Bienal do Mercosul 2009 – Artes Plásticas é (ou são) assunto perigoso…

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Fiz o passeio pela Bienal 2009 e… bem, o que dizer? Poderia me defender explicando que sou daltônico, porém Van Gogh também era e digamos que ele entendia da coisa. Outra consideração é que o que vi nada tem a ver com cor. E que há muitos, mas muitos filmes circulares e sem graça passando em salas jeitosinhas. Já me irritei muito com alguns artistas, e desta vez tomei a postura profilática de ir preparado para não me preocupar e amar a bomba. Pois não posso falar demais; afinal, acompanho de longe, muito longe, a produção de artes plásticas, sou um sujeito que lê menos do que gostaria e que passa 6 horas por dia ouvindo música erudita — agora ouço as Sonatas para Violino Solo , Op. 27 de Eugene Ysaÿe, fato que faço questão de ressaltar porque é música erudita razoavelmente moderna e da mais alta qualidade, o que provaria que ao menos meus ouvidos são contemporâneos pra caralho.

Chegando à Bienal, fiquei um tanto temeroso ao ver as pessoas que saíam dos armazens do cais do porto. Estavam apressadas e um tanto arregaladas, o que me fez pensar no que significaria aquele pasmo. Ou viram maravilhas ou tinham sofrido um esmagamento estético.

Então, iniciei minha racionalização. Tenho 52 anos, mas vou olhar para tudo com olhos inexperientes. Tinha que me desarmar a fim de não me tornar afirmativamente idiota (ver segunda réplica). Quando entrei, já tinha 16. É um fato indiscutível, apesar de surpreendente: eu já tive 16 anos.

(Sim, em 1973, havia muita novidade para ser julgada, talvez mais do que hoje. Pensem que o Pink Floyd estava lançando Dark Side e que eu era roqueiro, Picasso morrera em abril – estou em novembro de daquele ano -, Pinochet matara Allende há dois meses, a guerra do Vietname recém acabara, o grupo que mais vendia discos – LPs! – era o Led Zeppelin, a ditadura estava no ar, líamos Quarup de Antônio Callado (ainda acho que é excelente livro), Dali fazia declarações de amor a Franco, JL Borges estava alive and kicking (mais alive do que kicking), havia um jornalzinho chamado O Pasquim, etc. Não pense que cito isto para dizer que minha juventude foi melhor que a de hoje. É que os mortos ou finalizados têm uma aura meio fabulosa. Se Maurizio Pollini já tivesse morrido talvez já fosse o maior dos pianistas, como não morreu ainda, temos que aguentar as discussões).

Outra surpresa: viram?, eu lembro muito bem como era.

E outra: por um mecanismo que não conseguiria explicar, mas do qual tenho convicção epitelial, digo que a maioria de nós é mais preconceituosa nesta idade do que depois. Naquela época, eu andava de lá para cá com meus adesivos, tentando colar rótulos em coisas e pessoas. Depois, a gente desiste pois cada rótulo está associado a um contexto e o quem é revolucionário aqui é bombeiro ali e vice-versa.

Feliz ou infelizmente, a arte, mesmo a literatura, está virando coisa de especialista. Precisa de manual de instruções, como Stanley Kubrick defendeu uma vez. Ele achava que ficar pensando cinco anos sobre um filme para depois as pessoas darem-se conta de apenas 10% do que estava sendo mostrado era desmotivador. E ele nem conheceu Chico Fireman.

Hummm… Vamos direto às conclusões: achei fraquíssima a Bienal. Não entendi as charadas? Certamente não!

Edward Said escreveu que não existe mais a possibilidade de um discurso comum porque, em primeiro lugar, nossa formação é extremamente especializada e, depois, porque todo o aparato financeiro está voltado para a fragmentação do conhecimento. È vero. Então, a cultura parece que começa a dialogar apenas com seu meio de uma forma tão esquizofrênica que nenhum Led Zeppelin atual cheio de novidades poderá superar as vendas da Shakira bonitinha, chatinha e sem maiores novidades do que um bom traseiro. Este hipotético Led formará apenas um consideráravel círculo de iniciados assim como o Radiohead ou David Lynch possuem. E este será seu máximo. O mundo todo parece desejar fazer de Roberto Bolaño um cânone (inclusive eu) , mas acho que será um cânone de pouquíssimos leitores compreensivos.

Agora, reduza os parâmetros até a pequena literatura brasileira ou às pequenas artes plásticas que chegam à pequena e provinciana Porto Alegre.

É horrível de dizer mas o público comum ou o “povo” — ainda mais o nosso — está cada vez mais longe de entender algo um pouco mais complexo ou especializado. Os romances mais lidos têm a mesma estrutura dos de Balzac. A música mais ouvida é mais simples que a dos Beatles. A música erudita moderna é ainda um desafio para a maioria dos apaixonados por música erudita – e veja bem que neste caso já estamos na fatia mínima da fatia mínima. Então, para alguém ser tocado significativamente por uma obra de arte, há que ter conhecimento de uma rede cada vez mais intrincada de referências às quais poucos têm acesso.

