José Mindlin para as novas gerações iletradas

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Por Fernando Monteiro – Enviado a mim pelo autor através de e-mail
Publicado no hoje no Substantivo Plural

No momento em que tantos estão a escrever (?) tantas “generalidades” sobre o realmente admirável José Mindlin, eu gostaria de relatar uma historinha (real) a respeito de um livro.

Um dos mais raros livros que já passaram pela mesa do meu amigo Stefan Geyerhahn, sebista que… Não, esse nome precisa, antes de mais nada, ser trocado pelo de “antiquário de livros”, que melhor se adapta ao perfil de grande livreiro especialista em obras raras e antigas (título dignamente conquistado por Geyerhahn, um dos donos da Livraria Kosmos — “sebo” que ajudou a civilizar o Brasil).

Muito bem. Vamos à historinha: estava eu, numa tarde paulista, em conversa com o Stefan na sua sala da Avenida São Luís, quando lhe anunciam que um estrangeiro, um europeu, de posse de uma obra que parece realmente rara (na avaliação inicial que era feita lá no salão da livraria, antes de alguma oferta vir para o exame especializado de Geyerhahn), tinha vindo oferecer uma obra que parecia “interessante”…

Diante do caso, eu me propus a sair, porém Stefan pediu que eu ficasse, com a generosa alegação de que, quem sabe, pudesse eu ajudá-lo a analisar a obra (pobre de mim!, um simples colecionador de pequenas raridades)…

O homem entra. É taciturno e de poucas palavras — num inglês precário. Stefan domina várias línguas, e logo estão se entendendo no francês que, um dia, já foi a língua culta do mundo.

A certa altura, o meu amigo sócio da Kosmos pede permissão ao estranho, e me passa o livro — um pequeno opúsculo do século XVII — que eu pego com infinitos cuidados, apesar de estar razoavelmente bem conservado. Sinceramente, não me lembro mais do título rebuscado (à maneira seiscentista) da raridade bibliográfica, mas conservo a lembrança da explicação do livreiro, que me esclareceu:

— “É a obra de um viajante no Brasil de meados dos 1600. Uma edição sueca, da qual eu só tinha visto, até agora, o exemplar que se encontra na Biblioteca Nacional de Estocolmo. É rara, raríssima, e esse senhor está pedindo um preço até bem razoável ( apesar de, para mim, ser um valor estratosférico, pelo que eu havia entendido da conversa deles em francês). Bem, é um livro que tem exatamente o perfil dos que interessam ao José Mindlin. Vou telefonar para ele.”

Stefan vai, e liga para o bibliófilo. É imediatamente atendido. E explica do que se trata.

Ouvindo o telefonema, percebo que Mindlin se surpreendeu, do outro lado do fio, com a aparição de tal obra em oferta no mercado, e, mais ainda, com o preço que (segundo, mais tarde, me explicou o Stefan), ele, Mindlin, considerou “muito barato”…

E aí? Você pára a leitura deste “post”, neste momento, e aposta: o que aconteceu? O livro era da área de absoluto interesse do velho Mindlin. Dizia respeito ao Brasil dos 1600, estava bem conservado e era “raro, raríssimo” – além de “muito barato”.

Ou, conforme Stefan Geyerhahn colocou, ao telefone com Mindlin:

“Dr. Mindlin, o senhor está sendo a primeira pessoa para a qual estou ligando, porque acho dificílimo que apareça outro exemplar desta obra sueca…”

Bem, o bibliófilo José Mindlin NÃO adquiriu o livro.

Não porque o livro não o interessasse, pelo contrário.

Nem porque não tivesse o dinheiro (piada!). Ou porque o livro estivesse em péssimas condições, etc. (porque Mindlin mandaria restaurá-lo de imediato, sem medir despesas) etc.

???

Resposta do enigma:

José Mindlin não comprou a raríssima obra — segundo explicou a um surpreso Stefan Geyerhahn — porque ele “jamais adquiria um livro que não pudesse ler”… E ele “não lia em sueco — infelizmente”. De onde se conclui que todos, literalmente TODOS os livros da vastíssima biblioteca do bibliófilo — por ele doada à USP — haviam sido LIDOS por Mindlin, um a um, nas muitas línguas que ele conhecia. E o sueco não estava entre elas (“infelizmente” etc etc)!

