Publicado em 4 de outubro de 2004
Música, Música, Música
O Concerto de Martha Argerich e Nelson Freire em Porto Alegre. O repertório pianístico que emprega quatro mãos, seja sobre um ou dois teclados, é considerado inferior. É um preconceito derivado da função utilitária que teve por muitos anos. Houve tempo em que os editores costumavam publicar obras orquestrais facilitadas em arranjos a quatro mãos, e esta formação foi sempre considerada menos música de concerto e mais “coisa de sarau”. Bem, mas quando se unem duas estrelas do porte de Nelson Freire e Martha Argerich, tudo o que não acontece é um sarauzinho.
O repertório original para esta formação não é nada espetacular, mas é suficiente para um concerto de primeira linha, e como! Fui preparadíssmo para lá, tendo lido duas horas antes o post da Laura-RJ sobre o concerto no Rio e ouvido o disco de 1983 (em vinil, ainda), em que Freire e Argerich executam quase que todo o programa da noite. Estava tão mobilizado e entusiasmado que levei o bolachão comigo – como se pudesse ouvi-lo no carro – porém esta revelou-se depois uma providência muito inteligente.
Martha começou o concerto no mundo da lua. As Variações Sobre um Tema de Haydn (o Coral de Santo Antônio) não é uma peça complexa, mas vimos Brahms colocar repetidas bolas nas costas da argentina, que acabou comendo notas e embolando algumas frases. Sua vingança veio na Suíte Nº 2 de Rachmaninov, obra exigentíssima onde o virtuosismo da dupla nos mostrou claramente com quem estávamos lidando.
O resto foi maravilhoso. Uma peça de Lutoslawski – as Variações Sobre um Tema de Paganini -, um delicado Rondó de Schubert e La Valse, que merece comentário especial.
Ravel costumava trabalhar em várias obras ao mesmo tempo. Então, não é surpreendente que ele tenha trabalhado La Valse entre os anos de 1906 e 1920. Primeiramente, seu nome era simplesmente “Johann Strauss”, depois foi rebatizada para “Viena – Poema Coreográfico” e só em 1919 tornou-se “La Valse”. Trata-se de uma série de valsas divididas em duas partes, sendo a segunda uma repetição intensificada da primeira. É uma obra difícil, moderna, uma brilhante paródia. Ravel descreveu-a como “uma espécie apoteose da valsa vienense” – e, puxa vida, é mesmo! -, dando “a impressão de um redemoinho fantástico e fatal”. A mim, dá a impressão de casais dançando uma peça que não conseguirão acompanhar até o final, morrendo antes. É estranho que Ravel tenha escrito “fatal”. É uma obra sem palavras e fico surpreso e feliz que minha impressão seja corroborada por ele com tanta simplicidade. A versão orquestral da obra é mais famosa e ouvida, mas creio que a versão para 2 pianos seja ainda mais impressionante. Como ela finalizava o concerto, é óbvio que a platéia veio abaixo. Resultado: houve 7 bis. Nunca tinha assistido a um concerto com 7 bis e achei que a Laura tivesse errado quando afirmou que isto ocorrera no Municipal do Rio. E não pensem que eles voltavam loucos para tocar, eles hesitavam, recolhiam as rosas que a platéia jogava e iam embora… só sentavam nos pianos quando a mão da gente já estava doendo… O que Argerich e Freire fizeram em La Valse é algo que desejo nunca mais esquecer. Foi i-na-cre-di-tá-vel.
Na saída, exultantes, ficamos conversando com amigos no hall de entrada quando surgiram Freire e Martha para os autógrafos. Não sabia que isto estava programado e, depois de longa hesitação, fui buscar meu vinil no carro e entrei na fila. Martita recebeu o disco com surpresa, olhou a capa onde aparece jovem e sexy aos 43 anos ao lado de um Nelson Freire com 40 e ficou balançando a cabeça negativamente; então, olhou-me e disse mírame ahora. Não fui digno da grandeza do momento, fiquei nervoso, engoli em seco e disse idiotamente: isto foi há 21 anos atrás, Martha. Deveria ter-lhe dito que ela continuava linda, competente, profissional, perfeita e atraente ainda hoje, aos 64 (não, não, melhor não falar em idade…), mas só saiu-me aquela besteira. Não obstante, ela brindou-me com um enorme sorriso e escreveu na capa do disco 21 anõs después, Martha Argerich. Já Freire olhou longamente o disco como se fosse algo muito raro e de que não tivesse ainda conhecimento e assinou simplesmente: Nelson Freire.
Festival Mozart no Santander. Completando o fim de semana musical, fomos assistir a um recital no qual vários grupos de instrumentistas da OSPA (Orquestra Sinfônica de Porto Alegre) interpretariam obras de câmara de Mozart. A OSPA recém fez concurso e há uma série de músicos jovens e de primeira linha loucos para tocar. Ainda não estão contaminados… E como são bons! Eles – acompanhados por alguns renitentes veteranos como Augusto Maurer e Arthur Elias – formam o novíssimo Collegium Musicum da OSPA, que esperamos que não tenha a vida efêmera de várias boas iniciativas culturais de nossa cidade. O programa focou exclusivamente aquela música de câmara de Mozart para sopros e cordas, algo de anormal coerência e que faz a alegria de qualquer ouvinte mediamente informado. Eu, pessoalmente, detesto aqueles programas malucos em que temos de viajar anos e quilômetros entre uma obra e outra. Ouvimos o jovem Quarteto para Flauta e Cordas K. 285, o Adágio para Corne Inglês e Cordas K. 580a (lindo!) e o esplêndido Quinteto para Clarinete e Cordas K. 581. Tudo foi muito bem executado e os três solistas de sopro foram impecáveis. Temos músicos bons que moram aqui, que trabalham aqui e não há razão para não ouvi-los. Vida longa ao Collegium Musicum!
No dia 29 de outubro, às 21h, o grupo reaparecerá no Teatro São Pedro. Quem estiver em Porto Alegre e gostar de música já sabe onde ir.