Anticristo, de Lars von Trier

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Uma das palavras mais erroneamente utilizadas no Brasil é “anacronismo”. Usa-se muitas vezes para significar ruim. Porém, se crônico significa de acordo com Cronos, ou de acordo com nosso tempo, anacrônico é “em desacordo com nosso tempo”. Pois Lars von Trier é anacrônico no sentido que ainda faz um cinema com as preocupações que havia no cinema de algumas décadas atrás. Anticristo é um filme que permite tantas e tão ricas interpretações que, ao conversar com duas pessoas bastante inteligentes, tive que confrontar o que vi com outros dois filmes. O anacronismo de von Trier é mérito.

Mergulhei de tal modo no mundo de luto de Anticristo que não pude perceber a óbvia relação com o cinema de Andrei Tarkovsky. Ao acordar do transe, a primeira coisa que vi foi a dedicatória de von Trier: “This film is dedicated to Andrei Tarkovsky (1932-1986)”. E, consequentemente, é dedicado também a Bergman e Strindberg, se trilharmos em sentido anticronológico a linha que une os artistas que melhor mostraram sonhos em filmes e peças de teatro. Pois eu vi o filme de uma forma muito estética, relacionando tudo com sonhos e sua relação com a realidade. O apuro visual que me levou a isso descende claramente de Stalker e de Andrei Rublev (final). Porém, se em Tarkovski havia desengano, na história contada por von Trier traz-nos horror e desespero.

Anticristo talvez não seja filme de se rever. Às vezes, tive vontade de fugir dele, tal a crueza de algumas cenas. Houve uma em especial que “vi de olhos fechados” ou, para ser mais claro, espreitei o horror entre meus cílios. Na verdade, acho que não desejamos que ele vá tão longe, mas von Trier está resolvido a mostrar um luto e obtém cenas semelhantes a meu horror ao despedir-me de meu pai num quente 11 de dezembro e sentir que ele estava frio como nunca. O luto da mãe que não vê seu filho despencar pela janela enquanto mantinha relações sexuais com o marido deve ser enlouquecedor e é. A cena inicial e final são belíssimas e a ária de Handel “Lascia la Spina” é perfeita tanto para o luto que chega quanto para aquele que se vai:

Lascia la spina
cogli la rosa;
tu vai cercando
il tuo dolor.

Ou, em ridícula tradução de Milton Ribeiro:

Deixa o espinho
Colhe a rosa;
tu vais buscando
tua dor.

Von Trier não desvia da dor. Se o filme descende de Tarkovski, o cineasta que filmava como sonhava, Anticristo tem igualmente o gosto dos pesadelos com seus terríveis exageros verossímeis — aliás, a mãe brinca sobre Freud e os sonhos. Deste modo, não dei tanta importância à literalidade da história contada, mas a sua capacidade de produzir dor. E nisto von Trier caprichou… Apoiado em dois atores não menos que geniais — Willem Dafoe, com seu rosto naturalmente cortado a machado, e Charlotte Gainsbourg, cortado a estilete — , a narração entremeia cenas de indiscutível verossilhança com outras que mais parecem ter saído de um conto de fadas, para o bem e para o mal. Tudo muito bem pensado, tudo muito inteligente, muito dolorido e demasiado anacrônico para nosso tempo bestinha.

O que me passou batido: uma de minhas interlocutoras (minha amiga Lia Zanini) viu um filme diferente. Ela tem toda a razão ao dizer que já havia loucura antes da morte do menino. Há “provas” disso. Sim, a questão dos sapatos e a opinião do psiquiatra que falava num “luto atípico”. Ela baseou o que viu na loucura. Dou o braço a torcer em muitas coisas, mas não aceito a literalidade de cenas como aquela em que a mãe vê o menino cair. Em minha opinião, aquilo é sonho ou delírio.

O curioso é que nossa discussão foi em parte assistida por outra amiga, Vera Medeiros. Ao ouvir o que dizíamos, ela relacionou a história à questões mitológicas e religiosas, o que também é verdadeiro. Afinal, von Trier apresenta um filme cheio de referências bíblicas, como se Adão e Eva voltassem novamente solitários a uma floresta não por acaso chamada Éden. A mitologia? Ora, Édipo significa “pés inchados”. E se recontarmos parte da história de Édipo acabaremos por revê-la em Anticristo:

Apesar de um oráculo ter anunciado que, se nascesse deste casamento, o filho o mataria, Laio tornou-se pai de um menino. Para fugir à predição, Laio — após perfurar os pés do filho (daí Édipo = pés inchados) e amarrá-lo — ordena a Jocasta dar a criança a um pastor, que deveria abandoná-la no monte Citéron, para morrer. O pastor, entretanto, não cumpre a tarefa. Apiedado, entregou o menino a um outro pastor, condutor dos rebanhos de Pôlibo, rei de Corinto, ás pastagens de Citéron.

O Dafoe pastor do final do filme, a perfuração, o fato de ele ter sido abandonado para morrer. Tudo são variações: Tarkovsky, sonhos, loucura, Freud, religião, mitologia… E a maioria das pessoas vendo um filme que é apenas incomum e nojento em sua visceralidade. Que época burra.

Veja a galeria de fotos de Anticristo do J`adore le Cinéma

A citação da história de Édipo, foi retirada daqui.

-=-=-=-=-=-=-

O comentário de Victor Hugo Lisboa é muito superior a meu post. Por isso, trago-o para cá:

Ô Milton! Sabe que eu não esperava nada desse filme? Só baixei uma cópia da internet pois fiquei curioso com a repercussão em Cannes. Como o trabalho de Lars tem seus altos (Festa de Família) e baixos (Dançando do Escuro), assisti Anticristo no meu notebook, sem grandes expectativas, temendo que nem valesse o ingresso do cinema.

E o que eu achei?

Cara, é uma Obra de Arte Fodástica, com “O”, “A” e “F” maiúsculos.

Quando, finalmente, estreou nos cinemas de Porto Alegre, decidi assistir Anticristo pela segunda vez. Toda aquela perfeição estética exigia o integral mergulho propiciado por uma sala escura e a telona. Ah, e eu também queria ver a cara do público no final.

