O Fausto de Sokurov é um filme ESTUPENDO. O Fausto de Sokurov é um filme de Tarkovski de cabo a rabo. No ritmo, no estilo, na dramaturgia, no extremo cuidado estético. Não que isso o prejudique, de modo algum. Mas não vou fazer o elogio do filme, quero ressaltar outro aspecto, pois o que poucos sabem é a dobradinha que Sokurov faz com Putin. Não o censuro, muitíssimos artistas do passado — e que hoje admiramos — tiveram mecenas que roubavam e matavam, desta forma, nem sempre suas posses eram, digamos, legais. Muitos destes poderosos não tinham o menor interesse pessoal na arte e pareciam desejar o perdão e a imortalidade atráves de seus protegidos. Então, não chega a surpreender o fato de Putin — como um imperador — ter repassado dinheiro do estado para a obra. “Fiquei espantado e não entendi o motivo pelo qual Putin, que nunca foi um amigo meu, decidiu apoiar o filme”, disse Sokurov.
Mais ou menos, né? Talvez seja o momento de esclarecer aos sete leitores deste blog que, apesar de não ser seu “amigo”, Sokurov é um politicamente conservador e apoia Putin. “Putin me chamou para conversar. Eu disse a ele que, se não obtivesse os recursos, Fausto jamais seria filmado (ou seja, Sokurov pediu o dinheiro). Alguns dias mais tarde, me disseram que o dinheiro que precisava estava sendo entregue. Como e porque isso aconteceu eu não sei. Talvez seja porque ele tem muito conhecimento da cultura alemã e da história. Eu creio que tenha sido por minha causa.”
O complemento de Sokurov é quase cômico: “Quando eu o encontrei recentemente, ele perguntou se eu dublaria Fausto para o russo. Li entre as linhas da mensagem e a entendi como uma espécie de ordem. Não teria medo nenhum de negar-lhe o pedido, porém, o dinheiro é do estado, não dele próprio. Eu não sei se ele tem dinheiro. De acordo com o seu salário oficial, ele não deve ter nenhum dinheiro.”
Porém, o que realmente me surpreende é que — apesar dos típicos arroubos russos e do estilo tarkoviskiano — o tema é germânico até o último fio de cabelo. As deslumbrantes imagens também baseiam-se em obras de pintores germânicos. O produtor Andrei Sigle esclarece alguma coisa sobre o interesse de Putin: “Fausto é um grande projeto cultural russo e isto é muito importante para Putin. Ele pensa que um cineasta como Sokurov, realizando uma obra como aquela, pode introduzir a mentalidade russa dentro da cultura europeia, promovendo a integração cultural”.
Se a intenção de Putin era a de integrar, fez boa escolha. Sokurov tem uma sintaxe russa e se considera o sucessor de Tarkovski. Justo. “Eu nunca quis ser seu aluno. Eu o amava como pessoa. Sua morte foi a maior perda da minha vida. Eu tinha metade de sua idade, mas ele me tratou como um igual, com carinho e confiança ilimitada. eu ficava envergonhado. Tinha que demonstrar a ele toda a minha admiração, mas sua naturalidade no trato impedia”. Ao mesmo tempo, Sokurov diz ser “mais um Europeu”. “Dickens, Flaubert, Zola são o meu mundo. Isso é o que me criou.” É neste contexto que ele declara que ele não gosta muito de cinema, o que é mais uma curiosidade…
Se Tarkovski era um dissidente soviético e buscava representações do país em histórias do passado, Sokurov é um aliado do czar que faz o mesmo para representar nosso tempo. Fausto é um tremendo filme tanto do ponto de vista ontológico quanto do estético e só o tempo dirá se servirá ao projeto cultural secular do déspota (esclarecido) Vladimir Putin.
Se Sokurov foi aluno do genial Tarkovski, meu Deus, que enorme filme deve ser o seu Fausto.
E se o Milton gostou, reforça minha expectativa .
Franklin Cunha
Milton, só para confirmação, chegou inteiro o arquivo em pdf que lhe mandei?
Não recebi nadica.
Sokurov linha Tarkovski. Quem sabe eu consiga traduzir Goethe..
E Richard Strauss que não foi embora da Alemanha? E Villa-Lobos criticado porque aceitou cargo no governo Vargas e trabalhou propostas de canto orfeônico nas escolas? Dureza.
Quanto ao Fausto, filme extraordinário. Bergman e Tarkovski sabiam filmar a metafísica, a transcendência espiritual, à crítica à religião estabelecida. Na versão de Sokurov, o pacto de Fausto é com a ciência ou com o cientificismo – isto é, a ciência como explicação totalizante e universal (isso está na sua prática profissional, no diálogo com Marguerite após o enterro – “a ciência serve para preencher o grande vazio” – e no final, em seu desejo em recriar os fenômenos naturais – “eu sou capaz de recriar isso”, ao ver os gêisers).
Sokurov também apresenta a sua versão da Queda do homem descrita no Gênesis (Adão, Eva e o fruto “maldito”): Fausto quer provar o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, ele quer compreender os enigmas do funcionamento do universo. Fausto, a princípio está assombrado pelo gêiser, mas em seguida tem um rompante de soberba: é talvez a representação do homem cientificista que descarta a sobrenaturalidade ou a explicação metafísica das coisas. Ele vai embora para um novo mundo da filosofia naturalista, onde os deuses não fazem sentido.
Por outro lado, diante do gêiser, o diabo enxerga o poder de Deus e respeita. Ele sabe que, seu destino é “ser queimado”, como ele diz, e morrer sozinho “sem esperança e sem salvação” – isso tudo está mais próximo da versão bíblica, o que mostra o quanto o conhecimento teológico de Sokurov é diferente das versões hollywoodianas em que o diabo é glamouroso e contente.
é como se Bergman escrevesse o roteiro, Tarkovski fotografasse e Brueghel desenhasse o storyboard. grande filme.
Que interpretação preconceituosa a sua. Mas tem o lado que me deixa contente. Quando o sr. afirma ”’Não o censuro, muitíssimos artistas do passado — e que hoje admiramos — tiveram mecenas que roubavam e matavam”’ deve provávelmente estar se referindo aos EUA?
Fico contente de ler isso, pois suponho que o sr. será mais um a nos ajudar a varrer esse lixo cultural que os EUA nos exportam. Eles tem filmes bons também, mas são de um país que rouba e mata, principalmente fora de lá. Então….a luta contra o lixo?
Na verdade, estava pensando nos Medici de Firenze…