Saramago e o ranço

Em nosso país e em Portugal parece ser pecado grave destacar-se. Bom mesmo é a vida de gado. Não pensem que sou um admirador das grandes estrelas, apenas acredito que algumas delas aparecem naturalmente, por seus méritos. Saramago foi um escritor que começou a produzir mais intensivamente em idade madura e por obra do desemprego. Nada em sua postura trai um desejo de ficar famoso, todas as suas opiniões e dureza demonstravam vontade de ser lido, ouvido e de influenciar. Não é um pecado um autor desejar ser lido. E ele era instigante, sem conceder.

Certa vez, creio que em 1989, José Saramago deu uma palestra ao lado de Arnaldo Jabor. Não sei de quem foi a ideia de juntar uma dupla tão pouco miscível. Era um ciclo de palestras sobre o “Fim da História” e Saramago veio ao debate com sua inteligência e lógica afiadíssimas. Ele ironizou amplamente toda a noção de que a história tinha acabado, a ponto de dizer que duvidara, pela manhã, se valia a pena fazer a barba. Depois, refez todas as suas ações do dia, a leitura dos jornais, o almoço, o trabalho e a vinda para a palestra de táxi e sua relação com a história. Foi uma explanação muito engraçada, clara e irrefutável — talvez enlouquecida pelo tema — , mas tornou-se muito séria quando o assunto derivou para a Guerra dos Bálcãs. O “Fim da História” simplesmente não cabia na realidade da Jugoslávia (em portugal é assim: Jugoslávia). Lembro que ele fez várias perguntas retóricas a nós, público, comprovando a tolice daquela teoria. Então Jabor entrou com sua pobreza de ideias oficialistas — pois concordava minuciosa e, perdoem-me, tolamente, com o mote do ciclo — e houve um debate.

Poucas vezes eu tive oportunidade de ver outro massacre semelhante àquele. Em vez de adotar uma estratégia conciliatória, Jabor atacou os posicionamentos esquerdistas de Saramago. O contra-ataque do português — cujas convicções foram pensadas e repensadas durante toda uma vida por um cérebro evidentemente privilegiado, superior mesmo — foi tão arrasador que Jabor foi vaiado ao voltar a falar. E não esqueçam que a plateia era formada por pessoas de posições neoliberais, em evento patrocinado pela RBS.

Saramago, afora sua grande literatura, era um polemista de primeira linha. Provocava com vara curta à direita e à esquerda — não esqueçam seu importante artigo anti-Fidel Castro “Até aqui cheguei” — e tornou-se popular pela qualidade de suas obras e pela notável coerência de ideias. Não houve nada de oportunista na vida e na atuação de Saramago. Porém uma série de intelectuais brasileiros criticavam sua onipresença e má literatura. Ora, todos são livres para gostar ou não de Saramago, eu mesmo me irritei profundamente com a ruindade de Todos os Nomes, em minha opinião uma fracassada imitação de Kafka, mas o que alguns diziam a seu respeito era apenas ranço e má vontade. Li que havia um esgotamento das ideias em seus livros (sem dizer quais, mas parecendo ser essas coisas de esquerdismos e solidariedade), li que por trás de seu barroquismo (*) — acusação que poderia prosperar por ser verdadeira — não haveria mais nada, e li gente muito boa simplesmente e por vício perguntando “Who`s next?”.

Lembro que a revista Veja, que já foi uma publicação respeitável, ter dado páginas e páginas a Tom Jobim, no início dos 80. O motivo, confessado pelo editor da época, era que o ranço de alguns estava tornando Tom um compositor de inspiração americana: “Águas de Março” era um plágio, tudo o que ele fazia era jazz menor (!), etc. Havia tanto ressentimento ao sucesso de Tom que a revista publicou a reportagem de capa “O Tom do Brasil” como uma espécie de desagravo a quem fez mais pelo Brasil do que todos os seus críticos juntos.

Creio que o mesmo estivesse ocorrendo com Saramago. Sua morte, ocorrida na última sexta-feira o torna novamente fabuloso. Uma pena que seja assim.

(*) Sabiam que “Barroco” significa “Pérola imperfeita”?

22 comments / Add your comment below

  1. Tornou-se lugar-comum, nesses dias em que se comentou a morte de Saramago, frisar a todo o momento que:
    1º) ele era comunista, como se fosse defeito;
    2º) ele era ateu, como se fosse defeito;
    3º) sua obra é interessante até “Ensaio sobre a cegueira”;
    4º) Lobo Antunes era melhor do que ele;
    5°) ele fez declarações que desagradaram os judeus;
    6º) que ele chorou ao ver o filme do Fernando Meirelles;
    7º) que a cegueira no mundo…, etc.

