Seis filmes clássicos que completaram 50 anos em 2016

Seis filmes clássicos que completaram 50 anos em 2016

Introdução, tradução e compilação do blogueiro

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O ano de 1966 foi extraordinário para o cinema mundial. Não houve grande movimentação no Brasil, mas a cena internacional viu surgir uma série de clássicos. Enquanto os EUA mantinham 250 mil soldados lutando no Vietname, enquanto a China dava início à Revolução Cultural, enquanto o Brasil fazia fiasco na Copa e via ocorrer uma eleição indireta para presidente, Ingmar Bergman, Michelangelo Antonioni, Sergio Leone e Andrei Tarkovsky faziam uma revolução na linguagem cinematográfica.

Os seis filmes que escolhemos revelam nosso gosto. Poderíamos ter colocados outros de Godard — que produziu dois naquele ano febril –, Polanski, Rivette, Zinnemann, Nichols, etc. Foi um ano riquíssimo.

Os textos que escolhemos sobre cada filme foram encontrados na rede. Fizemos resumos e, ao lado dos títulos dos filmes, deixamos disponíveis os links para eles.

1. Andrei Rublev, de Andrei Tarkovsky — The Guardian

Espectadores e críticos sempre têm os seus filmes favoritos, mas alguns destes alcançam por unanimidade o status de obra-prima, como se houvesse um acordo. É o caso de Andrei Rublev. Vê-lo é uma tarefa que requer investimento de tempo. Ele tem 205 minutos de duração em sua versão mais completa, é falado em russo e é em preto e branco. Poucos personagens são claramente identificados, pouco acontece e o que acontece não está necessariamente em ordem cronológica. Seu tema é um pintor de ícones do século XV e herói nacional, mas você não vai vê-lo pintar e nem ele fará nada de heroico. Em muitos dos episódios do filme ele não está presente e, nos últimos, ele faz um voto de silêncio. Não é um filme que precisa ser longamente pensado ou até mesmo compreendido. É para ser experimentado e admirado. Um filme de poeta.

Desde a primeira cena, quando seguimos o voo de um balão rudimentar de ar quente, ficamos confusos e espantados como o próprio Rublev. Nas três horas seguintes, estaremos na lama e no caos da Rússia medieval, convivendo com ataques tártaros, rituais pagãos bizarros, fome, tortura e sofrimento físico. E experimentaremos tal vida de forma peculiarmente intensa.

Com Andrei Rublev, Tarkovsky estava conscientemente elaborando uma linguagem que não devia nada à literatura e é uma pena que tão poucos o tenham seguido. Em uma atmosfera de sonho, Andrei Rublev opera dentro de uma compreensão diferente de tempo e de história. Faz perguntas sobre a relação entre o artista, sua sociedade e suas crenças espirituais e não pretende responder a elas. “No cinema não é necessário explicar, mas estar de acordo com os sentimentos do espectador. Esta emoção é o que provocará o pensamento”, escreveu Tarkovsky.

O filme foi finalizado em 1966 e imediatamente proibido. Foi liberado para o Festival de Cannes de 1969, após Tarkovsky ter declarado que se mataria se não fosse apresentado.

2. A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo — Opera Mundi

O ex-assessor norte-americano para assuntos de Segurança Nacional e pensador influente da política externa dos EUA, Zbigniew Brzezinski, afirmou em 2005 que, se quiséssemos realmente entender o que estava acontecendo no Iraque, deveríamos assistir ao filme A Batalha de Argel. O recado se fez ouvir nos corredores do Pentágono, onde a exibição do filme contou com uma audiência de aproximadamente quarenta oficiais, que foram estimulados a avaliar e a debater os assuntos centrais do filme, como as vantagens e os custos de se recorrer à tortura e a outras formas de intimidação para desvendar os planos de um inimigo que se camufla na multidão.

Os convidados receberam o convite com o seguinte comunicado: “Como ganhar uma batalha contra o terrorismo e perder a guerra das ideias. As crianças alvejam os soldados, mulheres plantam bombas em bares e, gradualmente, a população inteira protesta fervorosamente. Soa familiar? Os franceses têm um plano. Prosperam taticamente, mas fracassam estrategicamente. Venha assistir a exibição desse filme e saiba o porquê” (Kaufman, 2003).

Produzido em 1965, no contexto das guerras de libertação na África, a temática da insurgência urbana e a violência perpetrada pelos insurgentes e torturadores é abordada de tal forma que faz com que o filme seja sempre atual, pois poderíamos ainda utilizá-lo para compreender a presente intervenção francesa no Mali, as revoltas árabes e os  conflitos na Palestina, no Afeganistão, no Sudão e outros tantos do mesmo tipo. Filmado em preto-e-branco, com atores argelinos e franceses desconhecidos, recriando cenas e figuras históricas em locais de batalhas reais com técnica utilizada pelos cineastas neo-realistas, o diretor italiano Gillo Pontecorvo nos induz a pensar que se trata de um documentário.

A Batalha de Argel retrata os conflitos em Argel (1954-1957) entre a FLN (Frente de Libertação Nacional) e o exército francês. A primeira parte do filme mostra a campanha de terror desencadeada pela FLN contra o domínio colonial francês em torno do personagem Ali La Pointe, mostrando sua gradual conversão à guerrilha urbana. Já a segunda metade focaliza a reação do exército francês, que consiste principalmente em uma campanha de tortura e assassinatos comandados pelo coronel Mathieu. As ações terroristas vão se intensificando e ampliando seus alvos à medida que a repressão se torna mais eficiente, passando dos assassinatos de policiais às bombas em restaurantes, bares e clubes frequentados por jovens franceses. Mas igualmente ilustrativas são as imagens da repressão colonial, do racismo francês e do desprezo pelos árabes isolados na Casbah (bairro popular da capital argelina).

O filme não idealiza terroristas, não demoniza os franceses, nem exalta a violência em nome de algum tipo de revolução ou justificativa de qualquer ordem; em vez disso, o diretor examina a fundo os motivos, justificativas e contradições de todos os beligerantes. Os combatentes não escolhem seus alvos, ambos os lados se atacam indiscriminadamente e fornecem argumentos racionais para provar que estão no lado justo. Não há heróis nem vítimas inocentes. As crianças são cúmplices dos atentados, as mulheres plantam bombas em bares, os franceses atiram nas multidões, soldados brutalizam seus prisioneiros e o exército arrasa edifícios, matando civis inocentes.

Ali La Pointe encarna a figura do oponente irascível, ladrão e cafetão. É recrutado pela FLN e torna-se um guerrilheiro profissional, um líder revolucionário. Seu olhar ameaçador revela o próprio sofrimento e cólera dos árabes oprimidos diariamente pelos pieds-noirs (que, em francês, significa, literalmente, “pés-negros” e é um termo usado para descrever a população francesa que vivia na Argélia e que se repatriou na França depois de 1962, ano em que a Argélia se tornou independente).

O personagem procura expulsar a ocupação a todo custo, disposto a matar ou mesmo morrer pela causa. É isso que faz com que o seu destino seja trágico, culminando com sua morte (suicídio?), diferentemente do militante marxista El-hadi Jaffar, que negocia a rendição preservando sua vida.

Já a figura do coronel Mathieu foi inspirada na vida do general Massu, considerado pelos soldados franceses a personificação da tradição militar francesa. Herói militar da Resistência Francesa durante a Segunda Guerra Mundial, que também esteve presente na derrota da França na Indochina, Massu, em 1971, publica o livro A Batalha de Argel, que ficou proibido durante muitos anos na França. Nele, justificava a tortura como “uma cruel necessidade”. Dizia Massu: “Penso que, na maioria dos casos, os militares franceses foram obrigados a usá-la para vencer o terrorismo”.