Como toda Obra de Arte Fodástica, claro que Anticristo é suscetível à vários níveis de interpretação. Porém, minha opinião subjetivíssima é de que o filme consiste em uma alegoria tarkovskiana com fortes tons psicanalíticos (eu, pobre diabo, rejeitei e ridicularizei a psicanálise durante anos, mas hoje reconheço que era puro preconceito e ignorância da minha parte – coisa de guri, em suma; só depois de “velho” abandonei minha arrogância juvenil e reconheci o quanto há de verdade nas lições de Lacan e Freud).

Seguem, abaixo, anotações que fiz no dia seguinte à primeira vez que assisti ao Anticristo. São registros fragmentados e despretensiosos. Não recomendo que sejam lidos por quem ainda não viu o filme, e previno que não estou afirmando ser essa a única interpretação da obra de Lars. Mas, se não é a interpretação definitiva, ao menos é “beno trovato”.

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O filme foi acusado de ser misógino e contrário ao mundo natural, pois Lars teria afirmado, através de sua obra, que a mulher e a natureza são a fonte de todo o mal. É uma interpretação apressada. Na verdade, o filme é a alegoria de um homem que foi forçado a abandonar uma visão infantil, ingênua, da vida. Sua perspectiva idílica e idealizada do mundo e da mulher não mais se sustentou, mas ele ainda era incapaz de atingir a perfeita maturidade de aceitar as coisas tal como são, de modo que, em reação instintiva, fez um movimento pendular e agarrou-se a uma outra visão, também infantil e ingênua, da natureza e da feminilidade: a visão que as pinta com tintas negras, demoníacas – como a fonte de todo mal, em suma. Não é algo incomum. Basta lembrar que até hoje algumas tradições fundamentalistas ainda tratam a mulher e o mundo natural como espúrios. E mesmo nós, ocidentais, durante toda a Idade Média, associamos a natureza e a mulher ao demônio.

Um detalhe que quase ninguém reparou é que, quando o casal está trepando no banheiro, logo no início do filme, acabam por derrubar um livro infantil, onde há a figura de três animaisinhos em uma floresta retratada de modo ingênuo. Esses três animais, posteriormente, retornarão como verdadeiras criaturas diabólicas, terríveis, que sentenciam o caráter caótico da vida e denunciam o homem à mulher enfurecida. Por outro lado um desses animais “diabólicos” acaba por libertar esse mesmo homem mais tarde, revelando-lhe a chave inglesa escondida pela mulher, em retribuição pelo fato de o homem ter quebrado o piso da cabana, deixando que ele entre. Na última parte de Anticristo, o homem e os três animais olham-se como iguais, sem ressentimento, medo ou ódio.

É justo disso que fala o filme de Lars: do processo no qual o homem acabou de sair da visão idealizada da natureza do mundo, reagiu ao trauma considerando a vida natural como algo diabólico, e superou essa mesma reação imatura, por meio de um processo no qual teve de eliminar aquela imagem “adoecida”, incinerando-a.

*****************************

O filme também não é misógino, pela simples razão de que ele não aborda, em nenhum momento, a situação da verdadeira mulher: a mulher ali representada é a mulher interna do homem, a mulher psicológica, imaginária. A esposa assume integralmente seu papel de arquétipo quando afirma que as mulheres foram perseguidas e oprimidas pelos homens durante séculos porque realmente eram malignas: nesse momento é o complexo psicológico do próprio homem que lhe fala.

Sob esse ponto de vista, a obra de Lars é justo o contrário daquilo de que é acusada. Anticristo descreve a confusão masculina entre essa figura arquetípica e a mulher real que causa o “ginocídio” histórico, evidenciando o aspecto psicológico que há por trás das castrações de meninas no Egito e das milhares de bruxas queimadas pela Santa Inquisição. Enquanto um homem não souber distinguir entre as mulheres reais e as personagens que fantasmagorizam sua mente, jamais terá um relacionamento saudável até mesmo consigo próprio. No filme processo de superação dessa imagem psíquica já começa quando o próprio complexo maternal castra a si mesmo.

*****************************

O filho e o marido são a mesma pessoa: um complexo criança-homem. O filho observa a cópula do casal: descobre que a mãe não lhe pertence, que sua mãe o “trai” com o pai. Isso é um tema recorrente na psicanálise e, com certeza, Lars não estava alheio a esse tema, principalmente tendo em vista a profissão escolhida para seu personagem. Por isso, o menino morre: a ilusão da infância acabou, a sexualidade “promíscua” daquela mãe que considerava só sua introduz em seu mundo uma realidade complexa e dúbia, que mata a infância. Há um verdadeiro suicídio após testemunhar a relação sexual dos pais. A partir daí, há um homem que se refugia na estrita racionalidade, tentando lidar com o “problema” que é a mulher (ainda é um problema para ele, pois a figura materna ambivalente, opressora e sedutora, ainda não foi trabalhada) de forma fria e distanciada, com diagramas e palavras de ordem. Porém, logo afoga-se no seu ódio e medo da figura feminina, sentimentos decorrentes da ambivalência do desejo.

Observe-se que, após a morte do filho, é sempre a mulher que procura o sexo, de uma forma brusca, agressiva e, porque não dizer, “ativa”: novamente se percebe que se trata de uma mulher “masculinizada” em sua agressividade sexual – o complexo mal resolvido da mãe promíscua. A cópula é associada à morte.

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A mulher revela sua dificuldade de aceitar que os homens de sua vida se afastem, como quando coloca os sapatos nos pés trocados do filho e prende um peso à perna do marido. Quando o marido se arrasta para longe da cabana com o pênis ferido e a perna perfurada, a fim de proteger-se de mais torturas e morte, o discurso da mulher é o de vítima, de alguém que foi abandonada injustamente pelo seu homem. Por instinto, até hoje muitas mulheres sabem que esse discurso do “Bastard, where are you?” toca em alguns nervos psíquicos de todo homem, e utilizam-no. Como resposta, muitos homens secretamente desejariam colocar na fogueira quem assim atua.

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Quando o homem tem, em meio à dor e à loucura circundante, um lampejo de objetividade e racionalidade, e observa que a constelação dos Três Mendigos não existe realmente, ele estabelece o limite claro entre o real e o imaginário: é o marco entre o estado de criança e o estado de adulto. Não é por outro motivo que, logo após essa percepção, seguida do grito da mulher, surge o pássaro de baixo da casa, revelando-lhe o exato lugar onde está a “chave” para libertar-se do peso em sua perna.