Em resumo, creio que daqui há poucos anos, cada vez menos pessoas saberão que os méritos do primeiro movimento da Sonata Nº 2 de Ysaÿe estão no fato do autor ter realizado uma brilhante “desconstrução” de uma Sonata de Bach para o mesmo instrumento solo. Se o ouvinte não tiver isto em mente, babaus, pois apenas alguém com um referencial rico poderá entender e fruir. Quem não tiver, ou ficará quieto ou ficará feito um bobo criticando a estupidez daquilo que lhe é e sempre será irremediavelmente alheio.

É algo de nosso tempo, acho.

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42 comments / Add your comment below

  1. Manhas de poeta

    O poeta passou a manhã inteira experimentando suas imaginárias asas, de pé sobre o muro que separava a cobertura do abismo doze andares abaixo. Ninguém, contudo, deu importância a isso, sabendo que o poeta sabia muito bem a diferença entre suas metáforas, pretensões e a realidade mais tacanha de ser um agregado na casa de uma sobrinha.

    Ali ficávamos nós o dia inteiro nos finais de semana, mergulhando na pequena piscina, tomando porres e jogando cartas. O poeta não fazia nada disso, normalmente sequer subia à cobertura, preferindo mirar, à janela de seu minúsculo quarto, um paraíso perdido, escrito em uma língua que ele sonhava inventar, mas tudo que produzia eram alguns versos escassamente publicados em livretos bancados, mais uma vez, pela sua sobrinha, que o tinha por gênio incompreendido.

    Lá estava ele de pé sobre o muro. Durante umas boas três horas, ainda tememos que ele se jogasse; depois, passamos a cuidar de nosso lazer, para ele expressão da bestialização humana, ignorando-o por completo. E assim passaram mais três horas, com alguém às vezes olhando aquele velho de fisionomia macerada abrindo pateticamente os braços, até que ele disse em voz bem alta:

    – Nesta noite a primavera se perderá para o verão.

    Ora, nada mais óbvio, de fato o verão se aproximava, não naquela noite precisamente, talvez na semana seguinte, eu tentava me lembrar quando exatamente, mas uns dois palermas que estavam ao meu lado cismaram de tentar interpretar as grandes palavras enunciadas como verso seminal de um gênio incompreendido.

    Pouco depois, perdemos o interesse e nos voltamos para as cartas, logo após o almoço. Dada hora alguém lembra-se do velho (cujo nome sonoro agora me escapa, mas assemelha-se a umbrella ou qualquer outra palavra semelhante em língua estrangeira), olha para a murada e ele não está mais lá. Corremos e nos debruçamos, olhamos para baixo e… nada. Nenhum rebuliço. Será que já levaram o corpo, varrido como lixo?

    Não foi isso. Quando nos viramos para outro grupo de jogadores, lá estava ele, em meio a uma enorme discussão. Nos aproximamos e ouvimos de todos reclamações e xingamentos, enquanto o poeta segurava suas cartas com uma disposição fanática. O que está havendo, nos dizem, é que esse filho de uma puta está roubando nas cartas!

      1. Hum… bem, não vejo, talvez porque estivesse pensando noutra figura sem qualquer afinidade estética ou histórica com Kafka. Mas essas coisas acontecem; os contos de Kafka, como os de Tchekóv, forram nossa cabeça e, sem que notemos, lá tão eles metidos em nossas coisas…

  2. O rock voltou a ser o que era em sua origem nos anos 50: música sem conteúdo para adolescentes. Depois de seu enriquecimento nas mãos de músicos com formação erudita (John Paul Jones, Rick Wakeman, Richard Wright), jazzística (Van Morrison, Ian Anderson) e do blues (Eric Clapton, Jimi Page), hoje não passa de uma fórmula que institui vozes e solos todos iguais, com a cansativa pose de rebeldia sem fundamento. Ainda acho que o Radiohead é a única banda atual que se salva, ainda que não chegue perto da inspiração secreta deles, que é o King Crimson.

    Bolaño não vai sobreviver vinte anos. Na literatura hispânica tem-se vários exemplos de escritores heróis cujo único mérito de lembrança que conseguiram foi o dar seu nome a um prêmio. Quem se lembra de Rômulo Galegos? Do Manuel Scorza? Do Miguel Angel Astúrias? E mesmo Júlio Cortázar tem seu Jogo da Amarelinha se empoeirando nos arquivos tipográficos de uma editora há muito falida.

    Bolaño é um exemplo positivo, ainda que apiedante, de uma ação midiática para instituir um cânone (como bem você disse) numa época em que a literatura hispânica é assustadoramente desértica. Em sua escrita compulsiva, Bolaño perdeu as duas posições que determinam a prevalência de um escritor para a posteridade: a modéstia confortadora, que seduz a necessidade de uma leitura de férias num quarto de fazenda ou num banco de praça, como é o caso do Mário Benedetti; e a solidez de uma inabalável constituição vertical, que exige não só a leitura, mas a devoção da vida do leitor, como Borges, Garcia Márquez, possivelmente Sábato. Em suas mil páginas, não garantiu a coerência no meio do caos que Pynchon produziu tão bem, mas o peso nas mãos do leitor futuro do por que ter-se abatido tantas árvores para algo tão passageiro. Seu 2666 vai produzir a mesma culpa do “A Canção do Carrasco”, que ganhou o Pulitzer e deu fortuna ao Mailer, mas que é ilegível não do modo joyceano, mas por ser sem sentido e supérfluo.

