As obras do período final da vida de Shostakovich foram compostas sobre um e apenas um assunto: a morte. Ele parecia inteiramente fixado no tema e não é exagero nenhum dizer-se que todas as obras, a partir do opus que comento abaixo, são fundamentalmente sobre a morte. E notem que algumas sinfonias e outras obras anteriores também o eram. O compositor sofreu um ataque cardíaco em 1966, mas desde antes já sofria de uma doença degenerativa que ainda hoje é tema de discussões médicas. A propósito, no dia 27 de setembro de 2006, dois dias após o centenário de seu nascimento, haveria em Londres um seminário sobre sua obra dentro do qual, entre eventos mais agradáveis, médicos se reuniriam com o público a fim de revelar new medical evidences. Ou seja, ninguém sabe exatamente do que sofria Shostakovich. O que se sabe é que, no final dos anos 50, o compositor deixara o piano por dores e descontrole dos movimentos de sua mão direita. Sabe-se mais: o grande Robert Craft, ao conhecer Shostakovich em 1962, disse que “ele era o mais tímido e nervoso ser humano que jamais conhecera”, que “passava todo o tempo mexendo com as mãos e ajeitando os óculos” e que “às vezes, parecia feliz para, no minuto seguinte, estar pronto para chorar”. Rostropovich declarou que, em seus anos finais, Shostakovich apenas desejava “a presença de uma pessoa de quem gostasse, sentada com ele em silêncio, em seu quarto”. Enquanto a doença e a angústia progrediam, Shostakovich era adulado e aclamado em todo o mundo. Não apenas Craft foi conhecê-lo, mas também Benjamim Britten ia visitá-lo e acabaram tão amigos que a Sinfonia Nº 14 é muito influenciada por Britten.
Estes paradoxos entre doença acrescida de angústia e homenagens de onde surgiam novas amizades permaneceram até final da vida de um compositor que seguia produzindo música da melhor qualidade, porém, repito, inteiramente voltada para a morte. A partir da Sinfonia Nº 11, o que temos é a maior e melhor produção de música lúgubre, com explosões de alegria e sarcasmo aqui e ali. Dentro deste espírito, seguem as obras-primas.
Sinfonia Nº 14, Op. 135 (1969)
A Sinfonia Nº 14 — espécie de ciclo de canções — foi dedicada a Britten, que a estreou em 1970 na Inglaterra. É a menos casual das dedicatórias. Seu formato e sonoridade é semelhante à Serenata para Tenor, Trompa e Cordas, Op. 31, e à Les Illuminations para tenor e orquestra de cordas, Op. 18, ambas do compositor inglês. Os dois eram amigos pessoais; conheceram-se em Londres em 1960, e Britten, depois disto, fez várias visitas à URSS. Se o formato musical vem de Britten, o espírito da música é inteiramente de Shostakovich, que se utiliza de poemas de Lorca, Brentano, Apollinaire, Küchelbecker e Rilke, sempre sobre o mesmo assunto: a morte. O ciclo, escrito para soprano, baixo, percussão e cordas, não deixa a margem à consolação, é música de tristeza sem esperança. Cada canção tem personalidade própria, indo do sombrio e elegíaco em A la Santé, An Delvig e A Morte do Poeta, ao macabro na sensacional Malagueña, ao amargo em Les Attentives, ao grotesco em Réponse des Cosaques Zaporogues e à evocação dramática de Loreley. É uma música que trabalha para a poesia, chegando, por vezes, a casar-se com ela sílaba por sílaba para torná-la mais expressiva. Há uma versão da sinfonia no idioma original de cada poema, mas sempre a ouvi em russo. Então, já que não entendo esta língua, tenho que ouvi-la ao mesmo tempo em que leio uma tradução dos poemas. Posso dizer que a sinfonia torna-se apenas triste se estiver desacompanhada da compreensão dos poemas – pecado que cometi por anos! Ela perde sentido se não temos consciência de seu conteúdo autenticamente fúnebre. Além do mais, os poemas são notáveis. Não está entre minhas obras preferidas, porém são indiscutíveis seus méritos musicais e sua extrema sinceridade. Me entusiasmam especialmente a Malagueña, feita sobre poema de Lorca e a estranha Conclusão (Schluss-Stück) de Rilke, que é brevíssima, sardônica e — puxa vida — muito, mas muito final.