3. Blow-up, de Michelangelo Antonioni — O Rato Cinéfilo

Único e surpreendente sucesso comercial de Antonioni, e o primeiro realizado fora de Itália, Blow-Up é um dos filmes que melhor retratam a Swinging London dos anos 60. Muito embora pudesse ter sido rodado em Paris ou Nova Iorque, a capital inglesa teve a preferência do realizador italiano devido à nova mentalidade instalada e que revolucionou todo um comportamento e estilo de vida. Antonioni deixou-se imergir voluntariamente na cena londrina, com as suas cores pop, música e liberdade sexual. No entanto, e apesar da modernidade que envolvia Blow-Up, toda a ambiguidade do universo de Antonioni se encontrava presente até ao mais ínfimo dos pormenores – a incomunicabilidade e impossibilidade de relações entre as pessoas ou a alienação no seio de uma sociedade de consumo prolongavam as ideias que o mestre italiano já nos dera a conhecer nos seus filmes precedentes.

Thomas (David Hemmings) é um jovem fotógrafo que trabalha no universo da moda. Ele capta casualmente algumas imagens num parque londrino. Mais tarde, durante o processo de revelação do rolo e espicaçado pela insistência da mulher retratada que quer a todo o custo reaver os originais da película, Thomas percebe que testemunhou, sem querer, um assassinato. Este fio de intriga, vagamente policial, poderia conduzir facilmente a um thriller como tantos outros. Mas não nas mãos de Antonioni.

De início não se vê na fotografia mais que uma mancha difusa e amorfa; aumentando-a, distingue-se uma figura que bem poderia ser humana; um aumento maior apresentará uma tonalidade diversa. Isto é tudo. Quanto mais nos aproximamos do mistério que tínhamos impressão de dominar, mais nos desviamos e começamos a recusar compreendê-lo. E assim por diante, até chegarmos a duvidar da própria realidade das coisas e dos seres.

4. Fahrenheit 451, de François Truffaut — De Mattar

O filme é baseado no mau romance Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, publicado em 1953. Montag (Oskar Werner) é um bombeiro cuja função é queimar livros, proibidos na sociedade do futuro. Sua esposa, Linda, é fútil e superficial, e presta mais atenção na televisão “interativa” do que no marido. Influenciado por sua vizinha Clarisse (o oposto de Linda, mas representada pela mesma atriz, Julie Christie), ele começa a guardar e ler alguns livros.

Uma cena marcante do filme: uma mulher recusa-se a sair de sua casa e é queimada junto com seus livros, sendo que ela mesma acende um fósforo e inicia a fogueira. Ao se apaixonar pela leitura, Montag decide sair da corporação, mas seu último serviço é em sua própria casa, pois fora denunciado por sua esposa Linda. Durante o serviço, ele queima seu chefe, Capitão Beatty, e foge. Refugia-se no local onde outras pessoas que leem se refugiam, representando personagens e decorando os livros, antes de queimá-los. O livro que ele começa a memorizar: Contos de mistério e imaginação, de Edgar Alan Poe.

Terezinha Elisabeth da Silva escreve:

O clima lúgubre e opressivo daquela sociedade é pintado com cores frias e pálidas, contrastadas com a única cor quente do filme: o vermelho do fogo e das viaturas dos bombeiros. Ritmo lento, cenários áridos e sem charme e diálogos escassos completam o panorama melancólico da obra. Com esses elementos, Truffaut impõe uma atmosfera pesada ao tempo de Fahrenheit, um tempo sem alternativas e, por isso mesmo, deprimente.

O título: na escala Fahrenheit, 451 graus (233 Celsius) é a temperatura a partir da qual o fogo queima o papel.

5. Persona (Quando duas mulheres pecam), de Ingmar Bergman — Clube do Filme

“Tudo o que se disser sobre Persona pode ser contradito, o oposto também será verdade”, palavras do escritor inglês Peter Cowie. Para o crítico americano John Simon, Persona “é o filme mais difícil de todos os tempos”. A crítica de arte Susan Sontag, por sua vez, foi categórica ao afirmar que Persona era o melhor filme da história do cinema. Há quase cinco décadas, a cultuada obra-prima de Ingmar Bergman vem exercendo um verdadeiro fascínio em gerações e gerações de cinéfilos e especialistas. Presente em inúmeras listas de melhores filmes do cinema (Sight and Sound, Empire, British Film Institute, New York Times, para citar algumas), Persona é constantemente apontado como a mais primorosa realização de Bergman no cinema, algo considerável se levarmos em conta a brilhante filmografia do diretor.

Persona conta a história de Elizabet (Liv Ullmann), uma atriz que para de falar repentinamente em meio a uma apresentação da tragédia Electra, entrando num estado de próximo ao catatônico. Nenhuma explicação física ou neurológica é encontrada para a crise de Elizabet. Internada em um hospital, ela é posta sob os cuidados da jovem enfermeira Alma (Bibi Andersson). Após algum tempo de internação, a médica de Elizabet sugere que esta passe uma temporada em sua casa de praia, ainda sob os cuidados de Alma. Isoladas do resto do mundo, as duas mulheres vão se tornando cada vez mais próximas. Alma encontra na emudecida Elizabet uma perfeita ouvinte e lhe conta os seus mais íntimos segredos, como uma orgia praticada com dois jovens adolescentes e uma amiga numa praia deserta e um subsequente aborto. Após ler uma carta comprometedora de Elizabet, Alma começa a perder o controle sobre si mesma, sentindo-se extremamente ligada à atriz e, ao mesmo tempo, oprimida pelo seu silêncio. Gradualmente, a persona de Elizabet toma conta da enfermeira e as identidades das mulheres parecem se fundir em uma só.

O filme se inicia por um intrigante prelúdio em que vemos uma série de imagens de duração variável (algumas que duram o tempo de um piscar de olhos, como aquela que mostra um pênis ereto). Essa sequência inicial consiste em uma justaposição de imagens heterogêneas, que lembra o experimentalismo das vanguardas modernistas e o surrealismo. Bergman faz diversas alusões ao próprio cinema, aos equipamentos, às suas primeiras formas, aos filmes mudos. A imagem da fita em movimento, dos aparelhos cinematográficos ou da fita que se deteriora intervém diversas vezes ao longo dessa primeira sequência e de maneira pontual no resto do filme. Existe algo de hipnótico na sequência de abertura que se deve muito ao atrevimento da montagem e a utilização poética de imagens impactantes. Ao final do filme, Bergman introduz novamente a imagem de uma câmera (manuseadas por Nykvist e o diretor), o que confere uma forma cíclica ao filme.

Persona é uma coleção de momentos antológicos. Uma das sequências inesquecíveis do filme é aquela em que Alma relata sua aventura sexual com um garoto, o momento de maior felicidade e gozo da vida da personagem. Certamente, o monólogo de Alma corresponde a um dos momentos mais eróticos da história do cinema. O diretor se dispensa de representar o ato sexual visualmente, o que poderia ser feito através de um flashback. O erotismo da cena é fruto do poder de evocação do ousado texto de Bergman e da maneira envolvente com que Bibi Anderson o declama. Para Pauline Kael, essa sequência corresponde a “um dos raros momentos verdadeiramente eróticos do cinema”. Outra cena brilhante do filme é aquela em que Elizabet entra no quarto de Alma no meio da noite. A lindíssima fotografia do genial Sven Nykvist confere uma atmosfera fantasmagórica à cena (sonho? realidade?). O instante em que as duas mulheres olham para si mesmas, como se estivessem diante de um espelho, enquanto trocam carícias, é uma das imagens mais marcantes da filmografia de Bergman.

