Passei o fim de semana pensando no jogo. Como acho que penso e me organizo melhor quanto também escrevo, fiz o jogo completo ontem à tarde. Abaixo, o primeiro tempo, digamos. Nada de entregar a decisão antes da hora, claro. Quem acha que enlouqueci ao promover jogos de futebol entre livros clássicos e nem imagina do que falo, deve informar-se aqui de fatos bastante anormais. Na verdade, são tantos detalhes, tantas emoções, que acho que terei de levar minhas anotações para o estádio.
Boa noite.
A missão impossível que me pedem hoje é a de realizar uma partida de futebol entre dois dos maiores romances da grande literatura inglesa – Middlemarch e Orgulho e Preconceito. Comparar dois livros que amo é, guardadas as proporções, fazer uma Escolha de Sofia, decidindo qual de meus filhos – tenho dois aos quais amo incondicionalmente – deve ser encaminhado para as câmaras de gás de Auschwitz. Então, para afastar de mim os critérios meramente afetivos, criei regras próprias. Em primeiro lugar, elegi cinco itens que seriam caros à literatura que ambas as autoras praticam. Em segundo lugar, procurei deixar longe de mim a afirmativa do mestre E. M. Forster, outro britânico, no seu ensaio Aspectos do Romance: “O teste final de um romance será a nossa afeição por ele, como é o teste de nossos amigos e de qualquer outra coisa que não possamos definir”. Também desconsiderei o fato de que, para meu gosto, alguns quesitos têm importância superior a outros. Os quesitos:
0. (Zero, porque aqui as autoras não marcam gols). Notícia biográfica das equipes
1. Linguagem, foco narrativo
2. Construção de conflitos e estrutura do romance
3. Construção de personagens
4. Relevância sociológica
5. Análise psicológica (relevância ontológica)O número de quesitos que marcam gols é ímpar por um motivo muito simples: queria evitar o empate. Não suportaria que meu jogo acabasse numa vulgar decisão por pênaltis.
Começo então por uma notícia biográfica de ambas:
Jane Austen nasceu em 1775 e morreu em 1817. Viveu, portanto, 41 anos. Orgulho e Preconceito foi publicado em pela primeira vez em 1813 quando autora tinha 38 anos. É seu romance mais conhecido e popular. Austen escreveu apenas outros cinco, todos excelentes: Razão e Sensibilidade (1811), Mansfield Park (1814), Emma (1815) e os póstumos A Abadia de Northanger (1818) e Persuasão (1818). Austen nunca casou, sempre morou com os pais. Escrevia seus romances no quarto e tinha pudor de quando alguém abria a porta — escondia imediatamente os cadernos. A vida de Jane Austen é um deserto de grandes acontecimentos. O fato mais próximo a um caso amoroso, foi um breve amor juvenil por Thomas Lefroy (parente de uma amiga de Austen), aos 20 anos. Em janeiro do ano seguinte, 1796, escreveu a sua irmã dizendo que tudo havia terminado, pois ele não podia casar por motivos econômicos. Pouco depois, uma tia de Lefroy tentou aproximar Jane do reverendo Samuel Blackall, mas ela não se interessou.
Em comparação com a vida de Austen, a existência de George Eliot foi espetacular. Ela nasceu dois anos após a morte de Austen e viveu 20 anos mais, chegando aos 61. Middlemarch foi publicado quando ela tinha 53. George, que na verdade chamava-se Mary Ann Evans, apaixonou-se e fugiu com um homem casado, George Henry Lewes, com o qual viveu por quase vinte e cinco anos até a morte dele. Sete meses antes de falecer, George Eliot casou-se com seu primeiro biógrafo, John Walter Cross, vinte anos mais moço. Sua vida parece a de uma mulher moderna.
Mas equivoca-se quem pensar que elas tinham pouco em comum. O jogo, apesar de reunir dois estilos muito pessoais e únicos, é duríssimo e estamos sem poder tranquilizar a massa torcedora do StudioClio sobre o resultado e sem poder gritar, como Galvão Bueno o faria, que Eliot ou Austen é o Brasil no Sport Club Literatura.