Esse foi José Mindlin — ó geração de iletrados que estão por aí. Fica o exemplo para “vosmecês”, big brothers do Oiapoque ao Chuí…

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16 comments / Add your comment below

  1. Isso prova que o Dr. Mindlin era, antes de mais nada, um LEITOR – espécie em extinção nos dias de hoje.
    E Monteiro vem perseguindo esse tema, inclusive aqui em Porto Alegre, onde proferiu palestra (“A morte do leitor”), na última Bienal, na qual teve que pisar em ovos quando se referiu às – intocáveis – “estrelas” locais…

  2. A história é bonita e ele certamente era um grande leitor, mas uma vez vi uma entrevista dele (ja não me lembro onde) em que ele dizia que não havia lido uma grande quantidade dos livros que colecionava. O que não o desmerece em nada, claro.

    1. Eu também vi esta entrevista. Mas, note bem, ele comprava mais do que tinha capacidade de ler, mas tinha intenção de ler! Não adiantaria um livro em sueco!

      Abraço.

  3. Não se conclui necessariamente que por causa disso ele leu todos os livros de sua biblioteca. Se conclui que ele PODERIA ler qualquer um, quando quisesse.

    Se eu herdo uma biblioteca em português, teoricamente, posso ler qualquer livro de lá, posso escolher. Não posso escolher qualquer um se lá houver livros em sueco. Se só compro livros que posso ler, isso não quer dizer que necessariamente vou ler todos. Ainda mais se compro livros exageradamente.

    E mesmo assim, tenho minahs dúvidas se ele leu o Hypnerotomachia Poliphilii, talvez o mais raro de sua coleção.

    Mas certamente foi um grande homem. Me arrependo de não ter lhe enviado uma carta quando pude. Será que ele responderia?

  4. Roberto,

    Você por acaso pensou que José Mindlin tivesse LIDO os 50.000 (cinquenta mil) volumes da Biblioteca dele?
    Foi assim que você entendeu o relatado por Fernando Monteiro?
    Se assim foi (por incrível que pareça!), pelo menos o Milton Ribeiro se lembrou de lhe explicar que o que está dito na história de Monteiro é que o maior bibliófilo brasileiro (um milionário, financeiramente) era INCAPAZ de comprar um livro como OBJETO e como mero INVESTIMENTO, ou seja, um livro em SUECO, que ele não poderia ler… porque Mindlin não conhecia esse idioma, mas sim o português, alemão, o francês, o inglês, o iídiche, o espanhol, o italiano, talvez até o russo etc — mas NÃO O SUECO. Tudo isso está muito clara da narrativa — por sinal, perfeita — do bom escritor que é o Monteiro.
    [Entendeu ag-o-r-a, Roberto?]

  5. PS:
    Resolvo acrescentar que foi a perspicácia de José Mindlin a única – até agora – aqui no Brasil, que conseguiu “localizar” com justeza o Paulo Coelho. Disse ele:
    “Paulo Coelho está para a literatura assim como o bispo Edir Macedo está para a religião”.
    Nada mais exato.

    1. Achei que já tinha entendido, D-o-n-a-to, m-a-s o-b-r-i-g-a-d-o a ti e ao Milton pelas explicações… por incrível que p-a-r-e-ç-a.

  6. Fernando, que história bonita, cara! Só os leitores profissionais e vorazes a entendem.

    No início do romance de Italo Calvino “Se um viajante numa noite de inverno”, o autor enumera uma série de tipos de livros que se apresentam numa biblioteca, salientando aqueles que você comprou para ler na hora adequada, seja daqui um mês ou dez anos.

    Claro que Mindlin (um sujeito que tem o dom da simpatia até no nome, que lembra o de um leprechau) não pode ter lido TUDO de seus milhares de livros; mas a intuição íntima, em nada absurda, de que iria lê-los algum dia, alimenta a atmosfera de conforto que se pode ter quando se está cercado por livros, e a sensação plena de pertença recíproca entre leitor e livro.

    Essa história só aumenta minha admiração por esse senhor coerente, que se divertiu sobejamente durante a vida; que deve ter olhado muitas vezes a juventude do Youtube e dos jogos de violência com o compadecimento dos que sabem a verdade sobre como o não-ler é uma mutilação que se faz, por motivos sociais, midiáticos etc, a esses segregados dessa alegria espiritual genuína que só o leitor possui.

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