Quarteto Nº 13, Op. 138 (1970)
Um pouco menos funéreo que a Sinfonia Nº 14, este quarteto foi escrito nos intervalos do tratamento ortopédico que conseguiu devolver-lhe do parte do movimento das mãos e antes do segundo ataque cardíaco. O décimo-terceiro quarteto é um longo e triste adágio de cerca de vinte minutos. O quarteto foi dedicado ao violista Vadim Borisovsky, do Quarteto Beethoven, e a viola não somente abre o quarteto como é seu instrumento principal. Trata-se de um belo quarteto cuja tranquilidade só é quebrada por um pequeno scherzando estranhamente aparentado do bebop (sim, isso mesmo).
Sinfonia Nº 15, Op. 141 (1971)
Sem dúvida, a Sinfonia Nº 15 é uma de minhas preferidas no gênero. É difícil estabelecer um conteúdo programático para ela. Trata-se de uma música muito viva, com colorido orquestral atraente, temas facilmente assimiláveis e nada triviais, clímax e pausas meditativas que empolgam e mantém o ouvinte permanentemente atento. E com os contrastes inesperados característicos de Shostakovich. Parece um roteiro de Shakespeare passado à música, trazendo o trágico ao festivo, empurrando a reflexão para junto da zombaria. Bom, já viram que sou um apaixonado desta sinfonia. O primeiro movimento (Allegretto) é uma curiosidade por manter sempre ativo o motivo da cavalgada da abertura Guilherme Tell, de Rossini, e pela participação incessante da percussão. O segundo movimento (Adagio) é circunspecto. Os metais trazem uma melodia sombria, para depois o violoncelo completá-la com um solo dilacerante, a cujas cores será acrescida, mais adiante, a ressonância do contrabaixo. Um novo Alegretto surge repentinamente do Adagio, retomando o clima do primeiro movimento, mas desta vez somos levados pelos solos do fagote, violino, clarinete e flautim. O movimento final, outro adagio, é enigmático. A simbologia está presente com a apresentação de imediato do Prenúncio da Morte, composto por Wagner para a Tetralogia do Anel. O ouvinte wagneriano fica desconcertado ao escutar de imediato esta música conhecida, parece tratar-se de um equívoco, de um erro de partitura. Ao pesado motivo de Wagner são contrapostos temas executados por setores “mais leves” da orquestra, porém, a todo instante, o sinistro aviso retorna e, mais adiante, os metais refletirão angustiada exasperação… A sinfonia esvai-se em delicados sons de percussão, deixando um ponto de interrogação no ar. É desconcertante. O significado do Prenúncio da Morte é óbvio, porém, o que significam a percussão, a orquestração e as melodias jocosas que o cercam? Uma simples experiência sinfônica? Impossível. O desejo de felicidade de alguém cuja vida se encerra? Ou, voltando a Shakespeare, que a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, que nada significa (*)? Porém, a significação, a intenção exata de uma obra instrumental é tão importante? Ou seria mais inteligente fazer como fez Shostakovich, levando-nos bem próximo ao irrespondível para nos abandonar por lá?
(*) Macbeth, William Shakespeare.
Sou um ouvinte muito recente de música erudita. A primeira vez que fui a um concerto foi na Sala São Paulo, já terminando a faculdade – até então, era incapaz de distinguir Palestrina de Mahler. O programa era Haydn e… a 13ª de Shosta. Foi um baque tremendo, e saí sem entender muita coisa.
A segunda vez que fui a um concerto foi, de novo, na Sala São Paulo, na semana seguinte. Desta vez, executaram Mendelssohn e… a DÉCIMA QUARTA de Shosta. Não exatamente escolhas inteligentes para um ouvinte tão iniciante… Mas, após relativamente poucas audições, acabei gostando da sinfonia!
Foi realmente muita ousadia do Neschling tacar na cara das senhoras do Morumbi aquele monte de poemas sobre a moooorte. Tanto que muita, muita gente saiu no meio do concerto. Alguns até arrastando os pés de propósito. Foi tão chato que o próprio Neschling, no programa que ele apresentava, ter reclamado dessa falta de respeito.
