Amuleto, de Roberto Bolaño

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Há vários capítulos inesquecíveis em Os Detetives Selvagens, porém, se há um menos esquecível que os outros, talvez seja aquele que narra a história da uruguaia Auxilio Lacouture, a mulher que ficou presa num banheiro feminino da Universidade Autônoma do México (Unam), em setembro de 1968. Auxilio costumava ler no banheiro, só que daquela vez começou a ouvir gritos e explosões e, ao sair de seu local de leitura a fim de averiguar o que estaria acontecendo, viu militares levando funcionários e estudantes para fora do prédio da Faculdade de Letras. Voltou ao banheiro para esconder-se e permaneceu 13 dias ali fechada até o dia da liberação da Universidade para professores, funcionários e alunos. Então, uma secretária abriu a porta do esconderijo e deu de cara com Auxilio, que caiu desmaiada.

O que era um belíssimo capítulo sem continuidade nos Detetives, torna-se novela — e das boas, e altamente poética — em Amuleto. Os fatos reais: houve uma pesada e trágica repressão militar na Universidade Autônoma do México (Unam) em 1968; esta foi invadida e temporariamente fechada; seguiu-se o massacre de centenas de estudantes na praça das Três Culturas de Tlatelolco, durante as Olimpíadas. Os fatos romanescos: Auxilio Lacouture, uma personagem absolutamente sedutora, uma andarilha que se autodenomina a mãe de todos os poetas mexicanos, uma quarentona sem emprego que perdeu por aí os dentes da frente, que vive de pequenos serviços para os professores da universidade, alguém que leu e lê muito, que põe a mão na frente da boca quando sorri — síntese genial de um personagem que fica entre o melancólico e o bem humorado –, que visita poetas e escritores propondo-se a lavar suas roupas e a varrer o chão em troca de alguns dias de hospedagem, uma mulher que ia a muitos bares, tendo bebido e conversado com todos os escritores do México, uma espécie de hippie sem-teto, culta, alta, loira, magra e exilada ilegal, esta é a uruguaia Auxilio Lacouture que, dizem os amigos de Bolaño, existiu e se chamava Alcira, tendo, na imaginação de Bolaño, ficado presa com sua saia branca, blusa azul e um livro num sanitário feminino da Unam quando ocorreu a ocupação.

A resistência poética de Auxilio, suas memórias e diálogos enlouquecidos, são narrados com a arte superior de Bolaño. A capacidade narrativa do chileno é realmente arrebatadora. Estão presentes novamente as histórias inconclusas e as narrações que nascem umas dentro das outras (uma superfetação de fantasias), mas o registro é um pouco mais delirante e onírico que o de outros romances, apesar de que o destino daqueles de quem Auxilio se julga mãe, seja aludido por ela num sonho semelhante ao flautista de Hamelin. Aliás, talvez seja paradoxal que em seu livro mais poético, Bolaño chegue ao mais duro julgamento de sua (nossa, minha) geração e até do futuro da literatura — previsto em trecho absolutamente cômico.

Não é um Bolaño típico, mas é fundamental.

Observações:
1. Houve realmente uma mulher que ficou presa na Universidade durante a invasão, mas não foi a Alcira conhecida de Bolaño.
2. Ah, obviamente um dos filhos da “Mãe de todos os poetas do México” era ele, o de sempre: Arturo Belano.

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12 comments / Add your comment below

  1. Tô com esse livro aqui na cabeceira, mas me desviei para outros. tä no prelo.
    superfetação? Não conhecia! Adorei! Integrei e já to louca para aplicar!
    bj, f

