A fuga da Vicentina

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Na verdade, a gente não gosta da Vicentina. Ela tenta entrar pela janela do carro para dormir protegida lá dentro — raspa com as unhas a pintura do carro — ; ela tem um medo fóbico de quase tudo — interage pouco — ; ela não aprende nada — todos nós desconfiamos de uma sub-sub-alimentação na mais tenra infância. Porém, depois que ela passou a morar lá em casa, sua vida é de boa ração, banho com o sabonete recomendado, vacinas em dia, essas coisas. Nós agregamos a Vicentina a fim de dar uma companhia à Juno, nossa pastora genial que tudo sabe da vida. Foi uma adoção. A Vicentina, coitada, apanha da Juno. Pois ela é um paradoxo: é uma viralata bem feínha que traz no peito a aspiração de ser uma cachorra de madame. Então ela se chega aos donos balançando o rabo, olhando-nos com olhos pedintes de um somali de jornal. Suas orelhas enormes e rebeldes caem para qualquer lado, o que lhe dá um ar cômico que nunca me ocorreria relacionar com um faminto. E quer um colo, mas não para brincar, quer um colo para ficar ali, parada e protegida, recebendo carinho. E a Juno fica com ciúmes. Quando a Vicentina volta para o chão, leva uma mordida no pescoço que é para deixar claro quem manda no pedaço.

Pois ela, sempre que o carro entra na garagem, dá uma voltinha pela rua e entra de volta correndo, coisa que a Juno não se permite. Na última quarta-feira, deve ter ficado lá fora. Talvez tenha visto um cachorro divertido ou um grupo animado deles. Era noite, a gente não se deu conta do sumiço. Na manhã seguinte, a Juno chorava pelos cantos. Num primeiro momento, procuramos desesperadamente a cachorra; num segundo momento, já projetávamos uma substituta da mesma raça da Juno enquanto minha filha rejeitava a ideia, pois há uma defensora da Vi lá em casa. Então começou a chover e todos nós fomos morrendo aos poucos de pena, porque uma das coisas que a Vicentina mais detesta é água, ainda mais aquela incontrolável que cai de cima. Faz cocô e mija na garagem quando chove. É impossível ensiná-la a fazer suas necessidades na rua quando chove no pátio. Preocupados, preparamos cartazes para tirar a Vicentina daquela situação, mas antes que os colássemos, a bichinha apareceu.

Estava na frente de casa, encostada na grade, com medo da chuva, claro. Voltou meio machucada e com uma coleira de plástico típica de quem passou uma curta temporada com um mendigo. Não preciso dizer que abanava o rabo como um helicóptero e que estava mais apavorada do que nunca. Será que ela vai aprender que aquela voltinha na rua é perigosa?

Vicentina em versão decente, com as orelhas baixas
Juno e Vicentina
Vicentina com orelhas abertas. Não merece uma plástica?

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20 comments / Add your comment below

  1. Tadinha! A Vicentina é mesmo uma pentelha, querendo atenção o tempo todo e a gente não pode dar por causa da Juno. Mas é claro que não merecia isso. Que bom que ela está de volta.

    (offtopic – pensava que só a Dúnia não gostava de chuva)

  2. Olha, pelo jeito, a Vicentina não foi feita para vadiar (não vadeia, Vicentina!). Alguém disse que os bichinhos são anjos que Deus pôs na Terra. Exageros à parte, uma coisa é certa: eles são muito, muito melhores do que nós. Em minha opinião, são superiores, emocionalmente, aos humanos. Por interesse, desde os primórdios, o homem domesticou os demais animais. Hoje, de cada 10 doenças, seis delas têm origem nos animais domesticados. Mantemos um relação meramente utilitarista com eles: servem como alimento, cobaia, trabalho, vestuário e diversão. Abomino quem se utiliza de cães como guardas. Os cães-guias e aqueles que auxiliam nos resgates, estão ali exercendo a solidadriedade, mas nós achamos que é um trabalho. Cães, gatos e outros pequenos animais, devem ficar, sempre que possível, dentro de casa, junto com a gente, pois eles são nossos amigos. E não se deixa um amigo na rua, muito menos amarrado. Não somos donos de animais; somos apenas os responsáveis por eles. Não devemos comprar, devemos adotar bichinhos em situação de risco, de preferência. Por fim, devemos lutar pela desconstrução de uma perversa hierarquia: Deus-Homem-Animal-Planta. Em nome dessa hierarquia, todas as perversidades e malfeitos são justificáveis. Boa parte de nossos problemas (emocionais, ambientais, espirituais, econômicos) são frutos dessa péssima e equivocada relação com as demais formas de vida. O homem, entorpecido pelo consumo e pela carta branca que julga ter recebido de Deus (ao ser criado à sua imagem e semelhança) um dia “há de encontrar-se consigo mesmo e só dependerá dele, se aquele será o melhor dos seus dias ou o pior de seus infortúnios”. Que bom que a Vicentina voltou! Ela merece o lar que tem.

  3. Milton,
    estou desconfiado que a tal da Vincentina, talvez, seja chantagista, isto é, aquela velha mania conhecida de se fazer de vítima, um exemplo típico da ideologia do vencido.

    Milton, a Vicentina é católica…

  4. Não, Orquídea. Quando eu olhei para aquela coisinha preta, pensei em várias coisas pretas, dentre elas um trecho da música de Paulinho da Viola, No Pagode do Vavá:

    Domingo, lá na casa do Vavá
    Teve um tremendo pagode
    Que você não pode imaginar
    Provei do famoso feijão da Vicentina
    Só quem é da Portela é que sabe
    Que a coisa é divina

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