    Quase tudo que se leu sobre ele, inclusive de críticos literários, se referem mais ao intelectual do que ao escritor. A obra dele foi colocada em segundo plano.
    1 – Apontar que Saramago nunca disse nada sobre as ditaduras comunistas é desconhecer algumas entrevistas em que afirmava que os regimes deturparam o pensamento marxista.
    2 – A velha mania de impor suas crenças e condenar aquele que não concorda com ela. Afirmou-se até que D-us o receberia de braços abertos, perdoando-o. E sobre as declarações vindas do Vaticano, então?
    3 – Não gostar das obras alegóricas escritas pós-Evangelho segundo Jesus Cristo é desconhecer que ele não mudou muito, apenas deixou de nomear os lugares e as pessoas e datar os fatos. Continuou, porém, tratando de forma metafórica os temas recorrentes nos romances ditos históricos.
    4 – Dizer que Lobo Antunes é melhor porque a escrita do Saramago é difícil, mostra que também não leram Lobo Antunes (eu tentei e não consegui até agora).
    5 – Nada que é desumano pode ser comparado com o Holocausto?
    6 – Sobre o livro “Ensaio sobre a cegueira” e o filme pouco se falou.
    7 – Realmente o mundo ficou mais cego e a mídia está contribuindo para isso.

    Falando sobre cegos, quinta-feira Ernesto Sábato estará completando 99 anos. Apesar de Saramago citar Borges como sua influência, acredito que ele também tenha lido a obra de Sábato, para mim hoje o maior escritor vivo, pena que não em atividade.

  2. Hum, você anda muito irritadinho…

    Permaneço considerando que:

    1) Sim, depois que ganhou o Nobel, com exceção de duas obras, todas as posteriores de Saramago privilegiam seu opinismo, enquanto nas anteriores à “Cegueira” vemos sobretudo o olhar simpatizante sobre as mazelas e benfazejos da pobre humanidade, quer se tratando de reis, mascates, lavadeiras, soldados ou tradutores;

    2) Depois de receber essa crítica, ele, inclusive, tentou voltar aos melhores humores, com a tal viagem do elefante, sem, porém, a graça e vigor anteriores; quando disse a frasezinha dos monstros, aliás, Saramago aludiu a isto, esses monstros que não encontramos em suas obras anteriores, à exceção dos agentes da Pide em seu primeiro livro – todos os “vilões” posteriores são humanos, demasiadamente humanos;

    3) Nada tenho a reprovar sobre as opiniões dele, que considerava, inclusive, no mais das vezes, banais e reiterativas, e, afinal, opinião é que nem cu, todo mundo tem, mas as dele não eram tão particularmente notáveis, sendo óbvio que, num embate contra Jabor, qualquer pessoa medianamente bem formada põe o cara no bolso, ele e seus chavões ordinários recobertos por histerismos cinematográficos (a direita, coitada, tenta arranjar um “intelectual” para pôr a seu serviço, e o máximo que consegue é o Olavo de Carvalho);

    4) Continuarei gostando dos livros dele, ai, anteriores ao Nobel, exceção feita ao da Cegueira, apocalíptico e mau humorado, e continuarei divergindo de suas antigas posições políticas, e lembrando o fato de que ele “até ali chegou”, mas até ali foi demais, pois anos e anos anteriores o regime cubano, sim, executou e exilou inúmeros divergentes, e Saramago o teve por dirigente político digno, quando não pssava e não passa de um autocrata de fazer vergonha, o que podemos comprovar em sua (dele, de Saramago) entrevista no Roda Viva (será que não repetirão hoje?);

    5) Por fim, o destaque dado a Saramago é merecido, mas os dias que correm são os dias que correm e, como todos sabemos, a História não terminou.

  3. Numa entrevista Tom Jobim disse que no Brasil é uma ofensa ser bem sucedido e ganhar muito dinheiro com um ofício que se tem grande prazer é praticamente um crime.

    Tem gente que enxerga muito bem e há quem seja cego… Eu sou estrábica: Saramago inspira-me acreditar em um Deus muito mais que igrejas…

  4. Independente da qualidade da sua prosa, um escritor como Saramago, que tenta ser honesto ao escrever (a tal da sinceridade literária do Borges) e defende suas idéias sem se importar com a “moda intelectual” do momento, é coisa incumum.
    Arnaldo Jabor, só sabe, como disse Nelson Rodrigues sobre ele, chupar Chicabon na passeata!