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O homem entra no buraco, a mulher o enterra. Para que o homem escape do pesadelo em que lida com o complexo maternal, deve ir a fundo no horror: deve deixar-se matar, sufocar-se no útero da Terra, para que assim morram os resíduos da psicologia infantil que há nele. A fuga nunca é a solução. Em qualquer doutrina franca sobre a condição humana, de Lacan a Pema Chodron, a solução é sempre aceitar o medo e abraçar o horror sem julgamento.

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Os três mendigos não existem, de fato, como constelação, mas existem na Poesia: “the three beggars” é um poema de William Butler Yeats. Os três mendigos, aliás, já estão presente no início do filme, na forma de três estatuetas sobre a mesa que a criança usa para “suicidar-se” após ver a trepada dos pais.

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Na cena em que a mulher descobre que está ouvindo o choro de toda a Criação, e não da criança, ela tem a súbita percepção de que há algo de profundamente errado naquele universo. O horror passa a ser reconhecido. Enquanto escuta o choro universal, a mulher contempla seu filho segurando um pedaço de madeira junto aos instrumentos de carpintaria de seu pai (fato digno de nota: alusão ao menino Jesus?). Mais tarde, seria também com o mesmo pedaço de madeira que a mulher infligiria ao homem sua ferida genital.

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O horror representado pelos três mendigos (dor, depressão e desespero), o choro universal da natureza e as feridas na perna e nos testículos não podem ser evitadas: a “ferida narcísica” (alô Freud) deve ser vivenciada e aceita como tal. A cura está em compreende-los e aceitá-los sem reações de rejeição ou cegueira idílica. Tecnicamente, o discurso psicanalítico do homem no início do filme está absolutamente certo: o equívoco do espectador é achar que ele fala com a mulher, quando aquilo tudo diz respeito a ele próprio e a um processo que irá vivenciar em breve. Trata-se de um processo de superação da criança, com a difícil passagem para o mundo adulto.

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O homem mata a mulher e a queima. Subitamente, a natureza não é mais tão ameaçadora, pois sobrevive consumindo frustas silvestres. Na última parte, ele volta-se e encara os três animais, representantes das misérias humanas, e essas figuras míticas devolvem-lhe o olhar sem ameça e sem medo – um momento de reconhecimento, que antecede a última cena do filme, e que lhe é o pressuposto: nesse instante, não há recriminação, não há julgamento, não há rejeição. Aceitar a condição humana sem debater-se numa reação infantil de recusa cega ou de demonização do mundo é o primeiro passo para a maturidade.

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Na última cena do filme, mulheres sobem a montanha e passam pelo homem sem percebê-lo, desprovidas de rosto. Esse é o momento de redenção, em que o homem já não projeta no elemento feminino todos os seus traumas. As mulheres já não possuem rosto, ou seja, estão livres da projeção. As mulheres não interagem com ele, não representam ameaça nem provocam uma atração perturbadora, anormal. Está aberta a porta para que o homem lide com as mulheres reais tal como são: seres humanos.

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47 comments / Add your comment below

  1. Não assiti a esse filme e… não gosto dos anteriores de Trier. Talvez ainda o assita, não sei. Desconfio que as referências mítico-religiosas servem como um verniz culto sobreposto a paranóia banal, dum sujeito que cultiva medos em sua estufa mental. Identifique-se aí uma fórmula para enganar trouxas cultos: misturar mitos gregos com cristãos, psicanálise e contos de fada, sagas familiares e imagens de horror que se tornaram distintivas no cinema, enfim, um jeito erudito de ser Tarantino, e assim podemos gostar de ambos, o mestre da cultura pop (ou dos sincronismos) e o mestre dos anacronismos. Pobre Tarkovski, servir de álibi para Trier… À parte tudo isso, meu desprezo pela psicanálise faz o resto do trabalho e me exime, afinal, de mergulhar nessas nórdicas dores.

    1. “Identifique-se aí uma fórmula para enganar trouxas cultos”, não. Não vi isto, vi um filme e uma homenagem a Tarkovski muito consistentes, Marcos.

      Von Trier é muito de marketing, mas é excelente diretor.

      1. Bem, como queira… mas depois da caixinha de ferramentas freudiano, certamente não verei o filme. Aliás, se queres estragar com qualquer obra de arte utilize categorias e jargões correspondentes oriundos das teorias freudianas. É batata.

    2. O modo como o narcisismo se perpetua após sua etapa primária e como se manifesta em novos contornos é mesmo um mistério. Essas “amarras”…suas “nórdicas dores” como resultantes…como somos arrogantes…

  2. Ô Milton! Sabe que eu não esperava nada desse filme? Só baixei uma cópia da internet pois fiquei curioso com a repercussão em Cannes. Como o trabalho de Lars tem seus altos (Festa de Família) e baixos (Dançando do Escuro), assisti Anticristo no meu notebook, sem grandes expectativas, temendo que nem valesse o ingresso do cinema.

    E o que eu achei?

    Cara, é uma Obra de Arte Fodástica, com “O”, “A” e “F” maiúsculos.

    Quando, finalmente, estreou nos cinemas de Porto Alegre, decidi assistir Anticristo pela segunda vez. Toda aquela perfeição estética exigia o integral mergulho propiciado por uma sala escura e a telona. Ah, e eu também queria ver a cara do público no final.

    Como toda Obra de Arte Fodástica, claro que Anticristo é suscetível à vários níveis de interpretação. Porém, minha opinião subjetivíssima é de que o filme consiste em uma alegoria tarkovskiana com fortes tons psicanalíticos (eu, pobre diabo, rejeitei e ridicularizei a psicanálise durante anos, mas hoje reconheço que era puro preconceito e ignorância da minha parte – coisa de guri, em suma; só depois de “velho” abandonei minha arrogância juvenil e reconheci o quanto há de verdade nas lições de Lacan e Freud).

    Seguem, abaixo, anotações que fiz no dia seguinte à primeira vez que assisti ao Anticristo. São registros fragmentados e despretensiosos. Não recomendo que sejam lidos por quem ainda não viu o filme, e previno que não estou afirmando ser essa a única interpretação da obra de Lars. Mas, se não é a interpretação definitiva, ao menos é “beno trovato”.