Por fim, é inevitável não mencionar a escolha de Bergman de repetir o monólogo de Alma sobre o filho de Elizabet, uma vez com a câmera focalizando o rosto de uma, depois o da outra. O texto é exatamente o mesmo, assim como a montagem. Bergman parece querer mostrar a mesma história contada pelas duas mulheres, ainda que a voz seja só a de Alma (já que Elizabet não fala). Essa sequência mostra a união das duas mulheres e não por acaso ela termina pela colagem do rosto das duas atrizes, uma imagem impressionante que revela o quanto as identidades das duas se tornaram uma só.

6. Três Homens em Conflito (O Bom, o Mau e o Feio), de Sergio Leone — Cine Indiscreto

O filme focaliza três personagens: Blondie (Clint Eastwood) é o bom, Olhos de Anjo (Lee Van Cleef) é o mau e Tuco (Eli Wallach) é o feio (do nome original, The good, the bad and the ugly). A história dos três se junta porque estão atrás de duzentos mil dólares em ouro, uma fortuna na época.

Em Três Homens em Conflito, Leone constrói cuidadosamente cada imagem, como se estivesse pintando um grande quadro. Leone se mostra excepcionalmente criativo para construir longas tomadas sem cortes, criando tensão e atmosfera a partir da contraposição de tomadas panorâmicas de beleza tensa e dramática, na maioria das vezes paisagens com personagens minúsculos e close-ups de rostos rígidos e queimados pelo sol que revelam muito mais do que os olhos dos personagens. Esse talento transforma o filme em uma verdadeira experiência de imagens e sons inesquecíveis.

Ao contrário da maioria do gênero, os personagens de Leone são sujos, feios e parecem sangrar de verdade. Os protagonistas falam pouco, mas seus gestos e olhares dizem tudo.

Nos faroestes de Leone, os personagens não costumam atirar pra tudo quanto é lado. O diretor construía um duelo longo e sua grande preparação consiste em minutos de espera pelo primeiro disparo. Antes do revólver disparar, os personagens se analisam por inteiro e o silêncio só não toma conta do filme graças à fenomenal trilha sonora de Ennio Morricone, que ganha intensidade na medida em que começam cortes rápidos de um rosto para outro, capturando cada olhar tenso e cada mão buscando o revólver.

No começo do filme é revelado quem é o bom, o mau e o feio, mas com o desenrolar da trama percebemos que todos são bons, maus e feios… Descobrimos que, apesar de trambiqueiro e assassino, o homem sem nome guarda alguma bondade dentro de seu coração, como na cena em que o mesmo mostra uma certa compaixão por um combatente que está morrendo. A ganância pelo ouro revela o pior de cada um, mas comparados ao horror da Guerra Civil, os três são mocinhos.

Da abertura ao primeiro diálogo, temos cerca de 10 minutos de silêncio. Nenhuma palavra é ouvida. É a criatividade de Leone construindo uma narrativa baseada apenas em imagem, som e música. Outra cena que destaca o talento de Leone é quando o feio corre pelas lápides ao som de The Ecstasy of Gold, de Ennio Morricone. É simplesmente fantástico o efeito provocado. Uma viagem ofegante dos limites do oeste ao ápice da violência.

O filme é dispensa palavras, muitas vezes um pequeno desvio de câmera revela uma nova e surpreendente perspectiva. Outra técnica usada no filme é que os personagens não vêem (assim como nós) o que está fora do enquadramento. Assim a todo momento eles são surpreendidos por tiros ou balas de canhões que, normalmente, seriam vistas ao lado.

Uma obra prima revolucionária, que é, com grande estilo, homenageada por grandes cineastas da atualidade principalmente por Tarantino. Nesse filme testemunhamos o bom gosto, a inventividade e o controle de Leone sobre a narrativa.

 

O Marabá está morto

O Marabá está morto

Não há quase mais cinemas de rua em Porto Alegre. Todos os cinemas se internaram em shoppings. À noite, não se vê mais placas luminosas com letras quase sempre tortas ou faltantes anunciando filmes. Além, disto, os cinemas reduziram seu tamanho. Já faz tempo que desapareceram aquelas imensas salas em que funcionários com lanterninhas nos indicavam os lugares livres depois de iniciar a sessão. O VHS, a televisão, o DVD, o Now, o Netflix, a pandemia e o streaming, aliados à falta de espaço, de tempo e de charme transformaram nossas salas em coisas diminutas.

Mas a época do Marabá era diferente. O Marabá era um cinema que ficava em um bairro contíguo ao centro da cidade. Ou no bairro mais próximo a ele, se considerarmos que nosso centro é, na verdade, uma ponta enfiada no rio-lagoa-estuário Guaíba. O Marabá não tinha nenhum charme, não era frequentado por mulheres elegantes que deixavam rastros não de ódio, mas de perfume, atrás de si. Essas iam a outros lugares. Nenhuma surpresa nisto, pois o Marabá, fora construído para passar reprises e porcarias. Os filmes mais artísticos que lá vi foram as obras-primas kitsch de Jack Arnold: O Monstro da Lagoa Negra, O incrível homem que encolheu e — como esquecer dos gritos da mocinha? — A Revanche do Monstro. O enorme cinema ficava na rua Cel. Genuíno, 210, próximo à Av. José do Patrocínio. Só que, um dia, cansado de tanto passar filmes ruins, alguém por lá enlouqueceu por lá e começou a passar somente grandes filmes em programas duplos. Eram apenas duas sessões — uma iniciava às 14h e outra às 20h — mas, meus amigos, que sessões! Um belo dia, estando eu na casa dos quinze anos, abri o jornal e li que o Marabá passava A Noite, de Antonioni, e Viridiana, de Buñuel, em seu programa duplo. Talvez a nova geração desconheça a expressão “programa duplo”. É o seguinte: semanalmente, eram apresentados dois filmes com um pequeno intervalo no meio para irmos ao banheiro e ao bar comprar balas, fumar, conversar, beber, namorar ou simplesmente esticar as pernas. Só que os programas duplos apresentavam normalmente filmes pornográficos ou de pancadaria. Nunca coisas daquele calibre.

Eu e um bando de loucos por cinema começamos a acorrer ao lúgubre Marabá. Aposentados e desocupados também pagavam o ingresso baratíssimo do cinema não muito limpo. Grupos de estudantes vinham ver e rever filmes enquanto matavam aulas. Minha sessão habitual era a das 14h. Formávamos uma peculiar fauna de jovens secundaristas, universitários, velhos e desempregados. Lembro de ter saído muitas vezes rapidamente de casa, batido a porta, lembro de pegar e pagar o ônibus, de parar nas imediações do centro e de correr como Catherine, Jules e Jim (ou Lola, para os mais jovens) em direção ao cinema. Comigo, chegavam outros esbaforidos. Trocávamos um cumprimento rápido e entrávamos. Comigo, muitas vezes veio Maria Cristina, minha primeira namorada. Quando víamos os filmes pela primeira vez, não protagonizávamos grandes cenas de amor nas poltronas desconfortáveis de encosto de madeira, deixávamos para fazer isto no corredor do edifício onde ela morava, na rua Santana. No máximo, trocávamos alguns beijos apaixonados no intervalo — afinal, estávamos ali pelo cinema. Porém, quando conseguíamos ir duas vezes na mesma semana, a segunda tarde era dedicada quase que inteiramente ao amor. Foi numa cadeira do Marabá — ou em duas, mais precisamente — que minhas mãos e boca tiveram seu primeiro contato com o seio feminino. Inesquecível. Não entrarei em detalhes sobre tudo o que fiz pela primeira vez no Marabá, mas não exagerem na imaginação, pois nossa primeira relação sexual, a minha e a dela, ocorreu numa noite, atrás do sofá da sala de sua casa… Voltemos ao cinema.