  5. Tem algo que não fecha no post. O ano de 1989, o discurso do “fim da história” estava no auge, tendo em vista a queda do muro de Berlim ou as pressões do povo diante das ditaduras do socialismo real . As guerras separatistas da ex Jugoslávia começaram apenas em 1991. A Jugoslávia – que tive o prazer de conhecer em 1986 — sempre foi o mais liberal dos países socialistas europeu . Na verdade, era considerado como pais não alinhado.

    Diante disso, que exemplos poderia ter dado Saramago em relação à Jugoslávia para convencer uma platéia mais burguesa ou “neoliberal” de que a história não chegou ao fim? Até mesmo porque a Jugoslávia, nem naquela época e nem hoje, pode ser exemplo de uma sociedade bem sucedida ou socialmente perfeita.

    Eu nunca fui adepto do discurso do fim da história. Li esse livro do Fukuyama na época. Vinte anos depois não existe nenhuma dúvida que a história não chegou ao seu fim, porque o curso da humanidade nunca está previamente programado. Reviravoltas ocorrem ou não. Porque tudo depende.

    Também não gostei do “Todos os Nomes” do Saramago.

    1. Um dos meus professores na faculdade disse que viu um debate entre Fukuyama e importantes teóricos (não sei se esqueci ou se ele não disse quais eram os debatedores) da época para discutir o fim da história. De acordo com ele, estavam todos argumentando seriamente sobre se a história estava ou não no fim, as implicações, as consequencias, as causas… enquanto isso, Fukuyama só olhava para o lado e ria. Ele estaria se divertindo muito. Meu professor achava que aquela teoria tinha sido jogada ao vento, decretando algo tão radical que nem o seu autor acreditava; ele nunca pretendeu dizer algo importante. Então, diante de tanta seriedade por uma bobagem, Fukuyama só poderia rir mesmo. Ele não merecia aquele crédito.

      (Só estou contando um causo engraçado. Não li; apenas intuo que o impacto da frase “o fim da história” seja maior do que a capacidade de prova-la)

      1. As pessoas que criticam Fukuyama (que considero sim um injustiçado) nunca folhearam seus livros. Apenas fazem referência ao título O Fim da História e o Ùltimo Homem. Aliás, quem falou em fim da história foi Hegel acreditando que a humanidade pode chegar em algum ponto de equilíbrio.

        Sobre o Saramago um ótimo Blog português, o Bom Sacana, falou isso sobre ele:

        Sucede apenas que discordo de Saramago politicamente e não esqueço a prepotência com que ao longo da vida sempre tratou os que pensavam de forma diferente. Não está em causa ser comunista (Jorge Amado, que por acaso era um excelente escritor e nunca ganhou um Nobel, também o era e mantinha toda uma outra atitude em relação ao mundo) ou não ser um dos meus autores preferidos. Para mim, um homem que critica regimes democráticos mas não vê o que se passa nas ditaduras do bloco soviético de Moscovo a Cuba passando por Pequim, ou é parvo ou é um daqueles cegos que não quer ver. Um homem que levanta sistematicamente a voz contra a fé Católica mas nunca contra os Muçulmanos ou outros credos, é uma fraude, um provocador com o objectivo de ganhar marketing gratuito para os seus livros

        1. Tanto em o evangelho segundo jc romance quanto em caim, extrapola a crítica ao catolicismo, indo mais fundo numa crítica ao deus do velho testamento, ou seja, na raiz do judaismo e dos islamismo. esse sacana não sabe o que diz

  6. Pois é Milton, gosto e umbigo todo mundo tem. E tem umbigos bonitos e uns tenebrosos.

    Acho Saramago um porre. Prá lá de chato e ruim. A literatura portuguesa está de parabéns, já que não teremos que aguentar mais nenhuma “produção” de tão genial mente.

    Como tu mesmo sublinhas parece que para ser intelectual se é obrigado a não renegar alguns deuses sagrados. É como comida francesa: horrível, mas é um pecado falar isto.

    Saramago só não é mais chato que Camões, para ficarmos no escopo lusitano.