    Quanto a arte para especialistas, sua menção do Said é uma das minhas preferidas da obra desse autor que adoro. Diante o futuro da não leitura, contudo, esse problema se torna bem mais complexo. Não se pode simplificar a escrita para angariar leitores. O leitor que deve se render ao escritor que pretende ler. Ou seja, a única especialização exigida para a leitura é a do aprimoramento da aceitação musical do leitor à sinfonia do texto. Quanto mais lê, mais vai tornado-se acessível à riqueza do texto. Demorei conseguir ler Ulisse, mas quando o fiz, o devorei em quatro dias, radiante de tanto prazer e morrendo de rir.

    Pouco se fala de Sebald, de Nooteboom, de Coetzee, escritores contemporâneos que por exigirem um pouco mais do leitor, acabam sombreados por esses outros para os quais a medida da preguiça é equivalente.

    1. Talvez algum rock ainda seja uma música COM CONTEÚDO PARA ADOLESCENTES. Varridas as pretensões progressistas, os arroubos técnicos, voltamos ao básico e depois veio a quase completa diluição. É como o Tom Zé, que admite trabalhar com fragmentos dejá vu, mas sem o, desculpe, tom professoral, para iniciados e espertinhos em geral.

      Não arriscaria dizer que Bolaño será esquecido. Não arriscaria dizer que não será esquecido.

      Não diria que A Trégua, de Benedetti, e outro romance dele recentemente publicado no Brasil, cujo título me escapa, é de uma modéstia confortadora; talvez de uma pretensão menor. Aqui cabe a discussão Todorov, com quem concordo no sentido de que quanto mais a literatura se tornou hermética menos leitores ela seduziu; hermetismo não é qualidade quando reflete um projeto de “complicação voluntária” para seduzir teoricistas. Dostoiévski é quase sempre folhetinesco em suas tramas, assim ele pegava o leitor russo pelo melodrama e o jogava na parede com a subliminar (ou nem tanto) discussão acerca da cultura russa e as pressões do desenvolvimentismo à européia. Vai por aí.

      Portanto, nem é para se simplificar a escrita para angariar leitores e nem para complicar e ganhar o carinhos de leitores profissionais, mas fazer da literatura algo vivo e integrado ao mundo, como Cortázar fez em seus contos e não como planejou no Jogo de Amarelinha, um esforço de virtuosidade para ganhar respeito e, se possível, o Nobel.

      “Quanto mais lê, mais vai tornado-se acessível à riqueza do texto”; talvez, mas a literatura é para todos, não para alguns que diozem que se a literatura não é para nós, os poucos, ela não presta, não sobreviverá, etc. Tô com o gramáatico Bechara, para quem Grandes Sertões: Veredas só seduz acadêmicos e provavelmente (outro prognóstico que não dá para assinar embaixo) será esquecido. Não sei, mas eu torço para que seja.

      Sebald para mim é irrelevante, e não conheço mesmo Noteboom (sei que há um ou dois livros dele por aí, mas não acho e não tenho corrido atrás); quanto a Coetzee, li quase todos os livros dele editados no Brasil, é autor interessante, gosto d’O Mestre de São Petersburgo, Desonra, Vida e Época de Michael K (é isso?) e Juventude, abordando questões muito diferentes mas com formatções equivalentes. Há também um livro dele meio O Dseter dos Tártaros… acho que é A Invasão dos Bárbaros, também interessante. Mas a literatura também tem suas limitações; escritores e leitores tem que conviver com elas e baixar um pouco a bola, senão vamos todos para Bizâncio, e nunca mais ouviremos o bom e velo rock’n’roll, e lá, quando tocar Bach, ficaremos a sonhar com sublimes arquiteturas filosóficas, esquecendo a alegria de dançar mentalmente aqueles temas na maior parte das vezes divertidos.

      1. Sei que dei a entender isso, mas quando defendi uma literatura não facilmente absorvível, não estava me referindo à complicação só pela complicação. Dostoiévski mesmo é um escritor que exige empenho. A literatura voltada unicamente para entretenimento é sopinha de letras, mero preenchimento temporal para satisfazer a hora que não chega de buscar o filho na escola ou o aviso de seu nome pelo dentista. Um amigo aqui que sempre me ve com um livro, pediu-me algo deglutível, emocionante, que lhe prendesse a atenção. Emprestei-lhe “Nosso Homem em Havana”, para mim um livro que é tão emocionante como o melhor filme de ação (como os da série Bourne, p. ex.). Só fui receber a obra de volta tendo que ir à casa dele para resgatá-la, não lida e com a reclamação de que o não entendimento das páginas iniciais o desmotivara. Curso superior e tudo, e achou Graham Greene intragável. Não tenho Dan Brown; e ainda que tenha lido quase tudo de Stephen King, o troco sempre em sebos.

        Sebald é uma das maravilhas das letras atuais_ lamento sua morte precoce. Restituiu uma literatura memorial há muito esquecida, dando-lhe uma sofisticada pureza para tratar sobre as sequelas que o século passado deixou na humanidade. Nooteboom teria tudo para te agradar (Marcos), pelo que nosso convívio aqui parece me dar a te conhecer. E nenhum destes é “difícil”, antes o oposto, mas exigem espíritos da mesma altura do propósito destas obras.

        Novamente exponho que a literatura não é para todos. O livro que escolhe o leitor_ e escolhe leitores entre leitores, como é o caso de que jamais terá o prazer de ler “As Aventuras de Augie March” porque se antipatizou com Bellow numa má escolha. Assim não saberá que Bellow já fazia, há 56 anos, o que Bolaño tentou mas não conseguiu.

