Era uma manhã ensolarada no centro antigo de Verona, na Itália. Estávamos, eu e algumas amigas, na parada de ônibus. Íamos para a estação pegar o trem com destino a Padova. Tinha 20 anos, havia chegado do Brasil há pouco tempo e não conhecia bem a língua. Fazia cursos durante a semana e aproveitava para viajar em fins de semana como aquele.
Foi quando um homem elegante de uns 40 anos, de óculos escuros como nós todas naquela manhã luminosa, me abordou. Estranhamente, segurou meu braço — será que é o costume daqui? — e me pediu para lhe informar quando chegasse o ônibus para Porta Vescovo. Pensei logo tratar-se de uma desajeitada abordagem galante; não gostei, fiquei um pouco irritada. Afinal, será que ele mesmo não poderia ler? Sabia que os europeus adoravam brasileiras e eu – mesmo sendo de origem italiana – tenho a tal pele olivastra, aquele tom moreno claro que eles amam. Era o Dia de Santo Antônio, o santo casamenteiro, e minha avó, devota do santo, tinha-me feito prometer que iria em seu santuário no dia da festa. Eu, diga-se de passagem, tinha ido para a Itália me recuperar de uma grande desilusão amorosa e estava arredia a qualquer contato com o sexo oposto. Mas por que aquele homem bonito iria me pedir logo aquilo? Por que não entabulou outro tipo de conversação? Tratei de me afastar.
Aproximei-me de uma de minhas colegas e disse:
— Que coisa estranha…
— Lui è cieco (pronuncia-se tcheco) – respondeu-me Ornella.
E daí? Grande coisa, pensei comigo, ele é tcheco, eu sou brasileira. Será que os tchecos — mesmo os que falam um italiano perfeito — são idiotas? Que preconceito contra os europeus do leste…! O que dirão de mim, uma brasileira? Será que o fato do tcheco ter sido alfabetizado em cirílico o atrapalharia com o alfabeto ocidental? Porém, para ter aquele italiano sem sotaque, não teria ele antes aprendido a ler? Quando o ônibus aguardado chegou à parada, Ornella indicou-lhe delicadamente.
Fiquei pensando naquilo e questionei minhas amigas se elas achavam que uma pessoa que fala perfeitamente o italiano, mesmo sendo um tcheco, não poderia lê-lo. Elas me olharam desconcertadas e depois explodiram em risadas.
Só depois soube que Cieco era cego e não tcheco.
Esta história foi escrita a pedido da Tchela e publicada em 2003 no Repórter Saci, um site dedicado à inclusão social e digital de deficientes físicos. A história e as circunstâncias são reais.
Milton, tu é daqueles colorados irritantes. E que, certamente, são os melhores.
Cegos somos nós ao enxergarmos apenas o padrão, o normal e o à connu
Em tempo: “déjà connu”.
Só um pequeno comentário chato meu (aliás, todos os meus comentários são chatos): o alfabeto usado pela língua tcheca não é sirílico, mas sim nosso habitual alfabeto latino. A única diferença é o uso de acentos não habituais para nós, tais como “chapéu invertido” ou “bolinha”, na falta de termos melhores.
De resto, bom texto. Grande abraço.