Então comecemos a peleja pelo pela linguagem e foco narrativo:
Quem leu Orgulho e Preconceito ou outros livro da autora, sabe. Austen é leve e enganadora, a gente pensa que está numa mesa de chá e, com a maior graça, ela nos apresenta abismos que, pensando bem, já estavam ali, mas dos quais não pressentíamos a profundidade. Austen não faz comédia, mas nos obriga a gargalhadas; expõe dramas, mas não é trágica; é grave, porém leve; é clássica, apesar da ousadia. A ação é posta em movimento pela tensão variável entre poucos personagens. O romance não deixa transparecer claramente seu esquema por trás de diálogos absolutamente fluentes e de uma narradora de tom zombeteiro. Num espaço rural limitado, as pessoas fazem visitas, vão a bailes, tomam chá, enganam umas às outras, armam situações e divagam sobre suas vidas e planos. O refinado humor da escritora se manifesta em tudo: ameniza os dramas e diverte-se com os personagens. É o próprio time do Barcelona. Troca passes em diálogos ininterruptos, seduz a todos, inclusive os adversários, para depois matá-los.
Enquanto isso George Eliot aposta numa vitória baseada em rigoroso esquema defensivo. Ela tece com obsessiva minúcia os panos de fundo de cada cena e, nesta particularidade, é menos moderna que Austen. Podemos dizer que tem alma de socióloga, o que poderá render-lhe gols mais à frente. É importante dizer que Orgulho e Preconceito tem aproximadamente 300 páginas, enquanto que Middlemarch tem quase 1000. As torcidas presentes hoje ao StudioClio dirão que isso não tem a menor importância, mas este árbitro discorda: tem tudo a ver pelo simples fato de que George Eliot enrola e joga no erro do adversário. Quando menos se espera, a tragédia econômica de Fred Vincy, por exemplo, fica-nos clara com tal riqueza de detalhes que pensamos que só lhe resta a vergonha total, o suicídio, se não houvesse uma moça para lhe salvar.
Porém, como estamos aqui para julgar e não para ficar na arquibancada comendo picolés ou cerveja sem álcool – pois o Estatuto do Torcedor criminosamente não permite o consumo de álcool nos estádios – decidimos que a linguagem de Jane Austen acaba de fazer um belo gol na impecável defesa de George Eliot, que não contava com uma falha individual. Pois na página 162, a autora, sim, ela mesmo, começa a falar de surpresa na primeira pessoa do singular, deitando teses e atrapalhando a narrativa. Em contraposição, temos em Austen trechos de virtuosismo quase inalcançável como a cena em que a Lydia fala besteiras sem parar, fazendo a atenção do leitor mais volátil ir embora, depois descobrimos confortavelmente que fomos acompanhados na fuga por Elizabeth, que também não faz a menor ideia do que Lydia falara. Orgulho e Preconceito 1 x 0 Middemarch.
Por enquanto…
Muito bom, instigante, inspirador.
Belos critérios.
Goooooooooooooooooooooooooooooooooooollllllllllllllllllllllllllllllllllll!!!!!!!!!
(uma das minha passagens favoritas, se não “A” favorita)
Gol de placa e com drible!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Ok, não sei nada de futebol, mas conheço um gol bonito quando vejo um 😉
E eu que pensei que já tinha visto de tudo neste mundo!!!!!
Bem, como eu só li Orgulho e Perconceito, não tem como avaliar se teve impedimento ou se o juíz roubou um pênalti….
e que tal fazer um campeonatinho estilo Libertadores: chaves e depois mata-mata? a gente pode até ajudar no sorteio das chaves!
(espero que nenhum psiquiátra esteja lendo isso…)
Sorte e saúde pra todos!