    Isto me faz lembrar uma frase dita por um crítico quando pergutaram-lhe sobre o que achava do cinema frânces em um dado ano. Resposta: foi um ano excelente, pois Claude Lelouch (outro chato) não lançou nenhum filme.

    abs

    1. Milton,
      também Todos os Nomes foi o livro que não gostei.
      Em primeiro vamos a Saramago. Discordo muito do que ele pensava, assim como vejo absurdos em muita coisa de Sartre. Eu mesmo apontei-lhe a ti falhas no seu raciocinio na famosa frase osbre a existência de deus. ms e daí? Um pensador pensa e contesta. erra, mais que acerta. e qual o erro qual o acerto? Isso faz a grandeza deles.
      Segundo, este assunto do Fim da História deixa-me um pouco não sei o que.
      Esta doutrina foi criada por hegel na sua dialética. Marx, como jovem hegeliano que foi, apropriou-a profundamente na sua teoria e depois Lenin utilizou-a para justificar o bolchevismo. Sem ela seria impossível a revolução e os anos de agruras. Na primeira metade do século XX j a direita criticava os comunistas por causa dela (Russel, outro que poderia ter sido citado no primeiro parágrafo).
      Há conceitos fulcrais numa idéia que ou se aceita ou se abadona a idéia. Em minha opinião, nenhum marxista que pretende se chamar assim pode ignora-la, apenas discutor se a História acabou ou não, mas não com exemplos deste tipo.
      O problema que vejo agora é que, nos meus tempos de marxista, líamos o 18 Brimário, agora é Marimbondos de Fogo.

      Branco

  7. Esse negócio do fim da história é um dos pensamentos mais ordinários dos últimos anos, algo de uma falta de argumentação tão rasa que só pode ser sustentada numa retórica restritamente neo-liberal. É mais uma das ideias que surgiram repleta de um fulgor novidadeiro e durou só o quanto determinou a motivação da mídia mais prosaica, sobretudo a televisiva. Mesmo aqui nesse fim de mundo de Goiás, onde concluí o curso de história há dois anos, já era algo considerado obsoleto. Li hoje a notinha miúda da Veja sobre o Saramago, e depois_literalmente, acreditem_ rasguei a revista, não por raiva, que ela já esgotou a capacidade de me causar, mas pela flagrante falta de conteúdo total. (Comprei-a pela capa, esperando o ranço de um humor corrosivo contra uma das imposturas da Globo, mas só vi a bajulação disfarçada e a péssima escrita- cada vez pior).

    O pouco que falava sobre o José se limitava à pretensão de uma pá de cal por cima do trabalho de uma vida, apenas por ele ter sido de esquerda. As mesmas des-argumentações de que ele considerava o Fidel um grande cara. Eu considero o Fidel um grande cara, mesmo não sentindo a menor vontade de ter uma assinatura dele ou uma das suas fardas históricas para emoldurar na parede da sala. Assim como admiro o Che à distância, agradecendo à Providência por não ter sofrido a encarnação de um camponês cubano do final da década de 50. Não é tão simples para a mente esclarecida avaliar qualidades humanas e transformações políticas suscitadas por elas_por mais desastrosas que tenham sido_ apenas pelo prisma maniqueísta.

    Estou lendo o excepcional “Reflexões sobre um século esquecido”, ´recém lançamento do Tony Judt, que me põe na direção de analisar mais lucidamente estas questões. Judt faz uma crítica ferrenha aos movimentos de esquerda e ao apego religioso e olvidadeiro dos atuais esquerdistas ao marxismo utópico, fazendo-se de malandros em não tocar no assunto do stalinismo. Mas Judt não é neo-liberal e nem de direita; ao analisar a acusação dos intelectuais contemporãneos aos parceiros que não renegaram a esquerda de forma IMEDIATA, ele os defende dizendo que só quem viveu o período entre guerras e pós-segunda guerra sabe o quanto é complexo deixar de reagir contra a tomada inexorável do capitalismo, e o quanto a opção de um marxismo repaginado e historicamente crítico ainda parece pertinente- por mais que não achem a chave de tornar essa hipótese viável.

    E, o ensaio de Judt nesse livro dedicado ao Camus, me fez relacionar com a importância de Saramago. Nessas páginas o autor traça a desapiedada renegação da obra de Camus após sua morte. Como Camus se tornou, subitamente, inexpressivo e ultrapassado, olhado com repúdio pelo patriarcalismo acadêmico mundial. O quanto a dignidade sustentada pelo argelino e sua moral estóica era avessa ao relativismo da moda dos anos 60 e 70, com tantos “pecados” saindo do armário nas ditas revoluções dos costumes. Diante a fúria de um Sartre ativista, para quem a morte de milhões de chineses e russos justificavam os arranjos históricos que só sua visão torta enxergava em Mao e Stalin, a frase de Camus de que nenhum meio justifica os fins soava romântica, incabível na crueza da realidade da metade do século que só a impertinência pragmática de corajosos derramadores de sangue conseguia acompanhar. Ainda que fosse confortável defender a chacina das arborejadas ruas de Paris.