Depois vieram outros programas duplos. Houve Gritos e Sussurros (Bergman) e Amarcord (Fellini), Jules e Jim (Truffaut) e Ascensor para o Cadafalso (Malle), O Mensageiro (Losey) e Petúlia, um Demônio de Mulher (Lester), Janela Indiscreta e Um corpo que cai (ambos de Hitchcock), Cidadão Kane e A Marca da Maldade (ambos de Welles), Paixões que alucinam (Fuller) e O Sétimo Selo (Bergman), O Magnífico (de Broca) e A Malvada (All About Eve, de Mankewicz), West Side Story (Wise-Robbins) e O Criado (Losey), e, comprovando que a loucura tomara conta do programador, houve Andrei Rublev (Tarkovski) e Acossado (Godard), evento que deixou nossas bundas quadradas por longo tempo. Em 1975, após um programa duplo que apresentava Contos da Lua Vaga (Mizoguchi) e Morangos Silvestres (Bergman), comecei a ter aulas à tarde e a estudar para o exame vestibular. Planejava voltar ao Marabá quando entrasse na universidade, em 1976. Só que, neste ínterim, o Marabá morreu para virar garagem. Sim, após Dillinger está morto (Ferreri) fazer dupla com Um Caso de Amor ou O Drama da Funcionária dos Correios (Makavejev) começou a demolição. Ou seja, a glória do Marabá, um cinema de 1800 lugares fundado em 1947, foi sua agonia, a agonia de um querido dinossauro.

Não há mais cinemas de rua em Porto Alegre e também não há nenhuma cinemateca alucinada e radical como o Marabá. Quando as salas menores pareciam ter o poder de reabilitar para nós a gloriosa história do cinema, algo as trouxe para a isonômica mediocridade dos blockbusters. Resta-nos ver os filmes em nossa casa, às vezes na cama, podendo a sessão ser interrompida pelo telefone ou pela campainha da porta. Apesar das imagens perfeitas, não há o ritual de ir ao cinema, nem a sala escura onde somos ininterrompíveis, nem — perversão minha — o divino cheiro de mofo do Marabá, hoje substituído pela fuligem dos automóveis e pelos gritos dos manobristas.

A Cel. Genuíno hoje. Ela é a da direita.

A extinta União Soviética completa 90 anos. Tal país, qual arte?

Publicado em 30 de dezembro de 2012 no Sul21

Nicolau II em 1898: um país de grande literatura, mas em convulsão

A ensaísta Flora Süssekind, num livro sobre literatura brasileira, criou o belo título Tal Brasil, qual romance? É com este espírito — apenas com o espírito, pois nossa pobre capacidade nos afasta inexoravelmente de Flora — que pautamos para este domingo o que representou (ou pesou) a União Soviética em termos culturais. Sua origem, a Rússia czarista, foi um estado que mudou o mundo não apenas por ter se tornado o primeiro país socialista do planeta, mas por ter sido o berço de uma das maiores literaturas de todos os tempos. Quem lê a literatura russa do século XIX, não imagina que aqueles imensos autores — Dostoiévski, Tolstói, Tchékhov, Turguênev, Leskov e outros — viviam numa sociedade com resquícios de feudalismo. Através de seus escritos, nota-se claramente a pobreza e a base puramente agrária do país, mas há poucas referências ao czar, monarca absolutista que não admitia oposição e que tinha a seu serviço uma eficiente censura. Na verdade, falar pouco no czar era uma atitude que revelava a dignidade daqueles autores.

No início do século XX, Nicolau II, o último czar da dinastia Romanov, facilitou a entrada de capitais estrangeiros para promover a industrialização do país, o que já ocorrera em outros países da Europa. Os investimentos para a criação de uma indústria russa ficaram concentrados nos principais centros urbanos, como Moscou, São Petersburgo, Odessa e Kiev. Nessas cidades, formou-se um operariado de aproximadamente 3 milhões de pessoas, que recebiam salários miseráveis e eram submetidos a jornadas de até 16 horas diárias de trabalho, sem receber alimentação e trabalhando em locais imundos. Ali, havia um ambiente propício às revoltas e ao caos social, situação que antecedeu o nascimento da União Soviética, país formado há 90 anos atrás, em 30 de dezembro de 1922.

Os trabalhadores foram recebidos pela artilharia, sem diálogo

Primeiro, houve a revolta de 1905. No dia 9 de janeiro daquele ano, um domingo, tropas czaristas massacraram um grupo de trabalhadores que viera fazer um protesto pacífico e desarmado em frente ao Palácio de Inverno do czar, em São Petersburgo. O protesto, marcado para depois da missa e com a presença de muitas crianças, tinha a intenção de entregar uma petição — sim, um papel — ao soberano, solicitando coisas como redução do horário de trabalho para oito horas diárias, assistência médica, melhor tratamento, liberdade de religião, etc. A resposta foi dada pela artilharia, que matou mais de cem trabalhadores e feriu outros trezentos. Lênin diria que aquele dia, também conhecido como Domingo Sangrento, foi o primeiro ensaio para a Revolução. O fato detonou uma série de revoltas internas, envolvendo operários, camponeses, marinheiros (como a revolta no Encouraçado Potemkin) e soldados do exército.

Se internamente havia problemas, também vinham péssimas notícias do exterior. A Guerra Russo-Japonesa fora um fiasco militar para a Rússia, que foi obrigada a abrir mão, em 1905, de suas pretensões sobre a Manchúria e na península de Liaodong. Pouco tempo depois, já sofrendo grande oposição interna, a Rússia envolveu-se em um outro grande conflito, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), onde também sofreu pesadas derrotas em combates contra os alemães. A nova Guerra provocou enorme crise no abastecimento das cidades, desencadeando uma série de greves, revoltas populares e fome de boa parte da população. Incapaz de conter a onda de insatisfações, o regime czarista mostrava-se intensamente debilitado até que, em 1917, o conjunto de forças políticas de oposição (liberais e socialistas) depuseram o czar Nicolau II, dando início à Revolução Russa.

Lênin trabalhando no Kremlin, em 1918

A revolução teve duas fases: (1) a Revolução de Fevereiro, que derrubou a autocracia do czar Nicolau II e procurou estabelecer em seu lugar uma república de cunho liberal e (2) a Revolução de Outubro, na qual o Partido Bolchevique derrubou o governo provisório. A Revolução Bolchevique começou com um golpe de estado liderado por Vladimir Lênin e foi a primeira revolução comunista marxista do século XX. A Revolução de Outubro foi seguida pela Guerra Civil Russa (1918-1922) e pela criação da URSS em 1922. A Guerra Civil teve como único vencedor o Exército Vermelho (bolchevique) e foi sob sua liderança que foi criado o Estado Soviético. Lênin tornou-se, assim, o homem forte da Rússia, acompanhado por Trotsky e Stálin. Seu governo foi marcado pela tentativa de superar a crise econômica e social que se abatia sobre a nação, realizando reformas de caráter sócio-econômico. Contra a adoção do socialismo na Rússia ergueu-se uma violenta reação apoiada pelo mundo capitalista, opondo o Exército Vermelho aos russos brancos (liberais).

Canibais com suas vítimas, na província de Samara, em 1921.

O país que emergiu da Guerra Civil estava em frangalhos. Para piorar, em 1921, ocorreu a Grande Fome Russa que matou aproximadamente 5 milhões de pessoas. A fome resultou do efeito conjugado da interrupção da produção agrícola, que já começara durante a Primeira Guerra Mundial, e continuou com os distúrbios da Revolução Russa de 1917 e a Guerra Civil. Para completar, houve uma grande seca em 1921, o que agravou a situação para a de uma catástrofe nacional. A fome era tão severa que a população comia as sementes em vez de plantá-las. Muitos recorreram às ervas e até ao canibalismo, tentando guardar sementes para o plantio. (Não terá saído daí a fama dos comunistas serem comedores de criancinhas? Num documentário da BBC sobre o século XX, uma mulher, ao lembrar-se da fome, conta que sua mãe tentou morder sua filha pequena e que ela precisou trancar a mãe e fugir da casa. Bem, continuemos).