Falando em sair no meio do concerto, você poderia mencionar também o Quarteto nº 15: Shosta orientou os músicos para tocá-lo “de modo que as moscas caiam mortas e o maior número possível de ouvintes deixe o lugar”. Eu tinha achado isso meio que lenda urbana, mas depois reencontrei a citação no calhamaço “1001 classical recordings to listen to before you die”.
Que maravilha esta citação do Shosta. O cara é o campeão da autosubestimação (OK, desculpe).
Aaaah, sim, agora que estou revendo essa programação da Osesp (http://www.osesp.art.br/novo/estatico/programacao_temporada16.html) que vi a ótima sacada deles: tocaram a 14ª de Shosta de quinta a sábado e Les illuminations de Britten no domingo!
Isso é que eu chamo de uma programação bem montada.
ATENÇÃO OSPA: APRENDA COMO SE FAZ!
O medo diante da morte
Cada silêncio é perceptível como música
entre um ruído e uma explosão, entre
a batida do coração e seu colapso
Trato de simples arremedos, cuja pretensão
é atingir o alvo antes mesmo de
disparar a flecha, ou melhor
a flecha é o som que se espalha
enquanto eu me concentro
Às vezes grito; é o medo que exige
ouvir seu chamado, provando sua resistência
ao me dizer, do poço de minha angústia, que:
“Ei!, estou aqui, seu amigo que inibe
o último passo à beira do precipício
enquanto ainda tens escolha!”
Meu último gesto humano visa chegar
à partitura e ali expressar o momento
que se aproxima, o temor a ele, a estúpida
resignação, a mais estúpida ainda, revolta
ou um fingir indiferença, um mentir alegria
a metáfora de toda uma vida sufocada
por uma esperança que não venceu o crepúsculo
Por fim, aí está
o que não desejei, aí está
o último concerto, a linha
de baixo como um resmungo
sob o rugir tímido de um
violoncelo feroz
Muito bom mesmo! E isso que a gente nem chegou a tal última Sonata…
Tenho medo de chegar lá.
Comentário de Fernando Monteiro no Facebook:
Para um grande talento, e, pior ainda ainda, para um gênio autêntico, só podem existir três temas: Deus, o Amor e a Morte — e não, necessariamente, nessa ordem.
“Violência urbana”, por exemplo (o queridinho tema “maior” da brazilian litera…ture do momento), só entraria aí porque nossos atuais escribas de escol — fui buscar longe! — amam, literalmente AMAM o fato de Deus estar longe, parece, em cada morte tarantina da violência que nos ataranta, nesta quadra, em todos os quadrantes brasucas, já profetizava o Nostradamus de Paul Rabitt.
E, afinal, ó Ribeiro, quem é esse Shosta, meu Deus (Ele de novo)!, diante da obra do compositor Michael Sullivan? “Ninguém, neguinho” – responderiam, a uma só voz, Michel Temer e Xuxa.
Errata do comentário de Fernando Monteiro no Facebook:
Onde está escrito escribas de “escol”, leia-se escribas de Skol.
Se eu fosse obrigado a escolher uma única passagem musical de Shostakovich como minha favorita, eu com certeza escolheria o final do último movimento da 15a Sinfonia. Aquele solo de percussão tocado sobre as notas suspensas das cordas é de arrepiar. É algo quase metafísico, algo que poucos, como Mahler, conseguiram em sua música. Me parece que Shostakovich finalmente vê a Morte, olha profundamente nos seus olhos e, no final de tudo, parece parar de temê-la. Para mim, aquela passagem é sobre a aceitação, aceitação de tudo o que ele passou e do que estava por vir, da maneira mais inocente e tranquila possível. Eu amo este trecho mais do que eu consigo descrever neste pequeno comentário.
É realmente lindo o final da 15ª e divido a admiração contigo. Ele já tinha feito algo parecido no Concerto Nº 2 para violoncelo e orq., mas o final da 15ª é imbatível.