        Concordo: “Nevermind” do Nirvana é um puta disco, do mesmo nipe do “Nevermind” dos Sex Pistols.

  3. Marcos, só para você ter uma ideia, li um texto do Vila-Matas em que ele lê um conto para uma turma de alunos, dizendo se tratar de um dos contos mais difíceis do século XX. Qual conto? “Gato na Chuva”, do Hemingway.

    Obtem boas interpretações de alguns alunos, mas a maioria acha o texto incompreensível. Se hemingway o simplificasse mais, tudo reduziria a uma explicação colegial. O incompreensível neste conto é a cadência espiritual que o autor empregou, coisa que para uma sociedade imediatista pouco tem repercussão. Por detrás das três páginas deste conto, o leitor arguto pode intuir desde os casamentos infelizes do contista, até a previsão de seu suicídio. Esse o tipo de “complicação” na literatura que é salutar.

    Aposto que alguns dos alunos que não entenderam, voltaram para casa com a história na mente, e puderam até desenvolver temas tendo o conto como base. Essa a grande literatura, e não uma esfinge sem segredo de alguns autores franceses atuais.

    1. Creio ter lido o mesmo livro do Vila-Matas (não é aquele cheio de reminiscências sobre o aprendizado literário/existencial dele em Paris?) mas, de qualquer maneira, lembro da leitura dessa abordagem sobre o tal conto; desnecessário dizer, considero Hemingway mais um desses casos de supervalorização literária, compatível ao de Fritzgerald; o conto gira em torno de alguma coisa sexual, acho, mas pra ser sincero, esqueci. Pior: também não dou a mínima para o Vila-Matas, cujas invenções dependem das alheias de forma excessivamente direta, além do que é um blasé insuportável (não pessoalmente, pois nunca o vi mais gordo, mas pelo que ele escreve, sempre em busca de um efeito que é uma piscadela tediosa para o leitor iniciado que, como ele, suporta a literatura porque é o que lhe resta da vida). Bá, abordagens diferentes, aquela coisa de não dar a mínima pro sofrimento, um, e outro considerar o sofrimento base imprescindível pra literatura, filosofia, etc.

      Não confundir, é óbvio, literatura com comércio, a que se dedica Dan Brown e outras figuras do nível (há uma mulher aí que escreve sobre vampiros e coisas afins, tão ruim que nem o Stephen King gosta). Não se trata de escrever fácil porque se quer vender, mas não escrever voluntariamente difícil porque se está a fazer “literatura”, coisa de semideuses, é preciso pestanejar muito, polir a linguagem, ser um virtuose na descrição das roupas femininas do século XVIII, e sei lá mais quais frescuras. E se literatura fosse para poucos, ela não teria chegado até esse que vos escreve, de origem suburborural, talhado para os livros de bolso de bang-bang, leitura exclusiva de jornais esportivos e ouvinte dos sucessos do momento, etc; como não me vejo como exceção, porque não sou mesmo e conheço muitos outros como eu, vejo que a literatura poderia ter um contingente maior de interessados, à parte aqueles que, apesar de seus cursos superiores, tem mais a fazer com seus números e receitas e tecidos e nervos e falanges e estruturas e fibras ópticas e raios que nos partam a todos.

      Sex Pistols é aquilo de música de três acordes pra acabar com a frescura reflexiva que em rock não funciona bem, à parte as baladinhas e coisas do gênero; se é pra fazer esporro, nada de frescura, nada de sutileza, que somos jovens, não temos futuro ou o que temos não nos interessa, e por aí vai; problema: depois vieram os punks de boutique (aliás, até os Pistols era da boutique Sex…) e por fim os “emos”, esses sertanejos que batem nas guitarras. Restam os dinossauros, os resquícios dos anos 80 e, no fim de tudo, o Nirvana; o resto é tributo, por mais divertidos que possam ser, por exemplo, o Blur e o Franz Ferdinand.

  4. Bom, vou dar a cara para bater. Vai ser um prato cheio para quem quiser deitar e rolar. Divirtam-se.

    Sou meio bugre, entendam. Mameluco mesmo, mistura de índio e português. Bagaceiro, como definiu-se o Farinatti. Então, acho que sou um pouco do problema dessa ‘terra brasilis’, para o bem e para o mal. Minha mãe tem o primário incompleto, e não tive contato com meu pai durante minha infância (duas ou três visitas protocolares lá pelos meus oito anos, por ordem do juiz, e depois ele esqueceu, pois a família dele era a mardita cachaça). Meu irmão mais velho lia quadrinhos e ouvia Led Zeppelin – ao menos até seguir o mesmo caminho de nosso velho, e passar a ler e ouvir cachaça. Sou o primeiro da família a ter faculdade (Federal porra). Não to falando para que sintam pena, só circunstanciando sociologicamente minha maleita, para a vergonha a seguir não ser tão grande.

