Hoje, acompanhei pelo twitter uma discussão sobre música que me deixou curioso, tanto que procurei ouvir aquilo do qual falavam com tanta reverência. Peço desculpas a quem reconhecer a discussão, mas a música discutida era primária. Não vou entrar nessa de avaliar se era boa ou ruim, provocativa ou new age, monótona ou intrigante; vou apenas dizer que era constrangedoramente simples.
Haydn e Bruckner eram também assim só que na vida civil. Os registros históricos tratam de Haydn — um gênio que chegou a inventar novas formas musicais, como o quarteto de cordas — como um bobo alegre. Já sobre Bruckner, que faleceu ao final do século XIX, temos informações certeiras. Era um carola que não sabia nada do mundo, era meio tolo mesmo, mas ouvir suas sinfonias e achar seguir achando o cara simples é impossível! O cara era, do ponto de vista musical, de complexidade e profundidades abissais. Então, penso que haja uma inteligência específica voltada à musica. Esta transcende gêneros, pois, por exemplo, Frank Zappa foi roqueiro brilhante, Charlie Mingus um jazzísta e Steve Reich… O que faz mesmo Steve Reich?
Desculpe se pareço nojento ou elitista, normalmente sou mais gentil, mas é que quedei-me boquiaberto que aqueles escritores ficassem abobalhados por músicas que, antes de revelarem determinadas etnias, vivências ou culturas, demonstravam estruturas que tornariam qualquer frase SVO (Sujeito-Verbo-Objeto) digna de estudos. OK, tudo é diversão. Também acho. Só que a gente pode se divertir com Bergman ou Zé do Caixão, com Coetzee ou Paulo Coelho. São escolhas, vivências e cultura. Mas, engraçado, não consigo imaginar um papo semelhante entre escritores argentinos, ingleses, portugueses ou, pior, alemães. E tenho certeza de que isto é muito, mas muito significativo.
Pra te aporrinhar de novo: Tom Stoppard (nasceu na Tchecoslováquia, mas é praticamente inglês), leva tão a sério a música popular que escreveu uma peça (que eu vi) chamada “Rock’n’roll”, onde praticamente a História com H maiúsculo é conduzida por tais canções de “m” minúsculo; Salman Rushdie (nasceu na Índia, mas é praticamente inglês) não apenas é amigo pessoal de Bono Vox como escreveu um livro cujo personagem principal é um músico pop e, além disso, externou diversas vezes seu gosto por tal gênero de “música ligeira”; nem precisaria falar de Nick Hornby (que nasceu na Inglaterra mesmo, logo, é inglês) que, mesmo enquanto escritor menor, pode ficar horas e horas discutindo cançonetas que não valeriam uma vírgula de Bach.
Para terminar, Brahms, que era alemão, considerava as sinfonias de Bruckner baseadas numa fraude. Qual? Sei lá, nunca perguntei a ele!
Eu acho que dá, sim, para ficar uns minutinhos discutindo as sutilezas de “You Really Got Me”, dos Kinks, uma música com uma batida única, conduzida pelo ritmo repetitito de baixo + bateria, cuja letra diz respeito, digamos, a algo importante, mas está longe, muito longe de ser uma poesia baudelairiana (ainda bem, porque Baudelaire era chato pracas).
Bem, tu sabes onde mexeste, não? Pois é.
1. Brahms odiava Wagner.
2. Bruckner era devoto (o termo é exato) de Wagner.
3. Então, Brahms detestava Bruckner.
Na minha opinião, Brahms faz parte do trio de compositores perfeitos, mas tanto Bruckner quanto Mahler foram prejudicados por ele por terem algum parentesco com Wagner.
1. Eu amo Brahms.
2. Eu adoro Bruckner.
3. Eu desprezo Wagner…
Brahms não deu um primeiro prêmio de composição ao jovem Mahler porque Das Klagende Lied soava parecido com RW em algumas partes… Brahms não aceitava que Bruckner andasse por Viena dizendo que Wagner era um gênio… Eu traduzo para ti o “sinfonias de Bruckner baseadas numa fraude”. Era “sinfonias de Bruckner baseadas em Wagner”.
E aí temos egos pra mais de metro!
“Jogar xadrez desenvolve muito a inteligência de jogar xadrez” – Millôr.