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80 anos – A linhagem sagrada de Andrei Tarkovsky

Andrei Tarkovsky (1932-1986): apenas sete filmes lhe garantiram um lugar central na história do cinema | Foto: Divulgação

Por Josias Teófilo 1
Publicado na Revista Continente e no Sul21 em 20 de outubro de 2012

Andrei Tarkovsky entrou para a história do cinema com apenas sete longas-metragens, cinco deles feitos na União Soviética e os outros dois na Itália e na Suécia, na década de 1980, já no exílio. Seu legado, entretanto, não é exclusivamente cinematográfico. Seguindo uma tradição russa de artistas que são também teóricos da arte – entre o final do século 19 e o começo do século 20, Tolstoi escrevera seu polêmico ensaio O que é a arte?, Kandinsky, o livro Do espiritual na arte, e Malevitch, junto com o poeta Maiakovsky, o Manifesto Suprematista –, Tarkovsky escreveu (“por falta de coisa melhor a fazer”, como ele dizia) um dos mais influentes e poderosos escritos teóricos sobre o cinema: o livro Esculpir o tempo.

Tarkovsky – cujo pai, Arseni, era poeta – nasceu num pequeno vilarejo a cerca de 350 quilômetros de Moscou, em abril do ano de 1932. A família com esse nome surgiu há aproximadamente sete séculos, e, até meados do século 19, o Principado Tarkovsky existiu na região do Cáucaso – sua linhagem espiritual, contudo, parece ser muito mais antiga do que a genealógica.

O apuro visual de A infância de Ivan (1962) | Foto: Divulgação

Depois de realizar o seu primeiro longa-metragem, A infância de Ivan (1962), que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, concorrendo com diretores como Kubrick, Godard e Pasolini, Tarkovsky partiu para um ambicioso projeto: retratar uma figura central da cultura e da ortodoxia russa, Andrei Rublev, pintor de ícones do século 15. A falta de informações existentes sobre a vida de Rublev, em vez de uma dificuldade, foi uma grande oportunidade para o seu gênio criador. O resultado foi um filme de 3 horas e 20 minutos, em preto e branco, com exceção da cena final, colorida, em que surgem os ícones dourados pintados por Rublev.

O épico Andrei Rublev: obra-prima absoluta | Foto: Divulgação

Ao fazer um épico sobre o pintor de ícones medieval, que incorpora uma tradição pictórica que vem desde Bizâncio, Tarkovsky não se liga a uma tradição de arte religiosa de inspiração cristã? O fato é que ele viveu num contexto político em que esses temas religiosos, se não proibidos, eram mal vistos pelas autoridades soviéticas, que então seguiam a cartilha marxista-leninista. Rublev, contudo, era uma símbolo internacional da arte russa, e o quinto centenário do seu nascimento ajudou Tarkovsky a aprovar ideológica e financeiramente o seu projeto.

Depois de pronto, entretanto, o filme foi apresentado ao presidente soviético Leonid Brejnev e, em seguida, censurado, sob alegação de passar uma imagem negativa da história da Rússia. Apesar da censura, o diretor do Festival de Cannes já havia visto a película e, junto à direção do Festival de Veneza, ameaçou não incluir mais nenhum filme soviético, caso Rublev não fosse permitido. O filme não só participou em Cannes como ganhou o prêmio da crítica internacional, o que possibilitou a sua exibição em todo o mundo.

O interesse de Tarkovsky na história residiu no profundo paradoxo entre a obra de Rublev, reconhecida universalmente pela serenidade e harmonia, e o contexto social em que ele viveu, de guerras sangrentas, fome e morte – tudo que foi retratado no filme e que desagradou as autoridades soviéticas. Terá Tarkovsky, homem de interesses metafísico-religiosos, vivendo em plena Guerra Fria na União Soviética, se identificado com a situação paradoxal de Rublev? A questão é mais ampla do que essa. Parece haver uma afinidade estética entre ele e o pintor medieval, e, mais do que estética, uma afinidade espiritual entre a sua arte imagética e a tradição iconográfica.

“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas” | Foto: Divulgação

Ídolo e ícone

No livro O ícone – Uma escola do olhar, Jean-Yves Leloup faz uma distinção entre ídolo e ícone. O primeiro seria qualquer forma de representação religiosa que prende o olhar em si mesmo, pelas formas, cores ou movimentos que chamam a atenção, provocando emoções. O ícone, ao contrário, não tem movimento nem profundidade, as cores e formas obedecem a padrões tradicionais. Nele, a transcendência é o fator essencial, a intenção é mostrar o “Invisível no visível, Presença na aparência”. Mas como relacionar uma arte tão antiga como a iconografia com uma tão nova como o cinema? Tarkovsky criticava tanto o modelo de criação cinematográfica que coloca a emoção como objetivo primordial, a saber, o modelo hollywoodiano de cinema comercial, como o modelo que coloca o intelecto no centro dessa atividade – os chamados filmes de arte.

Ele se mostrou profundamente decepcionado, por exemplo, com o que viu nos festivais de Cannes dos quais participou, de diretores como Fellini, Polanski, etc. Podemos dizer que o cinema que Tarkovsky rechaça seria como o ídolo de que fala Leloup? Para ele, “um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego”: a “função” do seu cinema é, portanto, essencialmente espiritual. Ele se recusava a usar cores vivas nos seus filmes (“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas”), repelia a expressividade excessiva dos atores (o recém falecido Erland Josephson, ator preferido de Bergman, afirmou certa vez, em entrevista, a imensa dificuldade em interpretar como Tarkovsky queria: sem emoção, de modo que o espectador pudesse livremente interpretar o que estivesse vendo). Além disso, ele dispensava o uso da música como muleta para produzir efeitos pré-definidos e, o que foi motivo da sua principal divergência com Eisenstein, negava os excessos da montagem.

Enfim, Tarkovsky buscava a pureza, podemos dizer até infantil, do olhar cinematográfico, que aspira a um hieróglifo da verdade – o mesmo poderia ser dito do ícone e sua tradição, com os quais Tarkovsky, desde muito cedo, teve contato em seu país natal. As semelhanças são profundas e podem indicar uma ancestralidade espiritual, coisa estranha a uma arte nova como o cinema, mas que é muito rica para a compreensão do fenômeno artístico como um fenômeno que transcende o tempo e o espaço.

1 Josias Teófilo, jornalista, é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovsky no filme Andrei Rublev.

Foto: Divulgação

Andrei Rublióv (Rublev), de Andrei Tarkovski

Eu não procurei este livro para comprar, eu cruzei com ele. Estava caminhando por uma livraria e dei de cara com o volume da Martins Fontes. Estranho, não era um DVD do filme, mas um livro de mais de 300 páginas escrito pelo próprio diretor e roteirista Andrei Tarkovski. Comprei imediatamente e não é que o tenha lido, eu o engoli imediatamente com os olhos.

Trata-se de um roteiro literário, que na verdade é um romance escrito por Tarkovski para servir de base para as filmagens. O  roteiro final foi escrito em parceria com Andrei Konchalovsky e parece  consistir apenas no acabamento dos diálogos e no corte de descrições e cenas, pois o livro (ou roteiro literário) possui 14 capítulos, 5 capítulos a mais do que o filme.