    Não sei porque cargas d’água, lá pelos nove anos, eu vi o fantoche de um leãosinho, no Bambalalão, falando sobre um tal de Hamlet, uma história de um cara que fingia ser louco para poder descobrir o assassino do pai, após ser avisado do crime pela aparição fantasmagórica do velho. Essa versão tosca da obra do bardo me deixou fissurado. “Pô, que tri!, uma história de detetive passada naqueles castelos europeus, com fantasma, assassinato e o cara disfarçado de doidão!”. Corri pra biblioteca do SESI de Esteio (de onde roubei alguns livros mais tarde, na adolescência). Peguei o tal “Hamleto” (tradução casta, rigorosa). Não digam que entendi merda alguma, porque alguma coisa eu peguei. Já deu para perceber que havia algo de, por assim dizer, dúbio, profundo, complexo, sofisticado, provocador, naquele lance – ao menos mais do que o fantoche do leão deu a entender. A loucura de Hamlet não era assim, tão planejada, o fantasma não era tão assustador quanto triste, e o fim de Ofélia calou fundo. Fiquei abalado. Morre todo mundo no final? O que isso quer dizer? Talvez eu não saiba até hoje.

    O fato é que, a partir dos nove, desembestei num processo de culturalização capenga, assistemático e autodidata, no qual procurei saber o que era “literatura”. Gostei daquilo. E dá-lhe pegar emprestado livros das bibliotecas do Sesi de Esteio e também da minha escola. Um lado do problema é que a seleção era absolutamente aleatória, na falta de qualquer “mestre” (e saco de emular um mestre): Molière, Arthur C. Clarke, Shakespeare, Conan Doyle, Dostoiévski, Lovecraft, Guimarães Rosa e Agatha Christie tudo junto, literatura e “paraliteratura” misturado. E os quadrinhos que herdei do meu irmão ali, juntos: Heróis da TV e Superaventuras Marvel. Não havia distinção alguma entre um bom gibi e um bom conto do Edgar Alan Poe. Cada um tinha sua proposta, suas limitações e, dentro dessas limitações, cada forma de expressão tinha sua beleza, sua excelência, suas qualidades.

    Esse, claro, era o outro lado do problema: o lixo da cultura pop que eu mastigava junto com a suposta erudição auto-ministrada. Eu sintonizava na Rádio União FM para gravar numa fita K7 as obras do Villa-Lobos, Debussy e Bach (vou poupar vocês da história de como conheci a música clássica – de nada), mas depois ligava na Ipanema FM para gravar também Iron Maiden, Led Zeppelin e Motorhead. Assistia na TV Bandeirantes, sábado de noite, a versão integral e legendada de Ran do Kurosawa, mas depois mudava de canal para ver A Noite dos Mortos Vivos. Lia O Processo de Kafka com o gibi do Homem-Aranha do lado. Eu era tão tosco, e sou tão tosco até hoje, que conseguia curtir as duas coisas. Sou tosco porque não percebo o real sentido e significado de uma grande obra erudita, sem dúvida e sem ironia, pois não duvido daqueles que me informam disso.

    Mas o fundo da minha maleita não está nessa tosquisse, pois isso seria até curável. O fundo da minha maleita está em que não me envergonho dessa educação assistemática, em que aprendi devorar uma suposta erudição que não consigo digerir totalmente e o lixo pop que embrutece a nossa sociedade. Porque, ainda confiante na vida, eu acho que o fundamental em qualquer experiência artística (o fundamental para mim, na minha “subjetividade subjetivíssima” – não estou impondo isso a ninguém mais) é a “ludicidade”, e o prazer de deixar-se levar pela obra do autor. E isso eu aprendi, sem preconceito, sem distinções, a encontrar nas obras dos mais inusitadas.

    Por isso, entendo a indignação/dor/descontentamento do Milton, que o levou a escrever esse ‘post’, mas não compartilho. Porque faço parte da invasão bárbara, o canto dos civilizados ao verem seus muros rompidos pela horda inculta não me desperta piedade.

    Por isso, também, assino embaixo: literatura é para todos. Há livros que são para poucos, há livros que escolhem seus leitores. Mas são acidentes de percurso. A literatura, em si, é para todos. Sei que usei ali em cima a expressão “paraliteratura”, mas no fundo abomino esse preconceito. Também não gosto da expressão “literatura comercial”. Claro que há arte comercial, mas essa qualificação sempre tem algo de pejorativo que não me agrada. James Joyce, Pynchon, Guimarães Rosa, e Proust não se são acessíveis para todos? Pois pior para o James Joyce, Pynchon Guimarães Rosa e Proust. Isso não diminui a qualidade intrínseca de suas obras, mas é digno de lástima profunda e veemente. Um ponto a menos para eles: uma qualidade que o mais morrinha dos escritores de fábulas de autoajuda tem, mas que eles não tiveram o alcance de conquistar.

    E Nevermind e é do caralho mesmo. Agora com licença que estou baixando a discografia do Lynyrd Skynyrd. Vai ficar do lado da pasta do Lalo Schifrin, que baixei no PQP. Recomendo a quem curte Radiohead a ouvir Sigur Rós: essa banda coloca os britânicos no chinelo.