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    O filme foi acusado de ser misógino e contrário ao mundo natural, pois Lars teria afirmado, através de sua obra, que a mulher e a natureza são a fonte de todo o mal. É uma interpretação apressada. Na verdade, o filme é a alegoria de um homem que foi forçado a abandonar uma visão infantil, ingênua, da vida. Sua perspectiva idílica e idealizada do mundo e da mulher não mais se sustentou, mas ele ainda era incapaz de atingir a perfeita maturidade de aceitar as coisas tal como são, de modo que, em reação instintiva, fez um movimento pendular e agarrou-se a uma outra visão, também infantil e ingênua, da natureza e da feminilidade: a visão que as pinta com tintas negras, demoníacas – como a fonte de todo mal, em suma. Não é algo incomum. Basta lembrar que até hoje algumas tradições fundamentalistas ainda tratam a mulher e o mundo natural como espúrios. E mesmo nós, ocidentais, durante toda a Idade Média, associamos a natureza e a mulher ao demônio.

    Um detalhe que quase ninguém reparou é que, quando o casal está trepando no banheiro, logo no início do filme, acabam por derrubar um livro infantil, onde há a figura de três animaisinhos em uma floresta retratada de modo ingênuo. Esses três animais, posteriormente, retornarão como verdadeiras criaturas diabólicas, terríveis, que sentenciam o caráter caótico da vida e denunciam o homem à mulher enfurecida. Por outro lado um desses animais “diabólicos” acaba por libertar esse mesmo homem mais tarde, revelando-lhe a chave inglesa escondida pela mulher, em retribuição pelo fato de o homem ter quebrado o piso da cabana, deixando que ele entre. Na última parte de Anticristo, o homem e os três animais olham-se como iguais, sem ressentimento, medo ou ódio.

    É justo disso que fala o filme de Lars: do processo no qual o homem acabou de sair da visão idealizada da natureza do mundo, reagiu ao trauma considerando a vida natural como algo diabólico, e superou essa mesma reação imatura, por meio de um processo no qual teve de eliminar aquela imagem “adoecida”, incinerando-a.

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    O filme também não é misógino, pela simples razão de que ele não aborda, em nenhum momento, a situação da verdadeira mulher: a mulher ali representada é a mulher interna do homem, a mulher psicológica, imaginária. A esposa assume integralmente seu papel de arquétipo quando afirma que as mulheres foram perseguidas e oprimidas pelos homens durante séculos porque realmente eram malignas: nesse momento é o complexo psicológico do próprio homem que lhe fala.

    Sob esse ponto de vista, a obra de Lars é justo o contrário daquilo de que é acusada. Anticristo descreve a confusão masculina entre essa figura arquetípica e a mulher real que causa o “ginocídio” histórico, evidenciando o aspecto psicológico que há por trás das castrações de meninas no Egito e das milhares de bruxas queimadas pela Santa Inquisição. Enquanto um homem não souber distinguir entre as mulheres reais e as personagens que fantasmagorizam sua mente, jamais terá um relacionamento saudável até mesmo consigo próprio. No filme processo de superação dessa imagem psíquica já começa quando o próprio complexo maternal castra a si mesmo.

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    O filho e o marido são a mesma pessoa: um complexo criança-homem. O filho observa a cópula do casal: descobre que a mãe não lhe pertence, que sua mãe o “trai” com o pai. Isso é um tema recorrente na psicanálise e, com certeza, Lars não estava alheio a esse tema, principalmente tendo em vista a profissão escolhida para seu personagem. Por isso, o menino morre: a ilusão da infância acabou, a sexualidade “promíscua” daquela mãe que considerava só sua introduz em seu mundo uma realidade complexa e dúbia, que mata a infância. Há um verdadeiro suicídio após testemunhar a relação sexual dos pais. A partir daí, há um homem que se refugia na estrita racionalidade, tentando lidar com o “problema” que é a mulher (ainda é um problema para ele, pois a figura materna ambivalente, opressora e sedutora, ainda não foi trabalhada) de forma fria e distanciada, com diagramas e palavras de ordem. Porém, logo afoga-se no seu ódio e medo da figura feminina, sentimentos decorrentes da ambivalência do desejo.

    Observe-se que, após a morte do filho, é sempre a mulher que procura o sexo, de uma forma brusca, agressiva e, porque não dizer, “ativa”: novamente se percebe que se trata de uma mulher “masculinizada” em sua agressividade sexual – o complexo mal resolvido da mãe promíscua. A cópula é associada à morte.

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    A mulher revela sua dificuldade de aceitar que os homens de sua vida se afastem, como quando coloca os sapatos nos pés trocados do filho e prende um peso à perna do marido. Quando o marido se arrasta para longe da cabana com o pênis ferido e a perna perfurada, a fim de proteger-se de mais torturas e morte, o discurso da mulher é o de vítima, de alguém que foi abandonada injustamente pelo seu homem. Por instinto, até hoje muitas mulheres sabem que esse discurso do “Bastard, where are you?” toca em alguns nervos psíquicos de todo homem, e utilizam-no. Como resposta, muitos homens secretamente desejariam colocar na fogueira quem assim atua.

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    Quando o homem tem, em meio à dor e à loucura circundante, um lampejo de objetividade e racionalidade, e observa que a constelação dos Três Mendigos não existe realmente, ele estabelece o limite claro entre o real e o imaginário: é o marco entre o estado de criança e o estado de adulto. Não é por outro motivo que, logo após essa percepção, seguida do grito da mulher, surge o pássaro de baixo da casa, revelando-lhe o exato lugar onde está a “chave” para libertar-se do peso em sua perna.

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    O homem entra no buraco, a mulher o enterra. Para que o homem escape do pesadelo em que lida com o complexo maternal, deve ir a fundo no horror: deve deixar-se matar, sufocar-se no útero da Terra, para que assim morram os resíduos da psicologia infantil que há nele. A fuga nunca é a solução. Em qualquer doutrina franca sobre a condição humana, de Lacan a Pema Chodron, a solução é sempre aceitar o medo e abraçar o horror sem julgamento.

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    Os três mendigos não existem, de fato, como constelação, mas existem na Poesia: “the three beggars” é um poema de William Butler Yeats. Os três mendigos, aliás, já estão presente no início do filme, na forma de três estatuetas sobre a mesa que a criança usa para “suicidar-se” após ver a trepada dos pais.

