Livro curioso que minha filha me deu de Dia dos Pais de 2005. É um calhamaço de 464 páginas com um ensaio de Janet Malcolm nas primeiras 176, seguidos de 37 contos do autor russo, traduzidos por Tatiana Belinky. É um excelente e bem bolado livro.
Já o ensaio de Janet Malcolm é mais bem bolado do que bem realizado. É uma grande idéia. A autora realiza uma viagem à vida do autor, isto é, visita as casas, os hotéis e os sanatórios onde viveu. Faltou a fundamental viagem à Sacalina – quase uma autopunição — e alguns locais citados pela autora. E o problema do livro está aí. Janet é uma tia que, ao lado de observações muito interessantes, traz-nos um certo ranço de irritante senso comum. Tudo o que ela vê e conta é interessante, até a pequena biografia de seus guias é interessante, mas a autora insiste em se colocar na narrativa e ela não é interessante, é apenas uma nova-iorquina um tantinho tola. Ao lado de explicações sobre como Tchekov vivia, ao lado do belo relato que faz das várias versões para as mortes do autor, há alguém que fica colocando pequenas críticas aos russos atuais, soviéticos e czaristas. Ora, é meio bobo tecer reparos a contextos tão diversos, sem procurar minimamente entender que aquela é outra cultura a que talvez seu país não seja exatamente um modelo de perfeição. O problema de Janet Malcolm é que ela teve acesso a um grande tesouro, mas parece descrevê-lo para um grupo de senhoras em torno de uma mesa de chá. O retrato de Olga Knipper, por exemplo, é decididamente fraco, porém logo depois a autora nos surpreende ao fazer a ligação entre um ambiente e seus contos correspondentes e o livro fica como deveria ser sempre. Um dia, espero receber uma bolsa para viajar refazendo a existência de um autor… Pode ser muito turístico e instrutivo, não acham? Pensei em várias possibilidades agora, mas acho que ganharia a de Jack London, só para passar bastante frio. Machado não teria muito movimento, já Guimarães Rosa e João Cabral poderiam ser legais, né? Hum… fantasio inutilmente. Adiante!
Os 37 contos que acompanham o ensaio são brilhantemente traduzidos do russo por Tatiana Belinky, uma russa que vive há décadas no Brasil e é excelente autora de livros infantis, são infinitamente maiores, claro. Tatiana… Li muitos de seus livros para meus filhos e, puxa, ela seria a pessoa perfeita para substituir Janet na tarefa de fazer a viagem à Rússia tchekovniana. É uma pessoa cheia de vida e humor. Sinto-a como alguém que me seria extremamente agradável. Seu afeto seria adequado a Tchekov, mas, enfim, vocês sabem: como dizia ontem, nossas oportunidades e nossa cultura vê-se privada por falta de idéias, interesse, dinheiro, cultura, etc. Alguns contos me trouxeram surpresas, claro. Não lembrava de dois contos especialmente raivosos: A Duquesa e A Aposta, ambos boníssimos, assim como do belo Do Amor. A Corista e Angústia – de desamparo verdadeiramente acabrunhante — foram magnificamente traduzidos e Amorzinho (também conhecido como O Coração de Olenka, Meu Docinho, Doçura e em Portugal por Dô-Doce) parece-me imbatível e, mesmo conhecendo a história de trás para a frente, o conto voltou a me emocionar como quando o li pela primeira vez.
No final das contas, um bom livro.
Meu caro, não vinha aqui há anos. Azar o meu, não é? Devo ter perdido textos seus, como esse, que provam que você continua afiado. Afiadíssimo. abçs
Tu tinhas fechado teu blog, certo?
Que bom que voltaste. Gosto muitíssimo e tinha autêntica saudade de teus textos, Ilídio.
Indo lá.
Li esse livro há um tempo atrás, e senti um certo estranhamento com o texto de Janet Malcolm, como você localiza tao bem. Mas nao deixa de ser interessante, nao é? Que essa senhorinha tenha sido capaz de ir à Rússia atrás dessa miragem fascinante de um sofrido Tchekov; que tenha contado a história do que viu por lá com as lentes de que dispunha; que ela seja a antípoda do mundo por vezes sombrio de Tchekov, e assim mesmo sofra o fascínio que emana de seus contos e dramas. Como é que um leitor brasileiro contaria essa história?