OK, mas porque tanta expectativa? Ora, pelo imenso filme de Tarkovski, um dos melhores de toda a história do cinema, pelo profundo humanismo que se desprende da história e pela grande carga emocional de um filme que parece não terminar nunca, tal a impressão deixada nas mentes de quem o vê. Com a publicação deste roteiro — falemos sério, deste romance — ficam inequívocas as intenções do cineasta soviético. Tarkovski pretendia mesmo discutir o papel do artista e da fé na sociedade. Se o palco é a Rússia (Rus) da invasão tártara do século XV, a alegoria serve a qualquer outro tempo e sociedade.  No livro, Rublióv está muito mais completo e complexo do que no filme, o que, se não significa uma obra de arte melhor — e certamente não significa — , significa explicações para vários trechos apenas intuídos.

Na leitura, capta-se melhor a personalidade do trio de pintores de ícones, perdidos ou indo de igreja em igreja na paupérrima e faminta Rússia medieval. Andrei é um jovem quieto e misterioso. Daniil é resignado, propondo sacrifícios a si mesmo. Kiril é esperto, lógico mas ciumento. O trio representa a Trindade do ícone mais famoso de Rublióv. As cenas — todas passadas por volta do ano de 1400 — nem sempre são contadas do mesmo ponto de vista, podem variar, assim como a ordem de apresentação delas é diferente no filme.

Andrei Rublióv é um surpreendente painel sociológico sobre a Rússia medieval. Os estranhos rituais, a fé, a necessidade da igreja para não passar fome, a busca da própria identidade, a busca da verdade. Há violência extrema na cena em que a igreja é invadida e saqueada, com o sacerdote sendo marcado por uma cruz incandescente. Ali, Rublióv perde a fé para reencontrá-la no filho de um fabricante de um sineiro, um menino que, sem saber muito bem o que faz e ameaçado de morte se não for capaz de forjar um sino, vai adiante movido por não se sabe o bem o quê– pela mera intuição, pela fé ou pela observação e desespero. Ali, Rublióv vai reencontrar deus e o espírito para voltar a criar beleza religiosa para um mundo absolutamente bárbaro.

O filme, de 1966, foi somente liberado em 1969, assim mesmo com cortes impostos pela censura soviética, que não aprovava a alegoria de Tarkovski contra a intervenção das instituições no trabalho do artista. Isto é algo quase não lê no “roteiro literário” do diretor.

Andrei Rublev: Trindade. Galeria Tretyakov

Melancolia, de Lars von Trier

Vi duas vezes Melancolia, de Lars von Trier. A primeira foi logo na pré-estreia, na primeira sessão do filme em Porto Alegre. Eu não podia deixar de fazer isso. Lars von Trier, Emir Kusturica, Peter Greenaway, Abbas Kiarostami, Roman Polanski e talvez Alexander Sokurov ainda mantêm viva aquela curiosidade que no passado tinha cada lançamento de Bergman, Truffaut, Tarkovski ou Antonioni. Destes, dos modernos, apenas von Trier, Kiarostami e Polanski têm vida comercial em cinema. Os outros estão em DVD e olhe lá.

Ontem, ao sair do cinema, depois de ver o filme pela segunda vez, minha mulher pôs em palavras minha opinião. Ela disse que achara Melancolia mais simples e inferior a Anticristo. Estou de acordo. Mas a produção cinematográfica de nosso tempo é tão lastimável que não me surpreendo com as loas que tecem à Melancolia como obra-prima e candidato a “filme do ano”.

A ação do filme centra-se menos no fim do mundo — o planeta chamado Melancolia aproxima-se da Terra e os cientistas são cétidos sobre se Melancolia vai passar ou bater…  — , mas na relação entre as irmãs Justine (Kirsten Dunst) e Claire (Charlotte Gainsbourg). O início é muito bonito plasticamente — momento em que lembramos da deslumbrante abertura de Anticristo. São dez minutos com a música de Wagner (Tristão e Isolda) que terminam com o maior dos spoilers: o choque entre Melancolia e a Terra. Ou seja, já de saída somos informados do provável final. Quem vê o filme pela segunda vez nota claramente a simbologia da abertura. Justine, vestida de noiva, tenta avançar mas está amarrada pelas pernas. Claire, charfurdando, leva o filho no colo para não se sabe onde, nem ela. Justine constrói com o sobrinho a “proteção” para o fim do mundo. Novamente Justine, de vestido de casamento, é levada pelas águas. Os planetas chocam-se.

Como ocorre com tantos bons filmes (lembrar de voltar a este assunto), Melancolia está dividido em duas partes. Estas têm os nomes das irmãs. Na primeira, Justine casa-se numa cerimônia de opereta. Poucas vezes vi uma depressão ser tão bem caracterizada. Justine não quer casar, não parece interessada, está de saco cheio de tudo, da vida, do chefe, do futuro marido e parece apenas dar importância ao pai brincalhão (John Hurt) e à irmã. Neste trecho do filme há muito que observar. É notável como retorna ali, perfeitamente reconhecível, o cineasta que criou o Dogma 95. A câmera está na mão de alguém nervoso, os cortes ocorrem com frequência e em momentos pouco habituais, as crises são resumidas por von Trier em “apresentação da situação” e “consequência”. Neste modo cinematográfico de mostrar os fatos, as falas nunca são longas. E como rende!

A narrativa aproxima-se do clássico na segunda parte. É quando Claire, que ama a vida, desespera-se. Justine, pelo contrário, parece conformada e ciente de tudo o que ocorrerá. Porém, seu bom senso e inteligência é complementado por desconcertante passividade, a mesma utilizada para entrar na fria de sua festa de casamento. Ela sabe de seu destino. E sabe que nada pode fazer a respeito. Cética, fatalista e paralisada, faz uma adivinhação surpreendente e, transformada em oráculo (Respondendo a meu filho Bernardo: acho que o número de feijões adivinhado apenas quer dizer “eu sei tudo”), revela para a irmã a verdade fatal: “a humanidade é má, a Terra não merece existir, não há deus, nem vida em outro planeta, esqueça”. Quando Claire balbucia uma reclamação sobre o futuro de Leo, seu filho, Justine não responde.

À medida que von Trier envelhece, fica cada vez mais claras suas influências: Tarkovski e Strindberg. Se Anticristo é dedicado a Andrei Tarkovski e é tão próximo a O Espelho (1975), Melancolia parece vir de Solaris (1972). Lá também a ficção científica foi utilizada para cogitar e interrogar o humano e a humanidade. Como nos filmes do russo, o olhar dos personagens para o céu e o para que não entendem reflete um mergulho em suas interioridades. Muitos, como o marido de Claire (Kiefer Sutherland), não suportam conviver com ela. É Tarkovski e não é; trata-se é uma continuidade. Uma vez, com entrevistadores mais inteligentes que os de Cannes, Trier disse algo mais ou menos assim: “Tarkovski é um deus real para mim. Quando eu vi O Espelho, Stalker e Andrei Rublev, mesmo num televisor pequeno, fiquei em êxtase. Se você quiser falar sobre religião, eu te respondo que minha relação religiosa é com Tarkovski. Ele viu o meu primeiro filme e o odiou… Mas eu me sinto muito próximo a ele”. O deus de Trier é punitivo…

Não estou com pressa de terminar hoje. Ontem, publicamos no Sul21 uma entrevista que fiz com o escritor Charles Kiefer e vejam só. Na entrevista também havia uma questão de troca identidade e revelação da verdade do leito de morte da mãe. Quando a mãe de Trier morreu, ela lhe contou que seu pai não era o judeu Trier, mas Fritz Michael Hartmann, de família católica alemã. Vários de seus novos parentes eram renomados músicos, etc. Após quatro encontros nada felizes, o alemão recusou-se seguir mantendo contato com o filho. Isso não explicaria a entrevista de Cannes, quando ele se disse “nazista” e não judeu? E como fazer para não olhar para a melancolia e Melancolia, quando ela aparece como uma enorma esfera pronta a nos aniquilar?