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    Na cena em que a mulher descobre que está ouvindo o choro de toda a Criação, e não da criança, ela tem a súbita percepção de que há algo de profundamente errado naquele universo. O horror passa a ser reconhecido. Enquanto escuta o choro universal, a mulher contempla seu filho segurando um pedaço de madeira junto aos instrumentos de carpintaria de seu pai (fato digno de nota: alusão ao menino Jesus?). Mais tarde, seria também com o mesmo pedaço de madeira que a mulher infligiria ao homem sua ferida genital.

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    O horror representado pelos três mendigos (dor, depressão e desespero), o choro universal da natureza e as feridas na perna e nos testículos não podem ser evitadas: a “ferida narcísica” (alô Freud) deve ser vivenciada e aceita como tal. A cura está em compreende-los e aceitá-los sem reações de rejeição ou cegueira idílica. Tecnicamente, o discurso psicanalítico do homem no início do filme está absolutamente certo: o equívoco do espectador é achar que ele fala com a mulher, quando aquilo tudo diz respeito a ele próprio e a um processo que irá vivenciar em breve. Trata-se de um processo de superação da criança, com a difícil passagem para o mundo adulto.

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    O homem mata a mulher e a queima. Subitamente, a natureza não é mais tão ameaçadora, pois sobrevive consumindo frustas silvestres. Na última parte, ele volta-se e encara os três animais, representantes das misérias humanas, e essas figuras míticas devolvem-lhe o olhar sem ameça e sem medo – um momento de reconhecimento, que antecede a última cena do filme, e que lhe é o pressuposto: nesse instante, não há recriminação, não há julgamento, não há rejeição. Aceitar a condição humana sem debater-se numa reação infantil de recusa cega ou de demonização do mundo é o primeiro passo para a maturidade.

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    Na última cena do filme, mulheres sobem a montanha e passam pelo homem sem percebê-lo, desprovidas de rosto. Esse é o momento de redenção, em que o homem já não projeta no elemento feminino todos os seus traumas. As mulheres já não possuem rosto, ou seja, estão livres da projeção. As mulheres não interagem com ele, não representam ameaça nem provocam uma atração perturbadora, anormal. Está aberta a porta para que o homem lide com as mulheres reais tal como são: seres humanos.

    1. — Festen (Festa de Família) é de de Thomas Vinterberg. É o Dogma Nº 1.

      — Gosto muito de Os Idiotas e mais ainda de Dogville.

      — Sim, o filho e o marido são a mesma pessoa. Prova disso é o Édipo que tem os pés perfurados é o marido.

      — Victor, tu foste muito mais longe na tua análise, a qual é muito completa. Eu tb adorei o filme. A propósito, não deixei que minha filha o visse. É demais.

      — Eu vi o livro infantil e as três estranhas figuras, claro, mas não os relacionei com nada… :¬)))

      Belíssima análise. Vai virar post.

      1. Isso é que dá eu querer posar de intelectual: eu ia mencionar o Dogville (juro), mas achei muito ‘pop’ para ser citado, e lembrei do Festa. Toma! 🙂

        Meu texto está sem revisão, e percebo vários erros. Mas não vou corrigir nada. Deixa assim, pois é parte do meu processo de amadurecimento reconhecer e tolerar minha pungente ignorância – ou é isso ou, pouco a pouco, acabo chegando ao nível do Defoe: e prefiro poupar minha mulher das tesouras e dos fósforos.

    2. Gostei bastante da tua “desconstrução” do filme. Ufa!
      Quanto à misoginia … não sei não.

      Como dizer: … Curioso: a mulher do aborto … que mutila a sua própria carne ( dado empírico da história da humanidade) … Dá lugar à mulher do Infanticídio ( especialmente nos países nórdicos a “vida utrina” não “existe” ) … No filme, a mulher da mutilação – essa capaz de aniquilar a sua própria fonte de vida – aniquila a sua pp fonte de prazer de ligação à fonte de vida … Fazê-lo é tb destruir toda a via …

      Era só para deixar registado este “visionismo”. Sim. A mulher q o LVT avança para a arena é a mulher psicológica. Acho que traduzes isso exemplarmente.
      Vale.

    3. Gostei bastante da tua “desconstrução” do filme. Ufa!
      Quanto à misoginia … não sei não.

      Como dizer: … Curioso: a mulher do aborto … que mutila a sua própria carne ( dado empírico da história da humanidade) … Dá lugar à mulher do Infanticídio ( especialmente nos países nórdicos a “vida uterina” não “existe” ) … No filme, a mulher da mutilação – essa capaz de aniquilar a sua própria fonte de vida – aniquila a sua pp fonte de prazer de ligação à fonte de vida … Fazê-lo é tb destruir toda a via …

      Era só para deixar registado este “visionismo”. Sim. A mulher q o LVT avança para a arena é a mulher psicológica. Acho que traduzes isso exemplarmente.
      Vale.

  3. Milton, há semanas que tenho cá no computador uma cópia, mas até agora não me atrevi a ver. Fico adiando, assistindo bobagens para distrair, revendo um ou outro dos meus clássicos favoritos. Mas depois do teu belo post, que ainda por cima faz menção ao Tarkovski, vou dar um jeito de deixar a danada vontade de fugir dos lutos e assistir.

  4. Não vi esse Trier, e nenhum Tarkoviski e nenhum Bergman.

    Mea culpa, mea maxima culpa.

    Só queria comentar outra coisinha, nada a ver.

    Anacronismo para historiadores significa olhar para o passado exigindo que os de então soubessem o que sabemos hoje ou se comportassem como esperamos que as pessoas se comportem hoje. Como dizia uma professora minha, o historiador não pode tentar “prever o passado”.

    Anotei a dica do filme aqui. Mais um deprê do Trier…

    1. Um amigo meu — meio tolinho — ficou puto ao ler o Diário do Ano da Peste, de Defoe. Ele disse: mas como que eles não descobriram que o problema eram os ratos????

      Tsc, tsc, tsc… Acho que isso deve ser o tal “prever o passado”… Ou a falta de empatia com o passado…

  5. Não vi o filme.
    Mas este Post
    e o comentário Victor
    fizeram-me escrever…

    ASSINATURA
    by Ramiro Conceição

    Com asas quebradas,
    fazer um vôo bizarro
    mesmo que seja
    no palco do escárnio.
    Antes ser desajeitado
    – do que prostrado.
    Antes, alado
    – do que parado.
    Da dor,
    fazer a sã loucura.
    Do caos,
    uma assinatura.

