fazer minha estréia como solista em nossa orquestra com alguém do porte de Elena Sofonova é como entrar em campo ao lado de Zidane ou…
– Zidane e Pelé, certamente. E fui eu quem defendeu a introdução de um membro da orquestra ao lado de Elena. O Conselho não desejava, mas, por insistência minha, consegui. Será um belo concerto.

Romeu assentiu de forma entusiasmada e refletiu que aquele seria o momento exato para despedir-se do maestro; afinal, não seria nada bom não exercitar sua ironia a apenas duas horas do concerto. Tinha que manter-se mobilizado, concentrado. De voltar ao corredor, viu que havia luz num dos camarotes e bateu na porta. Como imaginava, após alguns segundos, a luz tornou-se ainda mais intensa com a presença de Elena à sua frente, sorridente e convidando-o a entrar. Falando num inglês menos estropiado que o de Romeu, ela lhe falou que trouxeram-na muito cedo do hotel para que ela se preparasse, mas que aquilo não era necessário a uma moça despojada e despreocupada como ela. Estava de calças jeans e camisa, ambas muito justas, que demonstravam ainda mais claramente sua beleza.

Tranqüilo, Romeu perguntou-lhe quantas vezes ela tinha interpretado a Sinfonia Concertante antes e ela respondeu-lhe que apenas duas ou três vezes além da gravação que fora lançada pela ECM.

– Ah, sim. E com quem foi a gravação?
– Com Kim Kashkashian. O convite partiu dela, claro. As you know, ela é filha de armênios e fomos parte do mesmo país até alguns anos. Acho que ainda é natural uma armênia procurar uma lituana para tocar, mesmo uma inexpressiva como eu – disse Elena.
– Vocês ainda têm muito contato entre si? Isto é, russos e lituanos e armênios e húngaros… São colaboradores habituais ou tudo ficou no passado?
– Não, há uma certa inimizade, até. Ou toco em meu país com grupos de lá ou estou no ocidente. Ultimamente, mais no ocidente, as you can see.
– Pensei que costumavas tocar esta obra com um húngaro… – tentou Romeu.
– Ainda não o conheço! – respondeu Elena com seu melhor sorriso. – Mas se der um bom marido, estou interessada!

Desta vez, Romeu e Elena Sofonova finalmente sorriam com a mesma intensidade. Depois, ela lhe perguntou sobre o Brasil, achando incrível que alguém abandonasse um país de natureza tão pródiga e que produzia tão bons músicos, como ela comprovara em muitos CDs e nos últimos dias. Romeu estava encantado com a simpatia da moça que agora lhe oferecia um doce que ganhara e que não deveria comer para manter a fama de que as russas, ou quase, eram sempre loiras, altas e magras.

Ele se despediu, dirigindo-se depois a seu armário. Um colega avisou que hoje ele tinha direito a um camarote ao lado da deusa, mas Romeu rejeitou, preferindo que o lugar de sempre entre os músicos. Ensaiou muitas vezes a belíssima entrada que faria em uníssono com Elena. Lembrou do filme Amadeus, em que aquele início fora utilizado; Romeu sabia que o público ficaria encantado desde os primeiros segundos daquela música perfeita.

Repetiu-a muitas vezes até ver Elena, já de vestido longo, juntar-se a ele, refazendo os primeiros compassos agora em dueto. Romeu notou que, pouco a pouco, os dois alteravam a dinâmica de tal forma que sua entrada, após a longa introdução orquestral, pareceria um bem humorado mergulho na massa sonora da orquestra. Não pensava absolutamente em mais nada.

O concerto foi um sucesso. Elena, Romeu e a Orquestra Nacional do Porto foram ovacionados, com os solistas e Tardue retornando duas vezes ao palco. No segundo retorno, Tardue fez questão de entrar com o braço sobre os ombros de Romeu, demonstrando ao público seu apoio a um instrumentista da orquestra, a alguém que fazia seu dia a dia ali e que não era um solista internacional.

Foram os três jantar juntos, acompanhados de alguns amigos. Era a despedida de Elena, que viajaria no dia seguinte para Paris. Foi um jantar feliz e cansado; Romeu sentou-se ao lado da lituana e recebia os cumprimentos junto com ela. Não estava preocupado nem ressentido; sabia que fizera boa figura. À saída, quando se dirigiam para a porta do restaurante, Marc Tardue fez questão de pôr-lhe o braço novamente sobre os ombros, perguntando como tinham sido seus trinta minutos de glória. Romeu não respondeu, apenas desvencilhou-se do maestro para despedir-se do restante do grupo. Trocou um longo abraço com Elena.

Chegando em casa, o violista tratou de arrumar a casa antes de dormir. Recolocou a cadeira de frente para a televisão, o cachecol do Boavista voltou a ornamentar a TV, o rádio temático retornou à mesa e só então foi preparar a cama para dormir, pensando que sua sala era melhor que o Bessa Século XXI, o estádio do desastrado Boavista daquele ano.