Anticristo, de Lars von Trier

Uma das palavras mais erroneamente utilizadas no Brasil é “anacronismo”. Usa-se muitas vezes para significar ruim. Porém, se crônico significa de acordo com Cronos, ou de acordo com nosso tempo, anacrônico é “em desacordo com nosso tempo”. Pois Lars von Trier é anacrônico no sentido que ainda faz um cinema com as preocupações que havia no cinema de algumas décadas atrás. Anticristo é um filme que permite tantas e tão ricas interpretações que, ao conversar com duas pessoas bastante inteligentes, tive que confrontar o que vi com outros dois filmes. O anacronismo de von Trier é mérito.

Mergulhei de tal modo no mundo de luto de Anticristo que não pude perceber a óbvia relação com o cinema de Andrei Tarkovsky. Ao acordar do transe, a primeira coisa que vi foi a dedicatória de von Trier: “This film is dedicated to Andrei Tarkovsky (1932-1986)”. E, consequentemente, é dedicado também a Bergman e Strindberg, se trilharmos em sentido anticronológico a linha que une os artistas que melhor mostraram sonhos em filmes e peças de teatro. Pois eu vi o filme de uma forma muito estética, relacionando tudo com sonhos e sua relação com a realidade. O apuro visual que me levou a isso descende claramente de Stalker e de Andrei Rublev (final). Porém, se em Tarkovski havia desengano, na história contada por von Trier traz-nos horror e desespero.

Anticristo talvez não seja filme de se rever. Às vezes, tive vontade de fugir dele, tal a crueza de algumas cenas. Houve uma em especial que “vi de olhos fechados” ou, para ser mais claro, espreitei o horror entre meus cílios. Na verdade, acho que não desejamos que ele vá tão longe, mas von Trier está resolvido a mostrar um luto e obtém cenas semelhantes a meu horror ao despedir-me de meu pai num quente 11 de dezembro e sentir que ele estava frio como nunca. O luto da mãe que não vê seu filho despencar pela janela enquanto mantinha relações sexuais com o marido deve ser enlouquecedor e é. A cena inicial e final são belíssimas e a ária de Handel “Lascia la Spina” é perfeita tanto para o luto que chega quanto para aquele que se vai:

Lascia la spina
cogli la rosa;
tu vai cercando
il tuo dolor.

Ou, em ridícula tradução de Milton Ribeiro:

Deixa o espinho
Colhe a rosa;
tu vais buscando
tua dor.

Von Trier não desvia da dor. Se o filme descende de Tarkovski, o cineasta que filmava como sonhava, Anticristo tem igualmente o gosto dos pesadelos com seus terríveis exageros verossímeis — aliás, a mãe brinca sobre Freud e os sonhos. Deste modo, não dei tanta importância à literalidade da história contada, mas a sua capacidade de produzir dor. E nisto von Trier caprichou… Apoiado em dois atores não menos que geniais — Willem Dafoe, com seu rosto naturalmente cortado a machado, e Charlotte Gainsbourg, cortado a estilete — , a narração entremeia cenas de indiscutível verossilhança com outras que mais parecem ter saído de um conto de fadas, para o bem e para o mal. Tudo muito bem pensado, tudo muito inteligente, muito dolorido e demasiado anacrônico para nosso tempo bestinha.

O que me passou batido: uma de minhas interlocutoras (minha amiga Lia Zanini) viu um filme diferente. Ela tem toda a razão ao dizer que já havia loucura antes da morte do menino. Há “provas” disso. Sim, a questão dos sapatos e a opinião do psiquiatra que falava num “luto atípico”. Ela baseou o que viu na loucura. Dou o braço a torcer em muitas coisas, mas não aceito a literalidade de cenas como aquela em que a mãe vê o menino cair. Em minha opinião, aquilo é sonho ou delírio.

O curioso é que nossa discussão foi em parte assistida por outra amiga, Vera Medeiros. Ao ouvir o que dizíamos, ela relacionou a história à questões mitológicas e religiosas, o que também é verdadeiro. Afinal, von Trier apresenta um filme cheio de referências bíblicas, como se Adão e Eva voltassem novamente solitários a uma floresta não por acaso chamada Éden. A mitologia? Ora, Édipo significa “pés inchados”. E se recontarmos parte da história de Édipo acabaremos por revê-la em Anticristo:

Apesar de um oráculo ter anunciado que, se nascesse deste casamento, o filho o mataria, Laio tornou-se pai de um menino. Para fugir à predição, Laio — após perfurar os pés do filho (daí Édipo = pés inchados) e amarrá-lo — ordena a Jocasta dar a criança a um pastor, que deveria abandoná-la no monte Citéron, para morrer. O pastor, entretanto, não cumpre a tarefa. Apiedado, entregou o menino a um outro pastor, condutor dos rebanhos de Pôlibo, rei de Corinto, ás pastagens de Citéron.

O Dafoe pastor do final do filme, a perfuração, o fato de ele ter sido abandonado para morrer. Tudo são variações: Tarkovsky, sonhos, loucura, Freud, religião, mitologia… E a maioria das pessoas vendo um filme que é apenas incomum e nojento em sua visceralidade. Que época burra.

Veja a galeria de fotos de Anticristo do J`adore le Cinéma

A citação da história de Édipo, foi retirada daqui.

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O comentário de Victor Hugo Lisboa é muito superior a meu post. Por isso, trago-o para cá:

Ô Milton! Sabe que eu não esperava nada desse filme? Só baixei uma cópia da internet pois fiquei curioso com a repercussão em Cannes. Como o trabalho de Lars tem seus altos (Festa de Família) e baixos (Dançando do Escuro), assisti Anticristo no meu notebook, sem grandes expectativas, temendo que nem valesse o ingresso do cinema.

E o que eu achei?

Cara, é uma Obra de Arte Fodástica, com “O”, “A” e “F” maiúsculos.

Quando, finalmente, estreou nos cinemas de Porto Alegre, decidi assistir Anticristo pela segunda vez. Toda aquela perfeição estética exigia o integral mergulho propiciado por uma sala escura e a telona. Ah, e eu também queria ver a cara do público no final.

Como toda Obra de Arte Fodástica, claro que Anticristo é suscetível à vários níveis de interpretação. Porém, minha opinião subjetivíssima é de que o filme consiste em uma alegoria tarkovskiana com fortes tons psicanalíticos (eu, pobre diabo, rejeitei e ridicularizei a psicanálise durante anos, mas hoje reconheço que era puro preconceito e ignorância da minha parte – coisa de guri, em suma; só depois de “velho” abandonei minha arrogância juvenil e reconheci o quanto há de verdade nas lições de Lacan e Freud).

Seguem, abaixo, anotações que fiz no dia seguinte à primeira vez que assisti ao Anticristo. São registros fragmentados e despretensiosos. Não recomendo que sejam lidos por quem ainda não viu o filme, e previno que não estou afirmando ser essa a única interpretação da obra de Lars. Mas, se não é a interpretação definitiva, ao menos é “beno trovato”.

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O filme foi acusado de ser misógino e contrário ao mundo natural, pois Lars teria afirmado, através de sua obra, que a mulher e a natureza são a fonte de todo o mal. É uma interpretação apressada. Na verdade, o filme é a alegoria de um homem que foi forçado a abandonar uma visão infantil, ingênua, da vida. Sua perspectiva idílica e idealizada do mundo e da mulher não mais se sustentou, mas ele ainda era incapaz de atingir a perfeita maturidade de aceitar as coisas tal como são, de modo que, em reação instintiva, fez um movimento pendular e agarrou-se a uma outra visão, também infantil e ingênua, da natureza e da feminilidade: a visão que as pinta com tintas negras, demoníacas – como a fonte de todo mal, em suma. Não é algo incomum. Basta lembrar que até hoje algumas tradições fundamentalistas ainda tratam a mulher e o mundo natural como espúrios. E mesmo nós, ocidentais, durante toda a Idade Média, associamos a natureza e a mulher ao demônio.