        1. Bem lembrado, Victor. O Albatroz de Baudelaire, sem dúvida, é um dos poemas fundamentais da cultura ocidental. Desta maneira, sinto-me honrado por seu comentário. Todavia, ao menos conscientemente, não me lembrei do Albatroz durante a elaboração do “Assinatura”. Estava, sim, focado em seu comentário sobre o “Anticristo”. Sua análise, Victor, trata do processo de maturação que todo ser humano deve vivenciar para que aconteça de maneira sadia o processo de transição que, essencialmente, é a vida. Porém, quando tal não acontece e se estabelece a doença mental, com todas as nuances, a única cura é o enfrentamento do medo e não, como é de costume, o varrer para debaixo do tapete as nossas limitações, as nossas “asas quebradas”. Infelizmente, ideologicamente, vivemos o culto do fácil. A felicidade está ali, na prateleira do supermercado, com prazo de validade. Mas sabemos que não é assim, pois: amar é difícil; aprender é difícil; viver e morrer são também. Para se superar o maligno é necessário sabê-lo em nós. Mas para tal é necessária muita coragem. Às vezes me vem a imagem de que, na realidade, nunca paramos de engatinhar até o grande dia de caminhar mas que, ironicamente, é próximo daquele da “Senhora” que não suporta zombarias. Bem chega de papo cabeça! Baudelaire pede passagem:

          O ALBATROZ

          Às vezes, por prazer, os homens da equipagem
          Pegam um albatroz, imensa ave dos mares,
          Que acompanha, indolente parceiro de viagem,
          O navio a singrar por glaucos patamares.

          Tão logo o estendem sobre as tábuas do convés,
          O monarca do azul, canhestro e envergonhado,
          Deixa pender, qual par de remos junto aos pés,
          As asas em que fulge um branco imaculado.

          Antes tão belo, como é feio na desgraça
          Esse viajante agora flácido e acanhado!
          Um, com cachimbo, lhe enche o bico de fumaça,
          Outro, a coxear, imita o enfermo outrora alado!

          O Poeta se compara ao príncipe da altura
          Que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;
          Exilado ao chão, em meio à turba obscura,
          As asas de gigante impedem-no de andar.

  6. Milton, não consegui assistir ao filme antes de retornar aos pampas, mas, pelos comentários aqui no blog, ele está disponível para download. Sabes como/onde posso baixar ?

      1. Vamo lá.

        Baixando e instalando um programa de “torrent” como o

        http://www.getmiro.com

        ou o

        http://www.utorrent.com

        podes visitar um dos seguintes endereços (o primeiro é o filme com legenda em português, o segundo, o mesmo filme sem legenda):

        http://thepiratebay.org/torrent/5119006/Anticristo_%5B2009%5D%5BLegendado_PTBR%5D_-_Movienet

        ou

        http://thepiratebay.org/torrent/5086923/Antichrist.2009.DVDRIP.XviD-ZEKTORM

        Basta clicar em “Baixar este Torrent” que começa o download automaticamente, através daquele programa instalado. São cerca de 700 MB. Dependendo da velocidade da conexão, pode levar horas ou minutos. Não há risco de vírus, pois são arquivos “avi”.

        Para converter em DVD, é preciso um outro programa, como o “www.avidvdburner.com”, autoexplicativo. Qualquer dúvida, o Milton pode passar meu email.

        Aliás, esse universo dos torrents é fantástico. Pode-se baixar toda a filmografia dos bergmans, kurosawas ou tarkovskys da vida. Em minutos, você tem a discografia do Thelonius nas mãos (ão vou falar aqui dos animês orientais e nem da discografia do Tool), pois esse é um lugar de respeito. Estou baixando o Breaking Waves, indicado pelo Mauro.

  7. Dogville foi uma experiência pertubadora, da qual entrei desconfiado e saí meio intimamente ofendido por ter gostado tanto, e por ter-me submetido ao choque do experimentalismo que, por mais que seja bem engendrado no cinema atual, a mim parece festivo demais na procura de disfarçar com sutileza artística a emulação de formas antigas do cinema europeu, claramente explícita. Mas, parafraseando o que Aldous Huxley disse sobre o romance, não devemos levar o cinema tão a sério. Aliás, não troco a literatura mais mediana, como o 2666, por exemplo (pura provocação, reconheço!), por filmes glorificados, como Noites Brancas e O Espelho. (Sobre a desmistificação de alguns cânones sagrados do cinema, como Morte em Veneza e A Doce Vida, numa edição de alguns meses de Carta Capital há um ensaio traduzido do The Observer de dar nos nervos de tão limítrofe com a verdade.)

    Mas Dogville me levou a extremos da lucidez sobre a fúria humana, o labirinto insolúvel da história, o erro de se atribuir a uma nação os atributos pateonicos da predestinação divina, e Dogville mostra bem isso, tomando a contemporaneidade da supremacia norte-americana como modelo (mas não se restringindo a circundá-la como único império merecedor da acusação maniqueísta). A cena final, do massacre, tem nítidas correlações com a história do povo judeu e sua liberdade para matar autorizada por Jeová, e o diretor emprega elementos sofisticados da contracultura para dar a tudo um ar da máfia siciliana e vingança de far-western, dando ao expectador a alimentação esperada de sangue e da morte às fartas que nos faz perguntarmos se por detrás de nossa polida procura cultural não há um Van Damme apaixonadamente requerido. Daí,quando ainda sentimos forte o gosto de carne na boca, começa os slides de cenas urbanas americanas, e a música de Bowie nos retorna ao altos píncaros da perturbação. O circo de carnificina feita pelos senadores para o assassinato de César como prefácio de catarse animal ao discurso espiritual de Marco Antônio diante o cadáver: “Viemos enterrar César, não glorificá-lo!” Dogville nos diz, depois de todo nosso deleite culpado diante os demônios liberados pela matança: “Viemos desnudar a América, depois de glorificá-la!” Não levando tão a sério o cinema, posso crer na utilidade dessa proposição crítica, relevando que o diretor grite da barriga do monstro onde ele está tão comodamente instalado. Como o Sr. Sammler, do grande romance de Bellow, tendo-se nascido na América no século XX, participando de suas alucinações e encantos de poder, é difícil se manter acima dessas efusões viciantes: há de se ser um homem superiormente provido de conhecimento e força espiritual para resistir.