De minha parte, devo lhe dizer, os contos de Tchekov (com o teatro é um pouco diferente) me dao um pouco de medo – medo de gente, e do que uns fazem com os outros. Há sempre, sempre a possibilidade de ferir. E como ele sabia bem disso.
Quando a ente conversa sobre Tchekov é que se nota sua grandeza.
Cada um gosta de algo diferente, até porque há vários Tchekov: o bom piadista do começo de carreira, as peças, os contos, as novelas e o todo.
Mas, em resumo, eu não o acho deprimente, acho-o muito realista e corajoso — note sua época.
Abraços.
Qualquer pessoa sabe que não basta amar um escritor para escrever algo de relevante sobre ele, ainda mais se você tem compromissos ideológicos que opõe o tempo do escritor com o tempo de sua viagem até as lembranças dele, quando ele não está mais lá, mas você e as coisas como são atualmente, não havendo mais o mundo como observado nas amadas obras, quando muito resquícios, ou mais extensamente a língua, esta falada de outra maneira, adaptada a outros contextos.
Para irritar os puristas, mais uma vez, comento sobre a mensagem do Milton, não sobre o livro da Janet, que não li.
Pelo pós-narrativa dele, portanto, vislumbro a velhinha que aprendeu a amar Tchekov talvez sob um prisma exageradamente sentimental; sua nostalgia a impede de reconhecer, na Rússia que ela conheceu, a outra Rússia, conforme vista pelo autor através dos personagens e tramas que desenvolveu. Fica a lamentar, chorosa, tentada a dizer que Jack London, se vivo, ainda reconheceria a América de hoje, e melhor, sem aqueles desmandos e pobreza de um país ainda longe de seu poderio… atual, ainda. Tchekov, para ela, veria a Rússia de hoje com desgosto (o que não alteraria grande coisa, pois assim ele via a Rússia de seu tempo), triste por reconhecer nela não propriamente o mundo que descreveu, mas o que Gogol pintou com suas cores mais fortes, porém não menos exatas.
Um digressão: há um problema aí, pois nenhum escritor nos oferece um retrato pronto e acabado de um país, de uma classe ou mesmo de uma só pessoa. Talvez dona Janet tenha um escritor como um profundo conhecedor da alma humana, quando ele tenta, no máximo, ser um conhecedor de algo que ele tateia para realizar, uma obra literária, e, através dele, arranjar dentro de si e para os leitores uns rascunhos acerca das vidas vividas e das histórias totalizadas por teorias.
Uma virtude nada oculta do livro, à parte as boas passagens apontadas no texto acima, são os contos, que valem à parte de toda discussão. Uns amam Tchekov, outros o consideram deprimente (em partiucular as obras de teatro e contos mais recentes, não os primeiros, mais humorísticos e até telúricos). ainda não conheci que o odeie ou classifiquem-no como irrelevante. De alguma maneira, ele pôs não apenas a Rússia, mas traços bem finos de toda a humanidade, em especial quando as máquinas ainda não eram partes de nossos corpos e, agora, de nossas mentes. Resultam desses traços finos, talvez, um quadro esmaecido, a exigir esforço de nossos olhos para perceber, neles, alguma coisa. Que há, isso dona Janet percebe, mas o tempo toldou-lhe a consciência, que se aproveita para forçar observações ferinas sobre as camadas soviéticas postas sobre os ombros de Tchekov. Como se ele não as suportasse bem, até melhor do que suportaria hoje, podemos apenas supor, o poder nada sutil dos EUA sobre a Rússia de Putin, cão que rosna, mas só quando o dono aponta a direção do inimigo. Morder, só a própria gente. Mas como morde!
Curiosamente, o comentário do José Pires esclarece algo sobre uma outra Janet Malcolm. Gostaria de lê-la escrevendo sobre Plath.
Os traços finos, os quadros esmaecidos de Tchekov… Detesto escritores que explicam coisas. Ele raramente faz isso. O que eu gosto em Tchekov é, principalmente, a alusão a outras camadas de experiência. E a outras e outras.
Nunca é a verdade, mas é o mais próximo dela.