Assisti-lo ao vivo é algo de deixar qquer um boquiaberto. Quando vi, tive uma impressão que jamais tivera ouvindo em casa. Parece algo que era para ser grandioso mas deu errado, não obstante o fato de ser divertido. Faz todo sentido, não?
Faz todo o sentido sim, Milton. E é interessante que você utilizou a palavra divertido. Este final é um dos poucos momentos em que Shostakovich é puramente divertido, de maneira infantil mesmo, ao invés de usar a sua ironia. Aquela melodia no xilofone (se não estou enganado) realmente me lembra uma criança tendo a sua primeira aula, tocando a melodia mais simples e inocente possível. E eu infelizmente nunca pude assistir a esta sinfonia ao vivo, mas este dia ainda chegará.
“Viva la Muerte!”
Milton, meu caro! Há alguns minutos estou aqui no seu blog, pensando ter entrado num salão iluminado deserto, tendo todo o espaço só para mim; olhando a foto do Shosta toda brilhante enquanto o restante do mundo ocupado está bebericando num bar, numa boate, ou dormindo. Gostei muito do texto, só lamento por ser ainda incapaz de saber como baixar esse material todo com qualidade. Lembra do MP3 do Mahler que mencionei certa vez? Pois então, parte das gravações é de 1910 e 1920, com péssima qualidade (a sinfonia 5 está quase inaudível). Não tenho muita sorte com a música erudita, porra, que adoro. Não ajuda confessar isso estando bêbado como um gambá.
Não!
Não cantarei à morte…
NAVEGANTES (à “WONDERWALL”)
by Ramiro Conceição
Por mais assustador que seja,
não há qualquer porto seguro
a não ser no mar de si mesmo;
e, mesmo assim, é só por instantes:
a nossa essência é dos navegantes.
O resto é a religião dos náufragos
em que são salvos só os capitães!
Não!
Não cantarei à morte…
NAVEGANTES (à “WONDERWALL”)
by Ramiro Conceição
Por mais assustador que seja,
não há qualquer porto seguro
a não ser no mar de si mesmo;
e, mesmo assim, é só por instantes:
a nossa essência é dos navegantes.
O resto é a religião dos náufragos
em que são salvos só os capitães!
NAVEGANTES
(à “WONDERWALL”)
Não!
Não é o momento de cantar à Morte…
NAVEGANTES (à “WONDERWALL”)
by Ramiro Conceição
Por mais assustador que seja,
não há qualquer porto seguro
a não ser no mar de si mesmo;
e, mesmo assim, é só por instantes:
a nossa essência é dos navegantes.
O resto é a religião dos náufragos
em que são salvos só os capitães!
Por mais assustador que seja,
não há qualquer porto seguro
a não ser no mar de si mesmo;
e, mesmo assim, é só por instantes:
a nossa essência é dos navegantes.
O resto é a religião dos náufragos
em que são salvos só os capitães!
Milton, deu pau!
Não entendi o que aconteceu.
Ontem, não conseguia postar…
Porém apareceu, depois, o resultado do conjunto das vezes que tentei postar… Não entendi… BLUFAS!
Bem, querido Milton, hoje estou num lugar maravilhoso: “A Pousada dos Cocais”, aqui no ES. Mas continuei a escrever durante o caminho…
HORROR
by Ramiro Conceição
Meu Deus, o que fizeram com as crianças?!
Meu Deus, o que fizeram com as crianças?!
Meus Deus, o que fizeram!…
FEIRÃO DE AUTOMÓVEIS
by Ramiro Conceição
Quando observo, no cruzamento,
um jovem fantasiado – de flecha,
a indicar o “FEIRÃO DE AUTOMÓVEIS”,
tenho a certeza de que esse nosso mundo
não passa de um absoluto – achincalhe!
Porra, ter o Ramiro como poeta itinerante em meu blog, e no blog do Milton: só para poucos! Uma das coisas que torna esse blog especial.
No meu também!
Desculpem, a venda do passe do Ramiro está fora dos planos do blog.
Fodam-se.
:¬))
Achei esse blog que pode lhe interessar:
http://oidofino.blogspot.com/2009/11/shostakovich-sinfonia-n-7-haitink.html