Mahler é demais. Melhor ainda quando se está meio deprimido e preocupado. Devo ter ouvido mais de quinze CDs inteiros desde o fim de semana, quase sempre lendo artigos sobre o grande morto da semana: José Saramago. Na segunda à tarde, durante um intervalo, fui pegar algumas coisas na casa de um amigo. Entrei num ônibus, sentei-me e abri um Simenon — adoro ler em transportes coletivos, adoro mesmo! — enquanto Anne Sofie von Otter seguia cantando Rheinlegendchen e Wer hat dies Liedlein erdacht? em minha cabeça, quando um homem que nem vi me depositou um bilhete de tamanho mínimo na minha mão:
QUERIDOS IRMÃOS PRECISO DE VOCÊS PERDI MINHA MÃEZINHA SOFRO DO VÍRUS DO HIV ESTOU ME TRATANDO COM COQITEL E ESTOU DESEMPREGADO ESTA DIFÍCIL O EMPREGO TENHO UMA FILHA DE 2 ANOS QUE ESTA PASSANDO FOME PESSO SUA AJUDA OBRIGADO
LEANDRO E VITÓRIA
Sem prestar atenção, juntei R$ 10,00 ao bilhete e segui lendo o livro acompanhado de Anne, ao mesmo tempo que levantava a mão direita com a nota e o bilhete entre o indicador e o dedo médio um pouco acima de minha cabeça. Porém, o homem não viu e saiu do ônibus, certamente para tentar a sorte em outro. Então, uma senhora falou em voz altíssima que era um absurdo dar R$ 10,00 a um vagabundo e que eu faria melhor doando meu dinheiro à igreja. Lentamente, caí de meu mundo e notei que aquilo era para mim. Fiquei surpreso. R$ 10,00? Nas raras vezes em que dou dinheiro para pedintes, meu máximo é R$ 2,00, o valor aproximado de um litro de leite — um critério absolutamente pessoal. Fora um engano. Sem tirar os olhos do livro, guardei a nota, o bilhete transcrito aqui e levantei bem alto um solitário dedo médio para que a beata o visse claramente. Nem sempre sou um lord.
O ônibus achou graça e ela me chamou de mal-educado em pavoroso discurso de um minuto, no mínimo. Lembrei de um post escrito pelo Flavio Prada há anos:
Impressionante a quantidade de crentes dentre os desonestos. Ou dentre os filhas-da-puta, completo.
Desci na minha parada e, estranho, não vi o homem, nem a beata, nem ninguém. Mas como cantava Anne Sofie von Otter!
Seu filho da puta, achei essa merda de seu blog, seu frouxo. Procurei o dia todo pela sua cara na internet, pois suspeitei que você fosse um desses intelequituais de merda , pelo livrinho de veado que tinha nas mãos e os foninhos na orelha, e fui pesquisando blogs de boiolas enrustidos nas seções de literatura e música até ver essa tua cara de frouxo sadomasoquista. Vim aqui pra te dizer: vá enfiar esse seu dedo no rabo. Pensa que não vi que você fez foi oferecer 10 reais prum vagabundo pra conseguir favores sexuais dele. Uma chupada (você nele, essa sua boquinha de personalidade anal não me engana!), ou coisa pior. E acha que não percebi as olhadas corrompidas que me dirigiu desde quando entrei no ônibus. Essa linguinha de cachorro pederasta passando em torno dos lábios que querem conhecer de tudo, tirando meu vestido com os olhos.Mas a mim nunca vai ter, seu ateu sodomita. Vim à terra lacrada e serei devolvida à face do Senhor da mesma forma, e não vai ser a lascívia de um safado que fode por trás que vai me desvirtuar do caminho.Ainda bem que sujeiras iguais a você não chegam a manchar a minha total ausência de malícia. Tenho certeza que vi a sua cara sequiosa naquela paseata do tal orgulho gay, pela televisão, e me lembro que você usava sua bermuda de diversão, com o zíper atrás. Vai te foder, seu ateu veado!
Leiam primeiro o comentário acima, depois o conteúdo a seguir, que recebi por e-mail:
Milton, desculpe se o comentário da beata foi ofensivo, cara! Juro que não foi meu propósito. Escrevi rindo, e só mais tarde percebi que era uma besteira sem tamanho. OK?
Esse pessoal que faz piada e não mantém… Eu tinha adorado, já estava pensando em responde-la!
Caminhante, eu fiz a piada com propósito de mantê-la. Mas como o comentário não aparecia, nem na hora do almoço, quando sabemos que é a hora do Milton sair da piscina e adentrar no salão de música de sua vasta mansão para conferir sua única ocupação que é este blog, pensei: Ih! Deu pau! Fiz o comentário “com ar sério” abaixo como teste, e nem ele aparecia. Aí pensei que a coisa tivesse fodido mesmo e tentei corrigir.
Isso não é humor politicamente incorreto, mas humor simplesmente mau educado.
Concordo.
Concordo com a Caminhante.
Todas as religiões são fundadas sobre o temor de muitos e a esperteza de poucos.
Stendhal
http://www.ovale.com.br/cmlink/o-vale/regi-o/cidades/policia-investiga-atuac-o-do-santuario-dos-anjos-1.17944
Sobre música na rua, e em referência ao post do concerto para vuvunzela, ontem assistindo passageiramente a um dos jogos da copa ouvi ao fundo dos comentaristas um virtuose bem humorado tocando uma frase de Concierto de Aranjuez, com a vuvunzela.