    E Judt passa a fazer então uma belíssima e justa reivindicação de Camus, na época do lançamento de seu romance póstumo “O primeiro homem”. (Os herdeiros de camus estavam tão temerosos em lançar o manuscrito achado junto ao corpo do autor, no carro que lhe causou a morte, diante a rejeição do público, que só resolveu fazê-lo mais de 30 anos depois). Revela o quanto os verdadeiros escritores tem uma tendência à postumidade, e o quanto estão à frente da opinião de seu tempo. “O primeiro homem” se tornou best-seller global, e o pacifismo não conformado de Camus se mostrou o posicionamento mais cabível num mundo onde a guerra pontual solta seu odor de um novo conflito mundial pelo ar.

    judt também fala sobre o esquecimento que se quer impor aos eventos do século passado, levando a humanidade a repetir os mesmos erros de substituir o estado previdenciário pela da reinação absoluta do mercado. Erros que o “fim da história” e outros arquétipos intelectuais pelejam em alimentar.

      1. Charlles,
        partilhamos da mesma simpatia por Camus.Parece que está havendo uma recuperação dele agora, o que mostra o retorno aobom senso e integridade.
        Justamente, em O Homem Revoltado ele discorre sobre a teoria do fim da História e mostra como ela foi essencial para que se suportasse o stalinismo e outras revoluções. É o totalitarismo racional, ao contrário do nazifaci que seria irracional. Se não me engano.
        Só seria aceitável (dentro de uma ética pragmatica) suportar dizimar gerações se a História tivesse uma seta, como Hegel dizia. Quando eu discutia isto, nas “aulas de marximos” que tínhamos, não possuia arcabouço teórico suficiente (ainda não possuo, mas melhorei), mas já a questionava. Agora, onsidero um dos maiores erros e causadores de mal.
        Fukuyama é hegeliano. Daí….
        A questão dos mercados muitas vezes vem da mesma visão dialética da seta. Acham impossível que a história retroceda e ocorre o que chamo de um ecologismo xiita econômico. Não nos querem mais mexendo na natureza, no caso os mercados. Tudo para um bem maior. Sacrifiquemos os velhos, as crianças, doentes para um bem maior, para próximas gerações. Pegunto qual bem?

        Branco
        PS. A frase sobre ecologia pretendo ser entendido com um grão de sal. Há muita gente que transformou isto em religião, mas há também muita gente séria.

        1. Charlles,
          uma vez perguntaram como os “economistas de Moscou” podiam ter passado de comunistas ortodoxos a capitalistas ortodoxos.
          Respondi que nunca foram comunistas nem capitalistas, apenas … ortodoxos.
          Branco

  8. RANÇO DE RANCOR
    by Ramiro Conceição

    Dizem os dicionários velhos que ranço é um sabor e um cheiro acre associados aos alimentos mal-acondicionados.

    A nossa linda língua portuguesa possui também uma palavra para nomear um certo estado de espírito adquirido por certos seres que, por não conseguirem superar mágoas profundas, apresentam em suas atitudes, às vezes muito bem dissimulado, um profundo ódio secreto, uma grande aversão a tudo que contém vida, mas, principalmente, a tudo que demonstra alegria e, consequentemente, criatividade no ato de viver sadiamente.

    Então, meus caros amigos, qual seria a tal palavra? Em uma única palavra: rancor! Pois é, observem que, poeticamente, foneticamente, ranço e rancor estão próximos.

    Pois bem, a intelligentia de direita – e, por favor, não me venham com a ideologia neonazifascista que afirma, a querer iludir, não existir mais esquerda e direita, poupem meus neurônios! – sofre de uma patologia que batizo de, em nome da futura lucidez humana, “ranço de rancor”.

    Por que estou a falar disso, na morte de Saramago? Ora, porque naveguei na rede, de língua portuguesa, e encontrei muitos sites descendo literalmente o cacete em Saramago. Detalhe, o Escritor está morto e, portanto, incapaz de se defender.