Adoro essa frase – que sempre algum enxadrista gosta de desmentir -porque existe uma mania de classificar e hierarquizar as pessoas e a cultura como superior e inferior. Logo, quem gosta de música clássica é bom, sensível, culto e quem não gosta automaticamente é o contrário. Vejo isso também nas discussões de vegetarianismo. Em teoria, é bastante interessante. Na prática, não resiste a dez passos. Gente mesquinha, preconceituosa, arrogante e corrupta gosta de tudo, até mesmo de Bach.
Eu fiquei de circunlóquios, você disse reto, é isso mesmo.
Ah, sim, de acordo. O que falei é que a qualidade musical independe de gênero ou gosto e que há lapsos terríveis na educação de certas pessoas “muito cultas” por aí!
Embates estéticos me excitam. Por que não transcreves – à guisa de referência e preservando, é claro, a identidade dos interlocutores – a conversação que ensejou tua afirmação fulminante da ponderabilidade da qualidade musical ?
Ah, porque não quero mais confusão!
Milton,
hoje, ouvindo Brahms, Alegretto
(não saberia especificar mais… ),
escrevi…
O PLANTADOR DE BATATAS
by Ramiro Conceição
O ato de criação é plantar batatas,
porém ensinando aos pequeninos
a alegria da “batatinha quando nasce”
e a dor – d’Os Comedores de Batatas.
Por isso o poeta deve cavar e colher o óbvio
que plantou e, qual Dante com o seu Mentor,
deve ir até o inferno em busca de luz, porque
é do interior da terra que rebenta o esplendor.
O Brahms que eu ouvia está aqui…
Longe do McDonald’s
Depois da imagem sombria, cinza, cobre
Ocre, de um azul escuro, de uma luz triste
Fui às favas, nunca mais
Às batatas.
O holandês não era bom poeta; na época
Apenas um obscuro pintor
Investido no desejo de sofrer
Comum a todos fundamentalistas
Mas por causa daqueles olhos inchados
Do vapor pestilento de tubérculos descorados
Fiz da gastronomia minha divisa
Do tempero minha munição
E do vinho o sangue deste
Único general de si mesmo
Passo ao largo das lanchonetes, no temor
De encontrar, em alguma delas
O fantasma do holandês
Vestido com a tétrica
Fantasia de palhaço
Na multicolorida festa de uma feira
Exploro os cheiros de uma manhã
Alegre; nas ruas, a fome das pessoas
Ganha uma expressão luminosa
Muito bom, Marcos!
Gosto de Haydn, gosto do hino alemão, gosto de Bruckner, gosto do minimalismo, gosto de Glass, Pärt e de algumas coisas – nem todas – do Reich. O Frank Zappa é um baita chato como geralmente é uma chatice a música experimental. Prefiro Gorillaz.
Também adoro Glass, principalmente a série Koianiskatsi (sic). O franz zappa não me convenceu de modo algum. Tentei por que tentei gostar do cara, mas se me mostrou impossível. Prefiro em muito o Jethro Tull.
Mahler também não me desceu pela guela. A qinta sinfonia, com aquele pesado toque matrimonial, me entendiou além da conta. A oitava sinfonia do cara só me fez ter uma saudade gigantesca da parte coral da nona de Beethoven. Dos modernos, ninguém ultrapassa Stravinski, como nenhuma peça é melhor que Sherazade, o bolero de ravel, e pinturas em exibição. A música erudita depois de Beethoven parece-me inconstante em qualidade, pretensiosa e, sobretudo, chatíssima. Firmo-me em minha condição de leigo para afirmar isso_ o que muito me favorece.
Música simples é diferernte de música simplória.
Teu post ensejou meus comentários abaixo lá no Twitter.
@miltonribeiro e por falar em música limitada, foi decepcionante conhecer há pouco na AM1080 três pecinhas de Natho Henn.
@miltonribeiro O problema do nacionalismo em música é reconhecer que nem toda terra tem seus gênios…
@miltonribeiro … pois, como disse Bernard Shaw, se a Irelanda tivesse uma música nacional esta deveria ser para flautas de pastores
Muito curioso aqui.
Sem citar os debatedores, não dá nem pra dizer os objetos musicais da discussão, Milton?