  2. Tenho lido todos os livros do Bolaño publicados no Brasil; obviamente, incluso O Amuleto e o outro mencionado, Os Detetives Selvagens. Gosto especialmente de Noturno do Chile, um pouco de A Pista de Gelo, e menos de As Putas Assasinas, volume que contém alguns contos fracos. Dá para entender a excessiva produção, e às vezes até algum desleixo, do autor chileno, às portas da morte e pensando na vida de seus descendentes diretos. Não quero dizer que ele é mau escritor, longe disso, mas suas obras sofrem de certa supervalorização, talvez porque um autor defunto seja ainda mais fácil de roubar do que os autores vivos ou meio-vivos ou meio-mortos. Suspeito disso. Como também suspeito que Bolaño deveria ser um sujeito incrível para conversar a esmo sobre literatura (li um diálogo dele com o argentino Ricardo Piglia, ambos ratos de biblioteca, e Bolaño tinha todos os nomes, estilos e citações de autores completamente desconhecidos por mim na ponta da língua), daí que seu Os Detetives Selvagens é bem exemplar do seu talento, capaz de explorar várias vertentes e formas literárias, e de maneira menos, digamos, pomposa, que o Italo Calvino (também excelente) de Se Um Viajante Numa Noite de Inverno. Voltando ao Amuleto, um livro decalcado de Os Detetives Selvagens, o que, novamente suspeito, nos oferece a medida das exigências editoriais e financeiras sobre o autor que, não creio, necessitasse desenvolver para além das bases do livro anterior, um calhamaço e tanto. A abordagem é curiosa, o clima novamente é de delírio e desatino mas… creio que algo repetitivo, com relação aos Detetives. A repetição da atmosfera onírica, fazendo-nos ingressar nos interstícios da linguagem poética e começar a desconfiar, desde o começo, da “realidade”, é um trunfo, mas também, aqui, um pouco gasto. Esperamos que a denominada obra-prima de Bolaño, 2666, nos oferece algo a mais, embora saiba que isso talvez seja exigir demais de quem, afinal, já nos deu o bastante, e teve tão pouco tempo de vida.

    1. Engraçado, o aspecto cronístico de Amuleto — penso que seja isto o que chamas de desleixo — me seduziu totalmente.

      No mais, a Cia das Letras prometeu o imenso 2666 só para 2010.

      1. Talvez… reflexo de pressa, revisão também apressada de uma escrita automática embebida em alcool, etc., uma porrada de hipóteses a contemplar. 2010 é no ano que vem, apesar de tudo (espero viver até lá). E, como vês, uma resenha é muito melhor do que uma lista.

  3. Milton, é quase um pedido de desculpas: acabei Amuleto três dias atrás, mas ele não me empolgou muito. Achei a temperatura baixa demais, e o clima brumoso não me deixava ver muito. E apesar da Auxilio Lacouture ser mesmo sedutora, e de ter ficado contente a cada vez que reconheci algo sobre a Cidade do México (morei lá) e tb sobre seu barra pesadíssima 68, foi um tanto quanto anticlimático para mim. Vou ler alguma bobagem agora, para só então pegar Noturno do Chile na estante, sabendo desde já que não, a história não tem nada a ver com A Morte e a Donzela, do Ariel Dorfman, mas sei lá por que diabos pensei nela quando li a orelha…
    Abs

  4. Milton, é com certo alívio que me deparo com o comentário do Marco Nunes, uma visão que esboça lucidez a longo prazo entre o superlativo e desarroado culto a este escritor chileno. Como leitor compulsivo, li tudo que foi traduzido por aqui de Bolaño, e confesso que o único volume que me fez dizer “é, este aqui é de arrepiar”, foi Noturno do Chile, embora já descobrisse um certo tom forçado que pretendia no silêncio da leitura trazê-la para as altitudes inalcançáveis dos comentários e críticas da imprensa superficial_ até a do arroz de festa aos escritores periféricos que foi Susan Sontag. Detetives foi um dos maiores baldes de água fria de minha carreira de leitor; quando finalmente o tive em minhas mãos frenéticas, estava espiritualmente motivado para ler algo do calibre de O Jogo da Amarelinha, ou O Senhor Presidente, e na decepção diante esse belo bolo oco encontrei sugestões talentosas da geração beat, e só!_ o que deveria ter sido afirmado pela mídia, para diminuir o anti-clímax.A verdade é que a nossa orfandade de uma literatura hispano-americana brilhante,cujo tempo de vida foi de 1950 até 1983 (ano de seu sepultamento, com a última produção relevante de García Márquez), nos faz querermos enxergar em fogos-fátuos um novo advento literário, sendo que mesmo o Manuel Scorza (se lembra!), o mais esquecido e mortal dos criadores da geração do boom latino-americano, é bem superior ao Bolaño. Para se medir o nível do culto compulsivo pela imprensa ao Bolaño, basta mencionar um artigo da Carta Capital, em que aponta o chileno como um poderoso adstringente contra escritores de segunda ( no herético parecer do colunista) como Saramago(!) e Orhan Pamuk (um que também não me fez acender nenhum click ao ler Neve, mas que parece estar querendo se redimir com O Livro Negro,que atualmente estou destrinchando). A verdade, mais uma vez, é que em relação ao Bolaño vale a máxima do Millor, da orelha do livro ser sempre melhor que o livro, embora tudo o que li sobre Sebald e Cees Nooteboom, não chega a um décimo de tudo que li de Sebald e Nooteboom. Um abraço!

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