Rapaz, falar nisso de misturas, e essa nova série de livros misturando Jane Austen com terror B. Já vistes. Hoje mesmo estava na Saraiva e vi lá: Orgulho e Preconceito e Zumbis; Jane Austen e monstros marítimos. Fiquei por entender.
Eu tb.
A onda é maior e pior Charlles. Anna Karenina ganhou uma versão em que é um autômato (robô dezenoveano) e a já há uma invasão nos clássicos nacionais. E não para. Está para sair um Orgulho e Preconceito pornográfico.
Se servir para chamar atenção para os originais, até pode ser, mas não levo muito fé.
Mas você não era o juiz? Você trouxe a bola, cantou hino e já chutou pros dois lados do campo!? Eu nem saberia o que dizer depois dessa introdução.
Em se tratando de campeonato, deve dar Austen, que é autora mais conhecida.
Mas falando em ser chato, essa coisa de que romances existem apenas como uma diversão de alto nível… sinceramente…
É. Tens razão. Discordo de mim mesmo. O romance talvez seja a melhor forma de apreender uma realidade.
Digamos que a literatura seja um subproduto da superrestrutura que nos remete, sob o crivo de uma subjetividade determinada, com seus próprios vícios de condição e classe, a pensar sobre a estrutura, enquanto, em paralelo, tece fios por todas as relações de produção, principalmente a dos discursos inerentes à sociedade que os utiliza em todos os campos, inclusive o científico. Senão, meu chapa, vira um divertimento puro e simples para o pequeno burguês satisfeito, e aí tome Sidney Sheldon, porque Austen e, principalmente, Eliot são pés no saco das ideologias, nos obrigando a pensar e não ratificar nossos próprios preconceitos ou filiações partidárias.
Marcos Nunes,
Virgínia Woolf fala sobre Jane Austen em seu livro “Um teto todos eu” e, creio eu, resume muito bem essa tecitura de relações:
“ali estava uma mulher, por volta de 1800, escrevendo sem ódio, sem amargura, sem medo, sem protestos, sem pregações.”
abs, raquel
(Jane Austen em Português)
Digamos que o pé no saco das ideologias seja um subproduto da fimose cerebral que nos leva, sob nossos próprios vícios pernósticos e acadêmicos, ao onanismo verborréico – senão, vira um divertimento puro e simples para o burguês ilustrado, e aí tome viagra para fermentar a retórica.
Prezado Milton Ribeiro,
achei muito interessante a sua idéia! Gostaria de pedir sua permissão para publicar no blog da Jane Austen Sociedade do Brasil.
obrigada,
Adriana Zardini
Tranquilo, manda bala!
Estou gostando desse juiz!
Eu lembro do meu fascínio quando, no calor da leitura de Orgulho e Preconceito, percebi que eu havia caído perfeitamente no artifício da autora: que o preconceito que a rapariga (desculpe, não lembro o nome de nenhum dos personagens) nutria com relação ao moço, havia sorrateiramente sido apropriado por mim mesmo, que o preconceito não era só da personagem, mas meu – foi um saboroso choque à minha ingenuidade imberbe. Lembro também que eu dava gargalhadas com os ditos epigrâmicos daquele poltrão que é o pai das gurias – o humor inglês é mesmo um barato.
Do jeito que anda a coisa, me empolga mais torcer pela Jane do que pelo Falcão.
Lucas,
quando li pela primeira vez Orgulho e preconceito, eu era uma jovem bastante rabugenta, e diferente da maioria das leitoras que comentam em meu blog, tomei partido imediato de Mr. Darcy. Me coloquei no lugar da criatura, num baile chato e cheio de gente inconveniente, conclui que “qualquer selvagem pode dançar”!
Eu devo ter sentido instintivamente uma potencial concorrência masculina, Raquel, o que me fez embarcar na maré contra Mr. Darcy. Mas depois ele vira o jogo, e então nada mais me resta, foram-se minhas mulheres. Aliás, me restou o prazer dos ditos satíricos ao lado do folgazão do pai delas.