    Apesar da advertência do Victor, não assisti ao filme mas li seu magnífico comentário, sem arrependimentos. E o Ramiro…

    1. Charlles, não conhecia a frase do Huxley, que é muito boa.

      Depois de ver Dançando no Escuro, um filme péssimo, fui assistir a Dogville meio na marra, só porque minha mulher precisava fazer um trabalho para a faculdade em cima da obra. Esperava o mesmo exagero quase ridículo de cenas forçadas como aquela em que Bjork mata um homem.

      Mas, assim como em o Anticristo, justo a falta de expectativa intensificou meu prazer (hum? eu disse “prazer”?). É uma fábula, e fábulas tem seus exageros.

      Sua análise é perfeita. Em Dogville, execramos toda uma comunidade, para descobrir, no fim, o mesmo monstro dentro de nós. O recado de Lars é claro: o “mal” está presente sempre que alguém age convicto de suas razões (mesmo a ingênua protagonista, quando convicta da bondade humana, nada mais faz do que invocar o mal alheio).

      1. Milton, desses filmes é de que gosto mais, que me provoca e anima, mesmo que seja repulsa e indignação. Ontem mesmo pus os orixás virtuais para interceptar o Anticristo, mas logo descobri um amigo aqui que já o tinha baixado. Vou vê-lo no fim de semana.

        Já perdi qualquer brio moral em não baixar filmes pela net_ tal brio nunca foi muito sólido, para falar a verdade, mas é q me parecia não ter um álbum se não tivesse o encarte para namorar. Se não for por este recurso, no entanto, vou ficar muito para trás em relação ao cinema. Apenas neste fim de semana q fui ver o Bader-Meinhof.

        Outro filme que gostei muito, de outro diretor (mas da mesma turma), foi “Elephant”.

  8. Milton,assiti este filme e não gostei.
    Acredito que as observações do Marcos Nunes sobre este filme podem até ser um pouco simplistas mas são em minha opinião as mais coerentes.
    Trata-se de mais um filme pseudo-psicanalitico-psicótico do pretenso cineasta-psicanalista-psicologo-pedagogo-pediatra-e -mais o que p.caber Lars Von Trier.
    Aquela mulher trepando e gozando daquele jeito?
    Onde eu encontro no mundo real esta mulher? no puteiro ou na pia da cozinha da minha casa?,Buscando os filhos na escola ou trepando no playground???? Nelson Rodrigues? Freud? ou surprendentemente Hermann Hesse? (Por que não? lobo do lobo do homem…)
    O Lars imaginou uma guria em seus devaneios de adolescente que não deu pra ele então de vingança somatizou ela com sua mãe, avó, vizinha, cunhada…e por aí vai…
    Não vamos complicar…Uma mulher tem razões que a propria razão desconhece…
    Fiquei imaginando o Victor Hugo Lisboa comentando um filme do Glauber Rocha…
    Tese certa de PhD na USP…com distinção na Unicamp.
    se bobear…ABL
    Brincadeira…inocente, mas muito bem escrito.

  9. Seu Milton,
    Muito boa a análise, mas melhor que ela – melhor inclusive que o comentário que foi pro post – é essa aqui, que li quando fui ver o trailer do filme no youtube:

    “Pow esse Filme nun tem sentido ou tem sei lá !!!
    eu tento entender o Filme mais “complica tudo” !!

    Se vcs quiseren ver um Filme maneiro eu aconselho ces assistir “ESTRIPADOR DELAS VEGAS” é maneirin !!! pra quen curti o genero vai se amarra !!!! vlw galerinhaa !!!!!!!! abraço ..”

  10. Milton,
    Otimos seus comentários! Eu diria ainda que o filme é catartico, permite que cada um gostando ou não se manifeste, exponha, pense, sinta, transporte para sua própria experiência. Os sons, as imagens, as cenas, a atuação de dois atores que se entregam de verdade, a controvérsia gerada no lançamento e a chuva de Brasilia ontem proporcionaram um clima perfeito para que eu entrasse no cinema com a mesma sensação que tive quando criança fui pela primeira vez ver um filme na telona. Uma mistura de atração e repulsa, medo e curiosidade. Mas inegavelmente, excitante.

    Vitor Hugo
    Muda pra cá?

  11. Afinal, onde está a figura do anticristo? Provavelmente essa deve ser a pergunta mais frequente em relação ao filme. Não é nada fácil encontrarmos se nos mantivermos presos à idéia cinematográfica tradicional de anticristo, que é, em suma, um menino concebido de uma relação sexual com o canhoto, cuja meta é instituir uma nova ordem mundial. A inovação, a genialidade e a superioridade dessa obra está justamente em apresentar uma idéia de anticristo completamente nova, muito mais real e próxima de nós.

    O anticristo é apresentado, ou melhor, representado por símbolos que se opõem à simbologia cristã. Enquanto temos de um lado o nascimento sem sexo, do outro temos a morte durante o sexo. Enquanto o Cristo é um homem, o anticristo é a Mulher – o gênero feminino. Enquanto Cristo é recebido em seu nascimento por três Reis e recebe ouro, incenso e mirra, o anticristo é acompanhado em sua morte por três mendigos que trazem sofrimento, dor e desespero. Enquanto Cristo é divino, o anticristo é natural.

    “A natureza é a igreja de satã” diz a mulher em determinado momento. Aí está todo o segredo e a chave para desvendar a história. O que se opõe ao divino não é o infernal, mas sim o natural – ou terreno. É a natureza, a nossa própria natureza que se opõe aos valores cristãos. Não precisamos que o diabo se oponha ao divino, nós mesmos fazemos isso naturalmente.

    No frigir dos ovos, Anticristo é uma crítica – uma desconstrução do cristianismo que se apresenta como a convicção de que tudo que é natural e humano é essencialmente diabólico e maligno. Enquanto o cristianismo nega e rejeita o que é humano e natural, o anticristo abraça e aceita a condição humana, pois essa é a nossa essência.

  12. Dito cinéfilo:

    “Onde eu encontro no mundo real esta mulher? no puteiro ou na pia da cozinha da minha casa?,Buscando os filhos na escola ou trepando no playground???? Nelson Rodrigues? Freud? ou surprendentemente Hermann Hesse?”