    1. Pois é, como eu queria demonstrar.

      Para seguir no mesmo tom pessoal, o primeiro livro que li foi Pinóquio, de Collodi (é assim que se escreve?), edição de bolso, mas só texto, sem ilustrações. Livro soturno pra caralho. Me lembro de ficar assutado enquanto lia. Muitos sentimentos conflitantes. Não recomendo para nenhuma criança de 5 anos ler: confunde todas as verdades e as mentiras, coisa que não é boa para quem tem 5 anos e precisrará descobrir depois que o mundo não é expressionista, mas um caos mesmo. Depois dessa leitura terrificante, enveredei em Monteiro Lobato, a coleção inteira, mas não gostei das Reinações de Narizinho e das Aventuras de Pedrinho – preferi A História do Mundo para Crianças, Dom Quixote para Crianças, e o terror de A Chave do Tamanho. Tem um volume (cujo título esqueci) que conta a descoberta de petróleo no Sítio do Pica-Pau Amarelo que servia como educação política infantil… Óbvio que, aos 8 anos, já era um pervertido a sonhar com ninfas, Vênus, Psiquê e as minúsculas mulheres nuas d”A Chave do Tamanho… O resto foi trabalho bem feito do capeta, em meio a partidas de futebol, pipa, bolas de gude, pegar manga da árvore, correr de cachorro louco, gazetear e atirar nos pombos com espingarda de ar comprimido. Tudo junto, dá em nada, que é o que sou.

      1. Eu , aos 18 meses, comecei a ler a teoria da Relatividade restrita (ou especial); aos 24, já dominava completamente a teoria da Relatividade geral e, aos 36 meses, tornei-me um inveterado engazopador; aliás, traço de caráter que, por sinal, admiro e aprecio exibir, principalmente, quando estou a escrever de maneira adjacente a um indomesticável bravateador.

        1. Tá ruim Ramiro, seu iletrado! Enquanto você engatinhava na Teoria da Relatividade geral, eu já descobria o fiasco que seria o experimento EPR, era adepto do paradoxo quântico e, nas primeiras semanas de vida, já prevenia meus pais que Deus jogava dados com o universo e que, para eles, o jogo tinha resultado no nascimento de um capeta pernóstico!

    2. Ah, Victor, gostei disso:

      “Por isso, entendo a indignação/dor/descontentamento do Milton, que o levou a escrever esse ‘post’, mas não compartilho. Porque faço parte da invasão bárbara, o canto dos civilizados ao verem seus muros rompidos pela horda inculta não me desperta piedade”

      …porque sinto a mesma coisa. Esses lamentos são, no máximo, engraçados, mas também, no mínimo, escrotos. Enfim, um jeito meio punk de ser, herdado das quebradas do inferno.

    3. Escrevendo um projeto, ouvindo a Cantata BWV 80, lendo e rindo dos comentários de vocês que me chegam por e-mail…

      “Indignação/dor/descontentamento do Milton”? Nada disso, sou contemporâneo pra caralho. Sério, vcs nem imaginam… Estava falando das instalações mesmo, não sobre música de três acordes que até gosto de ouvir de vez em quando.

      Amanhã, vou escrever sobre as Variações Goldberg. Ou sobre o show do Guinga com o Zé Nogueira que verei às 21h. Vou dar uma segunda chance ao Guinga.

      1. Ah, mas que teu texto tem um tom de lamento e nostalgia isso lá tem e muito! Poderia até ser intitulado Parece que foi Hontem que eu ainda Phodia…

      2. Milton, comentário totalmente fora da discussão, mas eu preciso perguntar:

        Hoje recebi um conjunto de perólas de um vestibular de música, e me diverti muito. Se você tivesse e-mail, teria te mandado. Coloco num comentário, esqueço o assunto, recebo teu e-mail e mando?

        Só pra dar um gostinho:
        12. Os maiores compositores do Romantismo são: Chopin, Schubert e Tchaikovsky. No Brasil temos Roberto Carlos e Daniel.
        13. Música cantada por duas pessoas é um DUELO.

    4. To te tirando Milton. Já dá pra sacar nas entrelinhas a tua ‘contemporaneidade’… beeem nas entrelinhas.

      Ô Marcos, “História do Mundo para Crianças” revolucinou minha infância. Sério, toda criança devia começar a conhecer História a partir daquilo, o Monteiro Lobato tinha a manhã.

    5. caras, eu só li – por enquanto – até a Biografia do Victor (afudê), mas tenho q parar pra dizer q tá mto bom tudo isso aqui. vcs são loucos e não param e eu não tenho tempo, mas não parem, depois me arranjo, me recupero, leio tudo e volto a elogiar, fazer o quê.

      mas, ó, serei curto, prestem atenção. vim ao post com uma melodia na cabeça. fazia mto q ela não me vinha. o q seria? pensei exatamente em king crimson e aterrissei aqui. aí li o milton e o charlles. depois o marcos e o victor. aí lembrei q era Catch the Rainbow, do Ritchie Blackmore q eu ouvia. E depois li o q seria óbvio aparecer: Radiohead. E depois Victor me antecipou citando Sigur Rós. Alguém terá citado Mogwai? Pois ouçam Mogwai. E, se não for pedir o bastante, Arcade Fire. Sigo lendo.

        1. Arbo, todo mundo fala muito bem do Mogwai. Já tô baixando. Recomendo também o Beirut. Recomendadíssimo.

          Blackmore é uma lenda. Ele e o Dio (“o cara”, realmente) eram uma dupla insuperável na época do Rainbow. Pena que o ego do Blackmore foi sempre tão inflado.

    6. Um dia eu conto pra vocês. Estou indo para uma reunião agora onde o maior dos meus problemas é que eu não sou passadista e os caras de um partido aê são.

      E como!

