Em protesto, Nelson Freire cancela concertos com a Orquestra Sinfônica Brasileira

Nelson Freire anunciou o cancelamento das apresentações que faria com a OSB — Orquestra Sinfônica Brasileira — , a qual passa por enorme imbroglio entre seus dirigentes e músicos. Freire, que se apresentou com a OSB pela primeira vez há 55 anos, desmarcou os dois concertos agendados para esta temporada — as apresentações seriam em agosto. A notícia repercutiu internacionalmente em sites especializados em música erudita, provando que a OSB tornou-se finalmente uma orquestra de importância mundial, como deseja seu regente titular e diretor artístico Roberto Minczuk.

O cancelamento deixa clara a contrariedade do pianista para com as atitudes da Fundação OSB e de seu regente titular e diretor artístico, Roberto Minczuk. Sempre discreto e elegante, Freire, um homem que é um monstro ao piano, que estuda e trabalha mais de seis horas por dia no instrumento e que poderia ter testado e cheirado até do avesso, manda um recado inequívoco: “Sou solidário aos músicos demitidos”.

Caras como o polêmico crítico inglês Norman Lebrecht comentaram o rumoroso caso que talvez possa ser resumido assim:

O regente titular e diretor artístico Roberto Minczuk — neste acúmulo de cargos mora um grande perigo, é o mesmo que dar poderes ilimitados a uma potencial estrela — resolveu realizar, assim de surpresa, provas de avaliação de desempenho. A convocação aconteceu logo após o início da férias da orquestra e a ordem era que deviam prestar uma prova de avaliação do seu potencial artístico. É estranho, pois não há notícia de caso semelhante, nenhuma orquestra do mundo exige tal prova, pois a avaliação é diária. Mesmo as avaliações feitas na OSESP nos anos 90 foram realizadas de forma civilizada, de comum acordo e sem a espada da demissão sobre a cabeça de ninguém — quem era ruim ia para o time B tocar nos festins estaduais, quem era bom ficava no time e as vagas que sobrassem eram preenchidas por novos concursos. Era justo. Na OSESP, John Neschling sabia que tinha um grupo fraco e que precisava reforçá-lo. De forma clara, justa e conversada, montou a maior orquestra do país.

Como disse, as avaliações nas orquestras e mesmo nas empresas costumam ocorrer no dia a dia e não em provas de proficiência. Trabalhei numa multinacional onde havia um ranking de funcionários. Achava confortável, nada agressivo e lutava para ter resultados. As regras era claras e factíveis. A empresa estabelecia metas e a gente ia atrás delas com chances de recuperação e aconselhamento durante o processo. Neschling, na OSESP, sabia muito bem quem ia passar e quem não ia. E criou funções para seu time B. Havia necessidade? Mas é claro! Há concertos e concertos e há a necessidade das orquestras criarem conservatórios ou escolas, não?

Porém, na OSB houve até um Programa de Demissão Voluntária (PDV). Além das indenizações garantidas pela legislação trabalhista à demissão sem justa causa (aviso prévio, multa de 40% do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e saque do FGTS), o plano oferecia continuidade dos salários e do plano de saúde até o próximo mês de junho. Criou-se assim um impasse que o autor destas linhas vê como MUITO COMPLEXO, pois se havia desacordo sobre os critérios, tempo de preparação e a exigência inédita da prova, havia também o regente e diretor artístico.

Roberto Minczuk, Roberto Minczuk… é apenas um Roberto Minczuk, nada mais, e desta forma deveria se comportar com um deles. Os músicos fizeram o maior barulho, alegando que não precisariam ser reavaliados, uma vez que já haviam passado por um rigoroso concurso para entrar na orquestra, no que têm razão parcial, em minha humilde opinião.  Também diziam que não haveria tempo suficiente para se prepararem e reclamavam que deveriam ter sido convocados para colaborar na criação do sistema de avaliação, no que tem toda a razão. E protestavam que eram avaliados diariamente, no que têm carradas de razão. Ou será que Minczuk desconhece o grupo com o qual trabalha?

Além disso, Roberto Minczuk não seria avaliado… Por que não? Vi-o reger duas vezes e suas concepções eram bastante discutíveis.