    Qual a ladainha assassina nesses sites? Que Saramago foi um stalinista; que foi um defensor dos crimes perpetrados pelo estado soviético; que foi um defensor da ditadura de Fidel Castro; que foi um defensor do terrorismo de Osama Bin Laden etc.

    Faço a seguintes perguntas: 1) Será que um monstro desse calibre seria capaz de construir toda uma literatura num dialeto, isto é, o português – após, praticamente, os sessenta anos – e conquistar um Nobel (por favor, sem qualquer canonização)?
    2) Será que foi possível a um monstro desse quilate encontrar e viver o seu grande amor aos 67 anos! e dedicar ainda toda a sua literatura à humanidade representada na figura de sua mulher amada, Pilar del Rio, enquanto a direita neoliberal fomentava este apodrecido câncer capitalista?

    Ora, minhas senhoras e meus senhores, Saramago, sem dúvida, deve ser ensinado em todas as escolas, principalmente, aquelas de língua portuguesa.

    Ainda mais, o neocristianismo deve ser criticado, em profundidade, levando-se em consideração a obra do grande escritor ateu.

    Tenho orgulho de pensar-sentir em português, a língua de Saramago!
    Viva a Democracia! Viva o NEO-SOCIALISMO!

    1. Ramiro, meu caro! Tu tens que escrever mais prosa (além de poesia, é claro!). Concordo com tudo que dissestes. Quem limita o valor de um escritor a esses tópicos sumamente subjetivos, não o leu, sequer gosta de literatura, e só quer fazer a tarefinha jornalística de buscar autenticidade através da condenação deliberada. Saramago foi, antes de tudo, um vencedor. Tudo conspirava contra ele: a idade, o estilo, a língua periférica (um dialeto, como bem disse), os temas escolhidos. No entanto, ele se alçou, apenas com esforço próprio,a um patamar de qualidade alcançado por poucos. E Pilar del Rio é só mais uma de suas conquistas feitas a seu modo. Escolheu e impôs seu destino como só os grandes homens o fazem. A pobreza não o assustava; o academicismo pouco lhe interessava; era avesso à mídia, e exercia a arrogância como necessária escuderia (foi de uma antipatia atroz numa entrevista ao Jô, justificada por o superficial humorista querer levar a margem da entrevista a como o autor havia se conciliado com a calvície). Por isso prefiro, sobre todos os seus títulos, o “ano da morte de ricardo reis”, desses livros que parece ter o autor escrito para mim_ a personagem Marcela, que tem um braço defeituoso, é um dos meus grandes amores platônicos.

        1. Um jornalista, no Roda Viva, quis saber de onde Saramago tirava tanta energia naquela idade para viajar e receber para autógrafos tantas pessoas… Ele respondeu: Fiz uma noite de autógrafo num teatro argentino e havia 4 mil pessoas e mais mil ficaram do lado de fora. Como poderia decepcionar tantas pessoas? Como seria arrogante com pessoas que me dão tanto carinho?

          O equilíbrio passa longe do ser humano… esquerda/direita… catolicismo/islamismo… comunismo/capitalismo… e muito muito extremismo no meio.

          Um terceiro deus… Creio que as teses de Huntington sobre o “choque de civilizações”, atacadas por uns e celebradas por outros aquando do seu aparecimento, mereceriam agora um estudo mais atento e menos apaixonado. Temo-nos habituado à ideia de que a cultura é uma espécie de panaceia universal e de que os intercâmbios culturais são o melhor caminho para a solução dos conflitos. Sou menos optimista. Creio que só uma manifesta e activa vontade de paz poderia abrir a porta a esse fluxo cultural multidireccional, sem ânimo de domínio de qualquer das suas partes. Essa vontade talvez exista por aí, mas não os meios para a concretizar. Cristianismo e islamismo continuam a comportar-se como inconciliáveis irmãos inimigos incapazes de chegar ao desejado pacto de não agressão que talvez trouxesse alguma paz ao mundo. Ora, já que inventámos Deus e Alá, com os desastrosos resultados conhecidos, a solução talvez estivesse em criar um terceiro deus com poderes suficientes para obrigar os impertinentes desavindos a depor as armas e deixar a humanidade em paz. E que depois esse terceiro deus nos fizesse o favor de retirar-se do cenário onde se vem desenrolando a tragédia de um inventor, o homem, escravizado pela sua própria criação, deus. O mais provável, porém, é que isto não tenha remédio e que as civilizações continuem a chocar-se umas com as outras. – Saramago

Deixe uma resposta para Carlos Eduardo da Maia Cancelar resposta