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O primeiro movimento da Sinfonia Concertante está aqui, a entrada dos solistas ocorre lá pelos dois minutos, após a longa introdução:

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=xWxtMYLfuA4&feature=related[/youtube]

E termina aqui:

[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Q2QmmYVSu1I&feature=related[/youtube]

Observação final: Marc Tardue foi o regente da Orquestra Nacional do Porto por oito anos até o final do ano passado. Não o conheço e nem sei nada a respeito dele. Os outros nomes e personagens foram inventados, exceto o de Elena Sofonova, que foi a atriz principal de Olhos Negros, filme de Nikita Mikhálkov.

5 comments / Add your comment below

  1. Milton, uma pequena dúvida. Como você bem sabe, sou leitor antigo e ativo do seu Blog. Neste novo espaço, você está reescrevendo o que já foi inventado no Verbet?

    Se a resposta é afirmativa, caro Milton, penso-sinto que você esteja comentendo um erro, tendo como referência o processo de criação.

    Bem, essa é minha opinião. Afinal, o Blog é seu!

  2. Cara, obrigado pelo que me aconteceu agora. Ando tão preguiçoso e já estava tão cansado do dia que eu nunca imaginei que eu leria e ouviria e veria uma história como esta aqui. Vou dormir cantarolando violas, violinos, flautas e este cruzamento incrível de planos que você faz aqui. Um narrador que entra e sai, muda de ângulo tão delicadamente…! Eu adorei este seu jeito de contar a história! Olhe que eu lí os cinco um atrás do outro. Detalhe por detalhe. Quase acompanhando o esforço do seu violista em buscar o primor inédito em seu trabalho musical, há muito tempo eu não acompanhava uma história com tanto ritmo e cadência. E ainda ilustrada com a música real, com os fatos desfilando pelo meio da ficção,…adorei! E vou dormir agradecido a você. Que eu não conheço, de quem nunca tinha lido nada, e de quem não vou esquecer nunca por estes quarenta minutos que lhe assisti. Não tenho o menor hábito de escrever em caixa de comentários e fico até meio constrangido, com a sensação de estar no meio de gente tão ilustre. Mas hoje eu não resisti, viu? Quero que me tome por algum ninguém nesta sua platéia, que no espetáculo desta noite aplaudiu o mais forte que pode, pediu bis e é bastante certo que volte por aqui. Muito obrigado Milton… e boa noite prá você!

  3. Dois comentários maravilhosos por motivos diferentes, o do Ramiro e o do Dalton. Agradeço a ambos.

    Adoraria responder demoradamente ao Dalton, pois certamente ele gostou da utilização dos diversos “suportes” (música, imagens, etc.) que usei na história. Eu também! O quarto capítulo é uma lembrança muito pálida do Fausto de Mann. Tentei livrar-me dele enquanto escrevia; foi difícil e não é para menos: é o livro que mais amo e que mais reli. Fiquei felicíssimo com o comentário dele.

    Mas como gosto de curtir minha baixa auto-estima, prefiro sempre responder mais longamente às críticas, ainda mais quando inteligentes como a do Ramiro.

    Ramiro, aqui é onde me coleciono. Não quis copiar meu blog antigo para cá, preferi revisá-lo talvez aspirando a uma coleção melhor de mim, a algo que achasse mais significativo. Por exemplo, este “O Violista” era bem diferente do primeiro. Houve inúmeras alterações. Os mais de cinqüenta contos publicados na Verbeat também serão revisados e republicados aqui. Minha idéia era a de publicar todos os dias, alternando revisões e textos novos, mas a semana passada foi tão pesada do ponto de vista pessoal que preferi ficar apenas nas revisões. Não creio que a reescrita me prejudique, Ramiro. Modestamente, acho que há algumas boas idéias inaproveitadas na produção dos tempos da Verbeat. Lá, houve época de 40 comentários por post e um número absurdo de visitas diárias. Hoje, este número está dividido por 7. Se o pessoal sumir, o que posso fazer? Desejo ser lido, claro, mas descobri que sou mais feliz tendo um blog para ludus e consolo – um ludus do qual as pessoas participam se quiserem e um consolo que apenas poderá sê-lo se eu gostar dele – do que um blog de novidades e destinado a uma grande audiência. Vem quem quer, vem quem estiver interessado; custei a entender que meu blog é melhor quando é pessoal e intimista. Mas é, né? Quando escrevo sobre música é “Milton e a música”, quando sobre literatura é “Milton e o livro X”, etc.

    Sempre estive mais interessado no ontológico do que no sociológico e acho a versão 2 estará mais perto do meu tamanho. Estou satisfeito com o estresse zero para postar e cheio de planos de revisões e novas histórias.

    Voltando ao Dalton, tenho vontade de escrever alguns contos que sejam em parte escritos e em parte falados em “podcast”. Poderia colcar a parte mais “dramática” em som. É nisto, é no lúdico que estou pensando. Gostaria muito de usar imagens e som. Um dia faço.

    Abraços.

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