A atual contabilidade mostra a dureza dos dirigentes da orquestra. Dos 82 músicos, exatos 41 não compareceram às duas chamadas para a avaliação. Destes, 31  já receberam o comunicado de demissão. Dos outros dez, sete estavam com atestado médico e foram convocados para uma nova audição, marcada para amanhã (06/04). E três também foram chamados novamente para a avaliação, por não terem recebido a convocação anterior.

Os demitidos já entraram na Justiça do Trabalho. Enquanto isso, ensandecidos, a OSB decidiu cumprir o calendário de concertos deste primeiro semestre de 2011 com a OSB Jovem, orquestra formada por bolsistas. É a loucura completa. Parece uma caça às bruxas.

Estranhamente, a OSB informou que não há relação entre a crise com os músicos que rejeitaram a avaliação e a série de audições para seleção de novos músicos que a direção da orquestra promoverá, durante o mês de maio, em Londres, Nova York e no Rio de Janeiro. O objetivo, segundo a fundação, é apenas a de preencher 13 vagas que estão abertas no corpo orquestral da OSB: seis para violino, três para viola e uma para violoncelo, clarineta, trombone e piano. Bem, então também não haverá segundo semestre, correto? Pois saem 41 e entram apenas 13! Muito estranho.

Minczuk segue defendendo que as avaliações serviriam para elevar a orquestra a um padrão internacional. Conseguiu. O assunto está presente em todas as revistas e colunas mais ou menos especializadas do mundo. Não sei se Minczuk está feliz com o gênero de notoriedade alcançada. Mas acho que ele deveria escolher entre permanecer como diretor artístico — cargo que ele deve desprezar mas que lhe dá poder — ou regente. Isso, é claro, após o aval de uma banca de padrão internacional, como ele gosta.

Afinal, quando um Nelson Freire — calmíssimo, jeitosíssimo, ultramineiro — chuta o pau da barraca, é porque a coisa foi longe demais.

13 comments / Add your comment below

  1. Claro que a esta altura a única atitude digna de toda a diretoria da OSB e sua Fundação seria a renúncia coletiva. Mas como ousariam deixar outros entrarem e encontrarem provas de que desde há muito aquilo tem sido um gigantesco e imoralíssimo cabide?

      1. Milton, cada vez mais eu me convenço de que talento é o que menos importa para um regente. Aqui também tem politicagem, mas no Brasil as proporções passam muito longe do absurdo.

        Eu, por exemplo, conheço um cara que fez sua tese de mestrado em regência e análise na maior universidade do país (não irei citar nomes de pessoas ou instituições aqui) sobre um compositor brasileiro ainda vivo, e mostrou seu texto para um dos grandes professores desta faculdade. O professor disse: “a sua tese é uma das melhores, senão a melhor que eu já li. Só que eu não favoreço a obra desse compositor, então ou você muda o tema ou não será aprovado”. Acredite quem quiser…

  2. Ontem à noite, no telejornal da TV Brasil, alguém da OSB (acho que era o Minczuk) dizia que na cidade que chamaria muita atenção por receber uma copa do mundo e uma olimpíada, era necessário ter uma orquestra que estivesse à altura. Pouquíssimo sei de música erudita e nem posso ter opinião sobre a polêmica da orquestra, mas os critérios para avaliar (tudo – a formação de uma orquestra no longo prazo, uma copa e uma olímpiada, o que se quer para uma cidade) me parecem mais do que discutíveis. O curioso é como a copa serve para todo mundo justificar tudo…

  3. Toda essa megalomania só desperta em mim um sincero desejo, até então inédito, de conhecer a regência de Minczuk. Não que espere qualquer surpresa ou revelação, pois cada vez mais tenho acesso a testemunhos confiáveis de que o wunderkind “não é tudo isso” com a batuta.

  4. Confesso que ainda não consegui dar razão para nenhum dos lados nesse embróglio todo.

    O que me parece certo é que tentaram implementar um processo muito complexo e delicado de forma totalmente atabalhoada.