  5. Victor, estava sentindo falta desse teu alter-ego suburbano, melhor que o adepto à psicanálise freudiana. (Só para não esquecer, me vi comentando com o turco amigo meu tua história do Jung, invocando-o ou não, Ele está aqui: belíssima).

    Ou eu sou muito burro mesmo e não consigo concatenar uma conjunção adversativa com um advérbio de intensidade, ou vocês estão usando de má fé com meu comentário. Quem vê a sua história de vida, muito parecida com a minha (cachaça paterna, bastardia e uma pobreza atróz na infância), pode pensar: “esse charlles é um daqueles com pompas de grã-fino, tirando onda com um distinto elemento do povo dando uma de aristocrata”. O tal “literatura não é para todos” é uma verdade que achava então incontestável de tão firmada na base do nariz. Queria mesmo que você, Victor, e eu, fôssemos os 99%, e não a excessão à regra. O livro como material acessível é para todos. Na biblioteca mais vagabunda se encontra a bibliografia completa do Shakespeare e do Dostoiévski, mas neguim vai lá folhear as antigas enciclopédias médicas atras de mulher pelada, ou as Caprichos e revistinha da Mônica, deixando de lado a maravilhosa Mafalda.

    Não adiante ganhar o Ulisses, novo e caríssimo, se o sujeito não tiver o estalo de predisposição de aquelas 800 páginas são suportáveis. Enquanto o Hamlet te escolhia, teus colegas de quarteirão se dedicavam ao atari (se tu tiveres 35 anos como eu), ou coisas do tipo.

  6. Aliás, sou especialista em quadrinhos, li todo Conan Doyle, Lovecraft, e sou roqueiro que um dia teve banda. Arcade Fire é muito bom, assim como Interpol. Sigur Rós, mediano, prefiro o Radiohead.

  7. “Isso não diminui a qualidade intrínseca de suas obras, mas é digno de lástima profunda e veemente”!!!!!!!!!!!!!!

    Tava indo bem até esse ponto. Não entendi. Os autores da série vagalume, por venderem e serem deglutíveis, merecem menos lástima.

    Vocês estão misturando literatura com sociologia, beirando o irracional de incluir aí ufanismo nacional. Pelamordedeus!

    1. ahaha!

      Vemos aí o Charlles cambiando, em três comentários, três alter-egos.

      Tenho trinta e seis, mas emocionalmente tenho uns dezessete e cognitivamente às vezes acho que parei nos cinco. E eu sou o especialista em quadrinhos aqui.

      Por falar nisso, um lance que vale muito a pena é este aqui.

      Quanto à minha frase que te violentou (eheh), deixo ela assim como está, só para polemizar. Não desdigo porque também tenho meus dias de iconoclastia.

      Eu entendi o que você falou, Charlles. Mas acho que a literatura é pra todos, só que depende do tipo de literatura e de certos condicionantes mínimos que não existem aqui. Aqueles pré-adolescente que procuravam ver foto de peladonas na enciclopédia poderiam ser apresentados a umas boas histórias de sacanagem. Se algum professor ou pai tivesse emprestado a eles “A História de O”, talvez pudessem, um dia, pular para um Bukowski ou Henry Miller e, desses dois, quem sabe, partir para literatura mais porrada. E mais, a literatura é para todos, mas isso não significa que ela não dependa de condicionantes, para usar um termo seu, “sociológicos”. O ponto é: a literatura é para todos, mas o hábito da leitura depende da formação familiar e escolar da criançada – um requisito mínimo para apreciação de qualquer arte. E, no Brasil, isso é um problema. Vá na Argentina e você verá que, lá, as pessoas leem livros no metrô, livros de todo o tipo! É um hábito normal. Aqui eu peguei por anos a fio o metrô, e raramente via alguém lendo algum livro no vagão. Eu, por exemplo, só comecei a me interessar por livros no dia em que, lá pelos sete anos, a minha escola deixou que cada criança levasse para casa dois livros infantis da biblioteca. Lembro que, naquele dia, ao levar os dois livros para casa, cheio de imagens coloridas e aventuras, fiquei maravilhado, e sequer assisti o filme dos Trapalhões que estava passando na Sessão da Tarde (e eu era o maior fã dos Trapalhões) para poder ler.

      Pais que não estimulam a leitura e escolas que obrigam as crianças a ler José de Alencar dão nesse estado das coisas no qual estamos no Brasil. Aí sim, circunstancialmente, a literatura acaba sendo coisa de poucos.

      1. O velho Crumb, tenho muita coisa dele mas ainda não este. Li o primeiro capítulo na última edição da Piauí. Tenho tudo do Eisner, também. Tenho Maus, Persépolis, Watchmen, Hiroshima. Mas curto mesmo é o HQ americano da época de ouro, como Alex Raymond e Hal Foster. Tem um romance maravilhoso e indispensável sobre o tema que você tem que ler: As Aventuras de Kavalier and Clay, do Michael Chabon, de primeiríssima qualidade.