Um detalhe que quase ninguém reparou é que, quando o casal está trepando no banheiro, logo no início do filme, acabam por derrubar um livro infantil, onde há a figura de três animaisinhos em uma floresta retratada de modo ingênuo. Esses três animais, posteriormente, retornarão como verdadeiras criaturas diabólicas, terríveis, que sentenciam o caráter caótico da vida e denunciam o homem à mulher enfurecida. Por outro lado um desses animais “diabólicos” acaba por libertar esse mesmo homem mais tarde, revelando-lhe a chave inglesa escondida pela mulher, em retribuição pelo fato de o homem ter quebrado o piso da cabana, deixando que ele entre. Na última parte de Anticristo, o homem e os três animais olham-se como iguais, sem ressentimento, medo ou ódio.

É justo disso que fala o filme de Lars: do processo no qual o homem acabou de sair da visão idealizada da natureza do mundo, reagiu ao trauma considerando a vida natural como algo diabólico, e superou essa mesma reação imatura, por meio de um processo no qual teve de eliminar aquela imagem “adoecida”, incinerando-a.

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O filme também não é misógino, pela simples razão de que ele não aborda, em nenhum momento, a situação da verdadeira mulher: a mulher ali representada é a mulher interna do homem, a mulher psicológica, imaginária. A esposa assume integralmente seu papel de arquétipo quando afirma que as mulheres foram perseguidas e oprimidas pelos homens durante séculos porque realmente eram malignas: nesse momento é o complexo psicológico do próprio homem que lhe fala.

Sob esse ponto de vista, a obra de Lars é justo o contrário daquilo de que é acusada. Anticristo descreve a confusão masculina entre essa figura arquetípica e a mulher real que causa o “ginocídio” histórico, evidenciando o aspecto psicológico que há por trás das castrações de meninas no Egito e das milhares de bruxas queimadas pela Santa Inquisição. Enquanto um homem não souber distinguir entre as mulheres reais e as personagens que fantasmagorizam sua mente, jamais terá um relacionamento saudável até mesmo consigo próprio. No filme processo de superação dessa imagem psíquica já começa quando o próprio complexo maternal castra a si mesmo.

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O filho e o marido são a mesma pessoa: um complexo criança-homem. O filho observa a cópula do casal: descobre que a mãe não lhe pertence, que sua mãe o “trai” com o pai. Isso é um tema recorrente na psicanálise e, com certeza, Lars não estava alheio a esse tema, principalmente tendo em vista a profissão escolhida para seu personagem. Por isso, o menino morre: a ilusão da infância acabou, a sexualidade “promíscua” daquela mãe que considerava só sua introduz em seu mundo uma realidade complexa e dúbia, que mata a infância. Há um verdadeiro suicídio após testemunhar a relação sexual dos pais. A partir daí, há um homem que se refugia na estrita racionalidade, tentando lidar com o “problema” que é a mulher (ainda é um problema para ele, pois a figura materna ambivalente, opressora e sedutora, ainda não foi trabalhada) de forma fria e distanciada, com diagramas e palavras de ordem. Porém, logo afoga-se no seu ódio e medo da figura feminina, sentimentos decorrentes da ambivalência do desejo.

Observe-se que, após a morte do filho, é sempre a mulher que procura o sexo, de uma forma brusca, agressiva e, porque não dizer, “ativa”: novamente se percebe que se trata de uma mulher “masculinizada” em sua agressividade sexual – o complexo mal resolvido da mãe promíscua. A cópula é associada à morte.

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A mulher revela sua dificuldade de aceitar que os homens de sua vida se afastem, como quando coloca os sapatos nos pés trocados do filho e prende um peso à perna do marido. Quando o marido se arrasta para longe da cabana com o pênis ferido e a perna perfurada, a fim de proteger-se de mais torturas e morte, o discurso da mulher é o de vítima, de alguém que foi abandonada injustamente pelo seu homem. Por instinto, até hoje muitas mulheres sabem que esse discurso do “Bastard, where are you?” toca em alguns nervos psíquicos de todo homem, e utilizam-no. Como resposta, muitos homens secretamente desejariam colocar na fogueira quem assim atua.

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Quando o homem tem, em meio à dor e à loucura circundante, um lampejo de objetividade e racionalidade, e observa que a constelação dos Três Mendigos não existe realmente, ele estabelece o limite claro entre o real e o imaginário: é o marco entre o estado de criança e o estado de adulto. Não é por outro motivo que, logo após essa percepção, seguida do grito da mulher, surge o pássaro de baixo da casa, revelando-lhe o exato lugar onde está a “chave” para libertar-se do peso em sua perna.

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O homem entra no buraco, a mulher o enterra. Para que o homem escape do pesadelo em que lida com o complexo maternal, deve ir a fundo no horror: deve deixar-se matar, sufocar-se no útero da Terra, para que assim morram os resíduos da psicologia infantil que há nele. A fuga nunca é a solução. Em qualquer doutrina franca sobre a condição humana, de Lacan a Pema Chodron, a solução é sempre aceitar o medo e abraçar o horror sem julgamento.

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Os três mendigos não existem, de fato, como constelação, mas existem na Poesia: “the three beggars” é um poema de William Butler Yeats. Os três mendigos, aliás, já estão presente no início do filme, na forma de três estatuetas sobre a mesa que a criança usa para “suicidar-se” após ver a trepada dos pais.

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Na cena em que a mulher descobre que está ouvindo o choro de toda a Criação, e não da criança, ela tem a súbita percepção de que há algo de profundamente errado naquele universo. O horror passa a ser reconhecido. Enquanto escuta o choro universal, a mulher contempla seu filho segurando um pedaço de madeira junto aos instrumentos de carpintaria de seu pai (fato digno de nota: alusão ao menino Jesus?). Mais tarde, seria também com o mesmo pedaço de madeira que a mulher infligiria ao homem sua ferida genital.

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O horror representado pelos três mendigos (dor, depressão e desespero), o choro universal da natureza e as feridas na perna e nos testículos não podem ser evitadas: a “ferida narcísica” (alô Freud) deve ser vivenciada e aceita como tal. A cura está em compreende-los e aceitá-los sem reações de rejeição ou cegueira idílica. Tecnicamente, o discurso psicanalítico do homem no início do filme está absolutamente certo: o equívoco do espectador é achar que ele fala com a mulher, quando aquilo tudo diz respeito a ele próprio e a um processo que irá vivenciar em breve. Trata-se de um processo de superação da criança, com a difícil passagem para o mundo adulto.

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O homem mata a mulher e a queima. Subitamente, a natureza não é mais tão ameaçadora, pois sobrevive consumindo frustas silvestres. Na última parte, ele volta-se e encara os três animais, representantes das misérias humanas, e essas figuras míticas devolvem-lhe o olhar sem ameça e sem medo – um momento de reconhecimento, que antecede a última cena do filme, e que lhe é o pressuposto: nesse instante, não há recriminação, não há julgamento, não há rejeição. Aceitar a condição humana sem debater-se numa reação infantil de recusa cega ou de demonização do mundo é o primeiro passo para a maturidade.

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Na última cena do filme, mulheres sobem a montanha e passam pelo homem sem percebê-lo, desprovidas de rosto. Esse é o momento de redenção, em que o homem já não projeta no elemento feminino todos os seus traumas. As mulheres já não possuem rosto, ou seja, estão livres da projeção. As mulheres não interagem com ele, não representam ameaça nem provocam uma atração perturbadora, anormal. Está aberta a porta para que o homem lide com as mulheres reais tal como são: seres humanos.