    Implementar uma gestão por mérito em desempenho em ambientes tradicionalmente regidos pela estabilidade funcional (ainda que tácita, legitimada pelos concursos de entrada) é coisa dificílima e altamente explosiva. Isso era óbvio e, como vimos, a Fundação OSB e o maestro não estavam preparados para lidar com o processo. O presidente da Fundação publicou um texto no Estadão ontem, cheio de platitudes e senso-comum gerencial. A posteriori é fácil se explicar.

    Agora, como podemos negar que algo deveria ser feito para melhorar a OSB? O problema, é claro, reside no “como fazer”. Mas o Neschling, na OSESP, também enfrentou a mesma gritaria dos interesses estabelecidos da velha orquestra.

    Os músicos falam em “avaliação no dia-a-dia”. Mas pense na hipótese: se o maestro, juntamente com a diretoria da Fundação, decidissem mandar embora 5 músicos que considerassem com desempenho insatisfatório no “dia-a-dia”. A gritaria, escândalo e as acusações, não seriam as mesmas?

    A tentativa de organizar esse processo por meio das Audições se deu justamente para formalizar e legitimar a coisa. Ofereceram o PDV para “humanizar” o ato sempre cruel de “mandar embora”. É assim que fazem as Empresas Privadas organizadas quando tem que demitir muita gente. O erro foi pressupor que uma orquestra tenha a mesma cultura, e aceite os mesmos critérios, que uma Empresa Privada.

    Talvez eu seja ingênuo, mas não coloco toda essa bagunça na conta do estrelismo ou soberba do maestro, ou mesmo de intenções excusas da Fundação.

    Acredito que tudo que estamos vendo é fruto da incompetência para lidar com mudanças que se fazem necessárias. Incompetência de ambos os lados.

    No final, que se estrumbica, é a OSB mesmo.

  5. icompetente é você meu “caro”… demissões já aconteceram … essa tem sido a prática desse maestro , só que dessa vez ele ultrapassou os limites da ética, da moral e do bom senso!!!

  6. Eu não gosto do Minczuk, nem pessoal nem profissionalmente, mas nesta questão eu tenho que dar razão para ele. Os músicos de orquestra, no Brasil, são tradicionalmente incompetentes e desanimados. São os primeiros para reclamar dos próprios salários – que não são nada baixos, na minha modesta opinião -, mas os últimos para darem o sangue pela orquestra em que trabalham.

    Isto tem normalmente uma explicação que, para eles, parece justa: “porque eu vou me esforçar pela orquestra se fazendo cachê eu ganho cinco vezes mais?” Acho perfeito: pede demissão da orquestra e vai fazer cachê! E ganhar dez vezes mais, se o ponto é este.

    Eu duvido muito que o Minczuk tenha simplesmente “tirado do nada” essa prova. Ela veio depois de outras tentativas, de conversa, de cobrança, de xingamentos histéricos (ele é um pavão colorido, tem dessas)…mas de performances desprezíveis da orquestra.

    No Brasil, acontece muito de o pessoal encher a boca pra falar que tudo funciona, que tudo se dá um jeitinho, que brasileiro é melhor que os outros. Não é! É igual a todo mundo. E tem mais: música clássica séria não se faz com jeitinho. Se faz como faz o Nelson Freire: estudando seis horas, ou mais, por dia. Quer quer, não quer, faz concurso para o Banco do Brasil. Opa…vai trabalhar o mesmo número de horas…

    Ou seja, o Freire que é o Freire (por exemplo, o único brasileiro entre os 70 que a Philips homenageou com a série Great Pianists of the 20th Century) se mata no instrumento para tocar a brilhante carreira dele à frente. Agora um violinista de quinta fila acha que lendo à segunda vista no ensaio está bom…não está!

    Dito tudo isto, apoio o Minczuk e qualquer um que fizer algo para sacudir o establishment das orquestras, pois isto tem dinheiro público – aos rios – envolvido. E, muito mais importante que dinheiro, é nossa cultura, sendo vilipendiada por quem acha que tem direito a uma teta para mamar.

    Enfim, numa hora dessas só dá para lembrar daquela velha frase: Brasil, ame-o ou deixe-o. Minha passagem está marcada…

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