Janet Malcolm tem outros dois livros editados no Brasil — “O Jornalista e o Assassino” e “A Mulher Calada”. Os dois me pareceram melhores que este que você resenha. No primeiro ela faz uma interessante discussão sobre o jornalismo. É um assunto sempre atual. Para quem anda vendo por detrás de cada linha (ou entrelinha, tanto faz) dos jornais e revistas uma grande conspiração, é uma boa leitura para ver que não é exatamente este o funcionamento da coisa.
O segundo livro é sobre Sylvia Plath, a controvertida vida da poeta que acabou se matando, vista de um ângulo bem interessante. Janet Malcolm analisa as biografias e os relatos pessoais de quem foi próximo de Sylvia Plath em vida. Claro que o libro é também sobre Ted Hughes, o ex-marido da poeta.
É uma discussão que mexe com a gente. Quem já foi descasado sabe como é difícil conviver com a visão das outras pessoas sobre o casamento fracassado. Imagine se a sua ex-mulher depois do final do caso tivesse colocado a cabeça dentro do forno e aberto o gás.
Achei este último livro uma preciosidade. Não sei se você leu, mas me parece que esses dois livros, principalmente o último, mostram que ela pode ser até uma tia, mas tola é que não é.
Janet Malcom, sem querer ofender, adora uma metalinguagem. Mas não funcionou perfeitamente com o mundo de Tchekov
No livro sobre Tchekov ela realmente dá importância a assuntos bem tolos que acabam atrapalhando bastante o texto. Ela sofre principalmente do defeito bem norte-americano de ver altos significados em pessoas idiotas só pelo fato destas terem estado próximas a acontecimentos importantes.
Quanto à Tatiana Belinky, você está coberto, mas bem coberto mesmo, de razão.
Quanto à bolsa para refazer a existência de um autor, fico com Murilo Mendes. E toca pra Itália. E como, pelo que se sabe, ele fazia pouco mais por lá que ver quadros e ouvir música, a gente faz o sacrifício.
Belo comentário, José.
Olha, me interessei sobre este livro da Plath. Não conhecia e posso rever meus conceitos acerca da titia, claro. Afinal, já fui bem desacasado e deprimido e depauperado.
Murilo Mendes… Mas que grande ideia!!!
Grande abraço.
Milton, sua idéia de perfazer o itinerário da vida de um escritor está no “Extinção”, e como tu lembras, a impressão do narrador foi de arrependimento, pois os cenários prosaicos em vários cantos do mundo jamais retratavam os mesmos cenários vistos pelo mundo interior do autor (pô, que frase mais truncada; espero que não me chamem para um reality show).
Mas, se insistires neste intento, e a Justiça lhe deixar uma nesguinha que, com muitos conselhos do Mailson e do Delfim, você possa transformá-la em um rendimento suficiente nos próximos quinze anos, aconselho algo realmente visceral, que compense o investimento. Talvez o Amós Óz, para apreciares os kibúts paradisíacos, os festivos mísseis h5 voando de uma fronteira para outra, caindo numa sucessão de gritos de euforia; ou o Lobo Antunes, a sua chance de ver de perto aqueles colares fashions feitos da mais cara orelha congolesa; ou o Primo Levi, tendo a chance única de poder defender numa roda de cerveja com os amigos o acolhimento inesquecível de uma das beliches comunais de um campo de Treblinka; ou o Naipaul_ que bom se juntar a uma calorosa família indiana no caribe blue de Trinidad Y Tobago, com a possibilidade real de se envolver com uma das quinze filhas casadouras da matriarca, nem um pouco bonita mas cujo exótico temperamento dominador compensa essas superfluas deficiências burguesas. Ou, então, algo mais em conta, como transitar pelos morros da Cidade de Deus do Paulo Lins, fazendo a cabeça e enriquecendo o vocabulário ( qual a parada mano?), ou a Bruna Surfistinha, o que podemos parar por aqui.
Falando em Bernhard, tem lançamento novo dele na praça: os contos curtos de “O Imitador de Vozes”.
Charlles, tu queres acabar de vez comigo?
Um passeio por Primo Levi pode ser muito instrutivo, ATUALMENTE. E o de Lobo Antunes também me interessa… Sério.