Do autoritarismo

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Não, o assunto não é futebol. É sobre algo que sempre me fascinou: o comportamento das massas, mesmo no microcosmo de um pequeno grupo em pé numa arquibancada.

O Chivas ganhava o jogo por 1 x 0 e estávamos todos nervosos ou apavorados com a possibilidade, naquele momento bem real, de perdermos a Libertadores para um time inferior. Foi quando meu vizinho acendeu um cigarro de maconha. Nada anormal num estádio de futebol  — o cheiro de maconha é uma das fragrâncias mais comuns nestes locais. Só que de repente um grupo de pessoas começou a berrar desorganizada e histericamente:

— Apaga, apaga, apaga essa merda!

Olhei para trás e vi um grupo de senhores cujos rostos pareciam ter saído de uma foto de milicos das muitas ditaduras que nosso continente viu durante os anos 60 e 70. Tinham as caras cortadas à foice, rostos irritados e seriíssimos como se estivessem apanhando de mexicanos. E se mostravam cada vez mais agressivos:

— Fracassado, viciado, maconheiro, filho da puta, vagabundo, traficante! Apaga esta bosta! Apaga agora, porra!

O fumante a meu lado, de olhos vermelhos certamente em função da derrota parcial de seu time, estava apavorado, sem saber se iam chamar a Brigada Militar ou se ia apanhar ali mesmo. Só que naquele exato momento Rafael Sóbis fez o gol de empate.

Como se tivéssemos ensaiado por horas, todos, mas todos os que estavam em volta e que não tinham sido torturadores no passado, ato contínuo se abraçaram ao maconheiro e passaram a gritar, pulando no mesmo ritmo:

— A-cen-de! A-cen-de! A-cen-de!

Éramos uns 20… Confesso não ter conferido a face dos milicos após a vingança.

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26 comments / Add your comment below

  1. Aliás, o Inter é o time do povo,certo? Mas que povo? Vendo pela tv a massa vibrando… Posso estar muito enganado, mas parece que o Clube, tornou-se uma associação de classe média branca. É puro chute, mas acho q

    1. É puro chute, mas acho que dos 120 mil associados, 90% deve ser branco bem alimentado. Mas é chute.. Pela mídia é só classe média e VIP.
      E não é por ser gremista que está se sentindo no momento, o cocô da mosca do cocô do cavalo do bandido…

  2. Milton,

    Em se tratando de estádio de futebol, não te duvido que entre os que gritavam “A-CEN-DE!” depois do empate estavam os MESMOS que antes exigiam fosse o cigarro apagado…

  3. Antes que me acusem…

    Não faço a apologia da maconha — há mais de 30 anos não faço “uso dela” –, mas faço a contra-apologia de quem se põe a policial quando é torcedor. Essas autoridades não constituidas costumam ser assumidas por gente fascista e intolerante.

    No mais, acho que deveria ser descriminalizada, sim.

  4. Um relato, facetas múltiplas, das quais ressalto o “comportamento de massa”. A “turba” é tão desgovernada quanto o Id, o que não significa que seja boba, apenas reage a imperativos tão inconscientes quanto fortes. Assim, o senso comum se deixa enganar pela propaganda, pelas aparências, pelo desejo do imediato, etc. Marqueteiros (nem precisa que sejam sábios) se aproveitam disso. Uma palavra de ordem se espalha como rastilho de pólvora e explode em slogans, gritos, ameaças, linchamentos, glórias e hinos. Por isso tão volátil, mas tão perigosa é a turba, seja no estádio, seja nos pátios dos colégios, seja nas assembléias. Freud se aproveitou um pouco das teses de Le Bon e escreveu (avançando mais, claro) seu Psicologia das Massas e Análise do Eu. Vale a leitura.

  5. Eh eheheheheh. Excelente texto. Só dá para acrescentar que tem alguns que, se pudessem, tomariam ecstasy após o gol. E garanto que não seria o degustador de kannabis.

  6. Uma das razões pelas quais eu não gosto mais de ir a estádios de futebol (gosto de ir, mas prefiro-os mais vazios) é o comportamento do público quando se transforma em massa e adquire, em sua imaginação, um falo do tamanho de Príapo, com o qual a ameaçam partir a cabeça (e outras coisas ´mais) daqueles que torcem pelo adversário ou mesmo torcem para o mesmo time, mas não compõe a organizada de forma comportamentalmente adequada. Não sou fumante, mas a fumaça de um Hollywood me incomoda muito mais do que a de um charrão (por que será?), mas tudo o que faço diante de um fumante “legal” que esteja ao meu lado é trocar de lugar. Finalizando, o que também mais me incomoda é que eu mesmo, diante do comportamento da massa, também me adequo a alguns de seus padrões, comprovando a teoria do filme “A Onda”, em que, do mais carente ao mais intelectualizado, todos aderem a um movimento de caráter nazistóide, pois as condições gerais homogeneizam os caracteres de formação dos indivíduos, fazendo de todos tábua rasa no aguardo dos padrões coletivos engendrados por alguma mente besta formadora.

  7. Milton, lembrei-me do acontecido no mesmo jogo. Cheguei em POA num vôo da TAM pilotado pelo filho do Carpeggiani (bom agouro), tocando flauta no Zé O. Germano, as 18h. Vou direto pro Beira, arquibancada inferior, um carinha na minha frente fumando um fino atrás do outro. Quando está 1×0 pro Chivas, eu e meus amigos estamos extremamente nervosos, especialmente eu, que teria que aparecer no trabalho em Brasília na sexta feira e encarar flamenguistas, gremistas, corintianos, etc… o tal rapaz olha pra nós, com aqueles olhos rubros, e diz, calmamente: fiquem tranqüilos, nós vamos ganhar e seremos bi da América, eu tenho certeza… e eu só pensava em xingá-lo: “se tivesse fumado metade do que tu fumou, eu também estaria tranqüilo!” Pois bem, viramos o jogo e acabamos abraçados no carinha, que chorava compulsivamente.

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