Diz que sim, vai 🙂
Rock
Uma nota para capa
Frank Zappa e The Mothers of Invention estão se apresentando no Albert Hall. É o começo dos anos 70. (Como dizem, se você lembra a data exata é porque não estava lá.) Na metade do concerto, um enorme negro de camisa roxa brilhante sobe ao palco. (A segurança era mais leve naqueles dias inocentes.) Ele oscila um pouco e insiste em tocar com a banda.
Zappa, imperturbável, perguntou, sério: “Sim,senhor, e qual é o seu instrumento preferido?”.
“Trompete”, resmungou o Cara de Camisa Roxa.
“Dê um trompete para o cara”, Frank Zappa mandou. No momento em que o Cara de Camisa Roxa toca a sua primeira nota terrível, fica claro que a habilidade dele com o trompete deixa muito a desejar. Zappa parece brevemente perdido em um pensamento, queixo apoiado na mão. “Humm.” E vai ao microfone. “Estou pensando”, ele medita, “no que q gente podia tocar para acompanhar esse cara com o trompete.” Ele tem um estalo, uma inspiração trombeteira. “Já sei! O poderoso órgão de foles do Albert Hall!”
O poderoso órgão de foles do Albert Hall estava efetivamente interditado à banda, mas agora um dos Mothers começa de fato a escalar a grande fera, se encaixa na cabine do organista, puxa cada uma das alavancas e quase põe teatro abaixo com uma versão ensurdecedora de “Louie, Louie”. Fom-fom-fom/ fom-fum!
Enquanto isso, no palco, o Cara de Camisa Roxa apita, absolutamente feliz, totalmente inaudível, enquanto Frank Zappa o observa carinhosamente, como o benevolente e subversivo pensador que é.
Essa vivacidade não é geralmente uma qualidade associada ao rock, e quando se escuta os grunhidos de Cro-Magno da maioria das estrelas do rock, rapidamente se entende por quê. Apesar das Spice Girls, porém, o rock-and-roll tem uma longa história de achados e acertos musicais.
Tem Elvis dizendo ser tão agitado como um homem alérgico numa árvore felpuda.
Tem a agilidade verbal de John Lennon. (“Como você achou os Estados Unidos?” “Virei à esquerda na Groenlândia”.)
Tem Randy Newman, que prova, em “Sail Away” [Navegar para Longe], que uma canção pode ao mesmo tempo ser um hino e satírica. (“Na América, tem muita comida/ Ninguém precisa ir para a floresta e gastar os pés.”)
Tem as letras surrealistas associativas de Paul Simon. (“Por que eu tenho coração tão mole/ se todo o resto da minha vida é tão duro?”)
E tem o trovador que fica acima de qualquer categorização, Tom Waits, contando suas ásperas histórias de vagabundo sobre gatos de rua e cães vadios. (“Tenho as cartas mas não tenho a sorte/ tenho as rodas mas não tenho o caminhão/mas, ah, eu sou grande no Japão.”)
Em tudo isso já há muita coisa para o pessoal literário estudar e admirar. Não faço parte da escola de exagero dos fãs de rock que acham que letra de música é poesia. Mas sei que ficaria ridiculamente orgulhoso de ter escrito qualquer coisa assim tão boa. E adoraria ter o talento, humor e a agilidade mental que Frank Zappa mostrou no Albert Hall aquela noite.
(por Salman Rushdie, de Cruze esta Linha, lançado pela Companhia das Letras, maio de 2007)
Bela historia, Charlles, essa de Zappa com o órgão do Albert Hall.
Quanto aos tão bem lembrados grandes bardos do rock – o que seria, afinal, do gênero sem as letras ? – já que o mesmo é de interesse muito mais dramático-literário do que, propriamente, musical (vide a eloquente sátira sobre uma ampla categoria das canção de 4 acordes, já comentada e referenciada aqui por ocasião de outro ótimo post do Milton sobre “seu problema com o rock”).
Putz, esqueci aquela do Grass, te devo dois comentários que são posts.
“Caminhante”, não me considero mesquinho, preconceituoso (em excesso), arrogante ou corrupto … e gosto de Bach, sem gostar de tudo. Os “qualificativos” por você citados não seriam (por você) AUTOAPLICÁVEIS?