  8. As férias que eu passava com meu pai, nos meses de recesso escolar, nada tinham a ver com os extenuantes exercícios de distração perpétua que é marca registrada do encontro entre pais e filhos divorciados. Juntávamos nós em minha cidade natal em Minas Gerais, e, juro!, junto aos instrumentos de pesca e a bagagem pequena para incursões ligeiras a rios, sempre havia uma pilha de livros. Lembro-me de umas férias no Araguaia, em que passamos três dias deitados, cada um em seu sofá, devorando “O Exorcista”. Não fazíamos muita distinção do que líamos. Meu pai adorava temas de política, para os quais eu ainda não estava preparado, e eu lia Kafka entendendo tudo do meu jeito. Eu era um adolescente com a cara mais ingênua do mundo, branco e alto; meu pai, moreno, baixo, que sempre usou botina e cantava música caipira com uma voz aveludada que dava a precisa medida do porque minha mãe se casara com um homem justo o contrário dela. Era estranho que fosse meu pai, mas nosso rostos eram idênticos, e tínhamos a mesma paixão pelos livros. Ele tinha feito até a quarta série, mas tinha um conhecimento sobre tudo; depois do divórcio, trabalhara na Austrália, no Iraque, no Uruguai, mas antes me “raptara” durante um mês em que ficamos numa fazenda de um amigo dele, no Mato Grosso. Quando já me acostumara com a vida desregrada da fazenda, sem horas para comer e para dormir, andando a cavalo e nadando em rio, meu avô, pai de minha mãe, apareceu como intermediador. Ele não seria preso se me deixasse ir embora, e tudo seria esquecido como uma simples aventura de umas férias fora de época. Desde então, ambos percebemos que só havia uma saída para conservarmos cada qual seu direito a uma vida reconstruída com a grande falta que um faria no outro: separarmos de vez. Às vezes, em horários repentinos, o telefone tocava e lá estava a voz dele, sempre me chamando pelo apelido que ele inventara para mim: “Naninho, comoé que cê tá?”. Mas meus horários e os dele não coincidiam, havia terras e fusos entre nós. Uma vez a ligação estava péssima, só pude ouvi-lo dizer que estava na Colômbia. Em 1993, quando minha vida estava toda errada e o abismo era algo só à espera de um sopro mais veemente, deixei tudo, o segundo ano de veterinária, minha família rompida e hipócrita, e fui, de carona e ônibus, até uma vila chamada São Miguel, em Rondônia, onde havia tido informações de onde ele estava. As casas eram de madeira, e a energia gerada à motor a diesel até as dez horas da noite. Sua nova esposa, da minha idade e de uns magníficos olhos verdes, me recebeu achando que era seu irmão. Quando ele entrou, barba grande e sujo, me deu um abraço em que ela reconheceu só ser possível entre pais e filhos. Dessa vez eu o raptara, e ficamos um mês lendo os livros que eu lhe trouxera. De imediato amara Cem Anos de Solidão, e me cantara algumas músicas vallenatas as quais eu tinha uma profunda curiosidade. Eu queria fugir para os EUA, e ele me negou o dinheiro. Brigamos, ele impávido, guardando a dor que tanto havia escamoteado na ausência, quando voltei na carroceria da caminhoneta de um seu amigo, até Presidente Médice. Nunca mais nos falamos. Ano passado, ele repetiu um dos seus telefonemas, me pegando com a modernidade do celular nas mãos, enquanto voltava de uma cirurgia veterinária. Se tivesse ido para os EUA, não teria me formado, e não teria suportado a vida de trabalho diuturno. Tinha tudo para agradecê-lo em sua mais rigorosa atitude de pai em me dirigir na direção certa, suportar as outra tragédias familiares e me tornar independente. Ele estava doente e ligara para dar seu adeus. Foram seis meses de viagens para hospítais, para Minas Gerais, para choro disfarçado. Quando levei sua viúva e meus outros três irmãos de volta para São Sebastião do Paraíso, só queria uma coisa: a gasta edição de Cem Anos de Solidão, com sua anotações e sublinhamentos, como recordações daqueles tempos em que éramos tão inusitadamente felizes, cúmplices na leitura.

    1. Charlles
      Que belo texto. Me lembrou o do Milton sobre o dia em que o pai dele morreu. E ambos me levaram a uma melancolia sem fim. E há Garcia Márquez nele, não apenas nas leituras, mas também nesta jornada em busca do pai no meio da selva (no caso da obra do GGM, a busca é ao avô).

      Há duas semanas, fez um ano que meu pai morreu.

      1. Obrigado, Farinatti! Dia 15 de novembro vai fazer um ano. Descobri que na ausência dele_ longos 16 anos_ não houve um dia só que não lhe dirigia um pensamento. Quando estávamos na floresta Amazônica, andando sob a chuva perpétua que os rondonenses acabam por não mais perceber, ele estendeu seus braços para abarcar todo o campo de visão e me disse, explicando sua reclusão não questionada: “Deus também está aqui!”. Não sei como excluí-lo de minhas orações noturnas. Os velhos mecanismos naturais, infalíveis, também não o excluíram das primeiras características físicas e psicológicas que começam a aparecer em meu filho. O Cem Anos passará às mãos do Eric.

  9. O beirut é fora de brincadeira. A orquetra gulag é sombria, percebe-se os prisioneiros congelando-se diante os metais sendo tocados no pequeno coreto.

  10. Engraçado, mas isso não me parece uma avaliação de um cara que entra na Bienal desarmado. Como é possível que você não tenha visto NADA que lhe interessasse? Não ficou NENHUMA impressão digna de registro? Você se gaba de ser apreciador de música erudita. Não vai falar nada sobre John Cage? Sobre o Radiovisual? Caralho!, para usar uma expressão de rigueur neste blog.

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