Sobre ler na rua, adoro ler em praças públicas. Aqui onde moro há uma das mais belas praças que conheço de cidades interioranas, e quando aqui cheguei e era um completo desconhecido, acostumei a sentar-me num banco com um livro e passar horas lendo. Parei por ouvir depois as opiniões geradas pelo ilustre desconhecido: os malas ocasionais que passavam por meu banco acreditavam que eu era uma espécie de investigador policial à paisana, que passava informações sobre tráfico de drogas (usava cavanhaque, roupas pretas e óculos escuros); outros achavam que EU é que era o traficante disfarçado (usava cavanhaque, roupas pretas e óculos escuros); outros ainda, rapazes mais novos que herdaram de uma passado anti-iluminista desconfianças conspícuas, suspeitavam da minha masculinidade (usava cav…, bem, e além disso os títulos dos livros que eu trazia para praça eram sugestivos: O Primeiro Homem, Cem Anos de Solidão, Todos os Belos Cavalos _ esse então atiçava mentes mais doentias).
Depois de ver o Terceiro Homem (é esse título mesmo?), do Hitchcock, percebi que é o maior barato ler andando, ainda que um tanto esnobe e perigoso.
P.S.: Milton, meu humor pela manhã tende a ser um tanto desapegado. Me desculpe pela brincadeira.
Abraço.
CHARLLES NOS CAMPOS
by Ramiro Conceição
ou era um viado introvertido, um verdadeiro enrustido,
porque usava cavanhaque, roupas pretas e óculos escuros…
ou andava a ler Paulo Coelho e a cantar Raulzito Seixas,
porque usava cavanhaque, roupas pretas e óculos escuros…
ou era um magnata disfarçado de brega-sertanejo,
porque usava cavanhaque, roupas pretas e óculos escuros…
ou fazia campanha pra Dilma, mas levava grana pro Serra
porque usava cavanhaque, roupas pretas e óculos escuros…
ou era um abduzido que acabara de pousar voltando pra Goiás,
porque usava cavanhaque, roupas pretas e óculos escuros…
ou era isso, porém também poderia ser aquilo
pois usava cavanhaque, roupas pretas e óculos escuros…
Hahahahaha! só não vou usar o termo elogioso que me veio à cabeça, Ramiro, para não cair mais uma vez no anti-spam.
(aliás, cês devem saber que o termo “SPAM” usado na net, foi deliberadamente tomado em homenagem ao Monty Python, precisamente a um dos esquetes da série televisiva Flying Circus)
errata: “O terceiro Tiro”
Gosto de ler na rua com muito barulho; estranhamente (ou não) ajuda a me concentrar no livro. Em casa, ponho pra rodar vários de “música instrumental” (uns dez) e fico lendo, bebendo vinho, mordiscando petiscos, etc. Não consigo ler, porém, em ônibus, porque o sacolejo dá dor de cabeça (o que não acontece nos trens), e tento usar a leitura como desculpa para não atender reivindicação de ninguém, e se for um desses caras com bilhetinho de aidético (essa armação é planetária) eu fico puto, mas não a ponto de desatar num discurso acerca do papel do Estado como provedor da igualdade social e logo responsável por aqueles que, alijados do mercado de trabalho e oportunidade de educação, tem ainda que sofrer com a falta de assistência médica, lugar para morar e ter o que comer. Lembro-me de uma gracinha da TV Globo logo no começo do atual governo, que pretendia seguir uma trilha assstencial, que aliás é corretíssima, logo chamada pejorativamente de assistencialista, oferecendo como alternativa o discurso da Igreja Católica, que seria mais apta a cuidar dos pobres (mantendo-os ideologicamente cativos, o que certamente também gosta qualquer governo, mas pelo menos a maioria dos governos são laicos), e, é claro, Fundações (olha o Criança Esperança aí, gente!) e ONGs com seus programas dedicados aos portadores de deficiência, logo mais incapazes de mandá-los à merda (como eles pensam mas não é verdade). Penso que não devemos dar esmolas, mas exigir do Estado o cumprimento de suas funções de “cidanização”, e não corrupção avantajada que usufrui dos cofres públicos que, raspados, não podem atender às reivindicações de quem de direito, pelo menos até estabelecermos um regime social tão ou mais equitativo quanto o da Dinamarca. Será que Mahler algum dia tocou lá?
Querido Marcos,
na compra das últimas cerveja da noite,
vivi a seguinte cena. Cinco mulheres
e um menininho, na mesa de um bar:
– Sobe logo no carrinho! que teu pai vem te buscar –
gritava, friamente, a mãe… Ao indefeso que chorava.
Paguei as cervejas… E o menininho e seu carrinho
já estavam, lá, dentro dum carro que se afastava…
Por que a mãe não disse
“sobe logo no meu carinho,
que teu pai vem te buscar”?
Por quê?!
errata: cervejas
Talvez, Marcos,
na ” música da rua”
o poema seja este:
CERVEJAS
by Ramiro Conceição
Na compra das cervejas da noite,
vivi a seguinte cena. Cinco mulheres
e um menininho, na mesa de um bar:
– Sobe logo no carrinho! que teu pai vem te buscar –
gritava, friamente, a mãe ao indefeso… a chorar.
Paguei as cervejas. E o menininho e seu carrinho
já estavam, lá, dentro de um carro… a se afastar.
Por que a mãe não disse
“sobe logo no meu carinho,
que teu pai vem te buscar”?
Por quê?!
Ramiro, do alto da minha masculinidade brutal e ostensiva, devo te amaldiçoar por ter-me feito verter uma lágrima. Na verdade verdade mesmo_ homem que é homem fala a verdade_, foi uma lágrima e um puxão de nariz. Maldito sejas, cabra!
( minha esposa tá grávida de uma menininha, e isso vem me deixando nas nuvens: Julia, Julinha, Julesca, Julióvna, Juliazinha)
O cotidiano é um mundo invadindo o outro, alguns sem perceber, outros s intrometendo demais. Salve a música!