    A resposta: entre quatro paredes. Tem tanta mulher aí que é uma santinha quando está na rua e um diabo quando está entre quatro paredes. As que não são assim, á meu ver, são submissas á repressão do “socialmente aceitável”. O tipo que eu gosto é justamente a mulher que não tem nada refreando-a de sentir o que quiser e como quiser, sem moralismos. Entre quatro paredes, eu gosto das selvagens, não das domesticadas. Obviamente que vós só tem contato com esta repressão social.

    Mas isso não importa. Quem reparar BEM nas cenas finais do filme, vai perceber uma coisa que ninguém percebeu aqui, mais precisamente aos 01:28:10 do filme: o motivo para toda a culpa que ela sentia. A cena mostra que ela deixou de fazer pelo filho dela o que precisava ter feito, somente para não interromper o prazer que estava sentindo. Ela viu o que viu e não agiu. Esta é a raiz da culpa dela.

    Daí ela pegou a tesoura e fez o que fez: para expurgar a culpa dela e para garantir que ela não repetisse o que fez, pois ela não viu outra saída: ela admitiu ser escrava do prazer dela, e a única maneira do prazer dela não forçar ela a repetir o erro que cometeu, era daquele jeito. Porque era mais forte que ela.

    Que tal? Consegui comentar sem estragar o final do filme para quem não viu. Muitos comentários anteriores não tiveram essa consideração, e provavelmente estragaram o filme para quem ainda não assistiu. As pessoas se preocupam mais em dizer o que acharam do que em respeitar quem ainda não assistiu o filme, acho isso uma falta muito grave.

    1. Adriano, o seu comentário só faz referendar a análise do Victor Hugo, a qual defendo com próprio trecho do filme que vc citou: ainda é a visão do homem sobre a mulher, a magnificação da perversidade que ele juga ela representar. Realmente, na imaginação do homem, ela é dominada pelo prazer e capaz de ignorar o despencar do filho unicamente para alcançar o prazer. Melhor ainda, a julga um ser indiferente para com seu sofrimento diante da perda da inocência e por isso deve ser encarada como o foco de todo o mal. É o “adolescente” revolto com a realidade de que o outro não se interessa por ele ou pelos caminhos que ele trilha, que não interrompe a sua própria busca pela felicidade em função das descobertas do outro vida afora. Mas isto ainda é parte do processo de maturação do homem. Toda o posicionamento ou visão que ele adota como adequada e real em relação à imagem da mulher que se apresenta é parte desse processo, mesmo a movimentação de imagem em contra-ponto quando momentaneamente se há dúvida sobre a perversidade pura da mulher, visto que eventualmente (e aí a conotação de dúvida, basta perceber as inúmeras oscilações de humor da mulher representadas no filme) à ela se atribui a capacidade de sentir culpa (o choro intercalado aos flashes de memória) ou perda e solidão (“hold me”) representados nessa mesma sequência de cenas. Ainda é o homem em conflito com a sua visão da mulher, conflito este acentuado, maximizado e oscilado ao extremo, em intensidade e velocidade, até que a saída se apresenta, o insight, a resolução que está por vir logo na sequência (a libertação do peso na perna).

      Victor Hugo, obrigado pelo post. Sou apenas um curioso, nada entendedor de filmes e muito menos de qualquer psicanálise, psicologia ou adjacências que seja. Entendo que, não enaltecendo o (este ou qualquer) diretor, pessoas realmente respeitadas como Lars von Trier e David Lynch não se propõem a fazer algo diferente, chocante, imaginativo e polêmico como os filmes que fazem por puro prazer sádico em ver outros seres humanos se descabelarem por não entenderem ou fingirem que entenderam seja lá o que for que eles disseram ou fingiram tentar dizer. Não acredito que façam o que fazem por simples por puro exercício niilista ou de um prazer em se posicionar como maestros de alguma verdade. Acredito que querem levar mensagem de qualidade, dolorosas de serem interpretadas sim, a outras pessoas. E aí é me enrasco, pois sou apenas um curioso apreciador de cinema, nada capaz de enxergar sozinho as mensagens que tanto quero ver.
      Novamente obrigado pelo post. Mais uma excelente opção de como observar uma obra de arte.

  13. Hmmm… adorei o filme; adorei todos os comentários, pois muitos preencheram algumas de minhas lacunas; só não entendi o por que de tanta repulsa com “dancer in the dark”???

  14. navegando em busca de outros olhares para o filme caí aqui. Comentários inteligentes e um repost de um comentário realmente digno. Minha visão vai por outro caminho. Estou escrevendo um artigo sobre o filme mas sob a ótica Nietzschiana. A minha leitura não foi psicanalítica… ao contrário, acho que Lars brinca e mostra como a psicanálise falha ao tentar enquadrar o que ali se apresenta. Mas claro, qualquer coisa pode ser analisada com olhos psicanalíticos.

    Para mim, a floresta sim é o principal elemento. Ela é o próprio Anticristo.
    A esposa, ao deparar-se com Édem (voluptuosidade em hebraico), com a potência do feminino (Não só como gado reprodutor), entra num estado dissociativo intenso e emerge como a própria negação do feminino, da vida.
    Ele em sua visão sincera de empirista lógico ingênuo, vai, aos poucos, assumindo o papel de cuidar, de maternar, de se aproximar cada vez mais da natureza. O tempo inteiro ele trata o sofrimento da esposa como fator natural. Ela o tempo inteiro tenta negar sua própria humanidade. A natureza é implacável, mas não é perversa. Nem boa. É eterna, porém eterna como potência que seleciona… cada volta é diferente. Éden nega o cristianismo que nega a vida. Éden afirma a vida. A vida é sofrida, mas é criação.

    A Esposa, ao negar o sofrimento, ao negar o feminino, nega a vida. Abraça o niilismo.

    A floresta se mostra, quando ele aceita o fato de que não se pode negar a vida, nem a morte. A floresta lhe dá a ferramenta para se soltar. Ele afirma a vida.

  15. Não! Anticristo é surpreendente. Todas as evidentes analogias contidas no filme apenas revelam a capacidade do diretor de criar algo ainda por existir. É um enorme exorcismo. É como ver caos, horror, sofrimento e desespero através de um caleidoscópio.

  16. O filme é incrível, permite várias interpretações analíticas… Mas essa caixa de comentários está sensacional! Parabéns Milton e colaboradores.

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