100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

100 Livros Essenciais da Literatura Mundial

Há algumas semanas, li a lista da extinta revista Bravo sobre os 100 livros essenciais da literatura mundial. A edição vendeu muito, disse o dono da banca de revistas meu vizinho. No final da revista, há uma página de Referências Bibliográficas de razoável tamanho, mas o editor esclarece que a maior influência veio dos trabalhos de Harold Bloom.

Vamos à lista? Depois farei alguns comentários a ela.

A lista é a seguinte (talvez haja erros de digitação, talvez não):

1. Ilíada, Homero
2. Odisseia, Homero
3. Hamlet, William Shakespeare
4. Dom Quixote, Miguel de Cervantes
5. A Divina Comédia, Dante Alighieri
6. Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust
7. Ulysses, James Joyce
8. Guerra e Paz, Leon Tolstói
9. Crime e Castigo, Dostoiévski
10. Ensaios, Michel de Montaigne
11. Édipo Rei, Sófocles
12. Otelo, William Shakespeare
13. Madame Bovary, Gustave Flaubert
14. Fausto, Goethe
15. O Processo, Franz Kafka
16. Doutor Fausto, Thomas Mann
17. As Flores do Mal, Charles Baldelaire
18. Som e a Fúria, William Faulkner
19. A Terra Desolada, T.S. Eliot
20. Teogonia, Hesíodo
21. As Metamorfoses, Ovídio
22. O Vermelho e o Negro, Stendhal
23. O Grande Gatsby, F. Scott Fitzgerald
24. Uma Estação No Inferno,Arthur Rimbaud
25. Os Miseráveis, Victor Hugo
26. O Estrangeiro, Albert Camus
27. Medéia, Eurípedes
28. A Eneida, Virgilio
29. Noite de Reis, William Shakespeare
30. Adeus às Armas, Ernest Hemingway
31. Coração das Trevas, Joseph Conrad
32. Admirável Mundo Novo, Aldous Huxley
33. Mrs. Dalloway, Virgínia Woolf
34. Moby Dick, Herman Melville
35. Histórias Extraordinárias, Edgar Allan Poe
36. A Comédia Humana, Balzac
37. Grandes Esperanças, Charles Dickens
38. O Homem sem Qualidades, Robert Musil
39. As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift
40. Finnegans Wake, James Joyce
41. Os Lusíadas, Luís de Camões
42. Os Três Mosqueteiros, Alexandre Dumas
43. Retrato de uma Senhora, Henry James
44. Decameron, Boccaccio
45. Esperando Godot, Samuel Beckett
46. 1984, George Orwell
47. Galileu Galilei, Bertold Brecht
48. Os Cantos de Maldoror, Lautréamont
49. A Tarde de um Fauno, Mallarmé
50. Lolita, Vladimir Nabokov
51. Tartufo, Molière
52. As Três Irmãs, Anton Tchekov
53. O Livro das Mil e uma Noites
54. Don Juan, Tirso de Molina
55. Mensagem, Fernando Pessoa
56. Paraíso Perdido, John Milton
57. Robinson Crusoé, Daniel Defoe
58. Os Moedeiros Falsos, André Gide
59. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
60. Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde
61. Seis Personagens em Busca de um Autor, Luigi Pirandello
62. Alice no País das Maravilhas, Lewis Caroll
63. A Náusea, Jean-Paul Sartre
64. A Consciência de Zeno, Italo Svevo
65. A Longa Jornada Adentro, Eugene O’Neill
66. A Condição Humana, André Malraux
67. Os Cantos, Ezra Pound
68. Canções da Inocência/ Canções do Exílio, William Blake
69. Um Bonde Chamado Desejo, Teneessee Williams
70. Ficções, Jorge Luis Borges
71. O Rinoceronte, Eugène Ionesco
72. A Morte de Virgilio, Herman Broch
73. As Folhas da Relva, Walt Whitman
74. Deserto dos Tártaros, Dino Buzzati
75. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez
76. Viagem ao Fim da Noite, Louis-Ferdinand Céline
77. A Ilustre Casa de Ramires, Eça de Queirós
78. Jogo da Amarelinha, Julio Cortazar
79. As Vinhas da Ira, John Steinbeck
80. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar
81. O Apanhador no Campo de Centeio, J.D. Salinger
82. Huckleberry Finn, Mark Twain
83. Contos de Hans Christian Andersen
84. O Leopardo, Tomaso di Lampedusa
85. Vida e Opiniões do Cavaleiro Tristram Shandy, Laurence Sterne
86. Passagem para a Índia, E.M. Forster
87. Orgulho e Preconceito, Jane Austen
88. Trópico de Câncer, Henry Miller
89. Pais e Filhos, Ivan Turgueniev
90. O Náufrago, Thomas Bernhard
91. A Epopéia de Gilgamesh
92. O Mahabharata
93. As Cidades Invisíveis, Italo Calvino
94. On the Road, Jack Kerouac
95. O Lobo da Estepe, Hermann Hesse
96. Complexo de Portnoy, Philip Roth
97. Reparação, Ian McEwan
98. Desonra, J.M. Coetzee
99. As Irmãs Makioka, Junichiro Tanizaki
100 Pedro Páramo, Juan Rulfo

A lista é ótima, mas há critérios bastante estranhos.

Se não me engano, só três semideuses têm mais de um livro na lista: Homero, Shakespeare e Joyce. OK, está justo.

No restante, é uma lista mais de autores do que de livros e muitas vezes são escolhidos os livros mais famosos do autor e dane-se a qualidade da obra. Se a revista faz um gol ao escolher Doutor Fausto como o melhor Thomas Mann, erra ao escolher Crime e Castigo dentro da obra de Dostoiévski – Os Irmãos Karamázovi e O Idiota são melhores; ao escolher Guerra e Paz de Tolstói – por que não Ana Karênina? -; na escolha de O Complexo de Portnoy, de Philip Roth; que tem cinco romances muito superiores, iniciando por O Avesso da Vida (Counterlife) e ainda ao eleger Retrato de Uma Senhora na obra luminosa de Henry James. Li por aí reclamações análogas sobre as escolhas de Brás Cubas e não de Dom Casmurro, de Cem Anos de Solidão ao invés de O Amor nos Tempos do Cólera e de As Cidades Invisíveis de Calvino, mas acho que é uma questão de gosto pessoal e não de mérito. Ah, e é absurda a presença do bom O Náufrago e não dos imensos e perfeitos Extinção, Árvores Abatidas e O Sobrinho de Wittgenstein na obra de Thomas Bernhard.

Saúdo a presença de grandes livros pouco citados como Tristram Shandy, obra-prima de Sterne muito querida deste que vos escreve, de Viagem ao Fim da Noite, de Céline, de A Consciência de Zeno, genial livro de Ítalo Svevo, de O Deserto dos Tártaros (Buzzati) e do incompreendido e brilhante Grandes Esperanças, de Charles Dickens, de longe seu melhor romance.

Porém é estranha a escolha de A Comédia Humana, de Balzac. Ora, a Comédia são 88 romances! Não vale! Estranho ainda mais a presença de autores menores como Kerouac e Malraux, além do romance que não é romance — ou do romance que só é romance em 100 de suas 1200 páginas: O Homem sem Qualidades, de Robert Musil.

Também acho que presença de McEwan e de Coetzee prescindem do julgamento do tempo, o que não é o caso de alguns ausentes, como Lazarillo de Tormes, de Chamisso com seu Peter Schlemihl, de George Eliot com Middlemarch, de Homo Faber de Max Frisch e de O Anão, de Pär Lagerkvist, só para citar os primeiros que me vêm à mente. E, se McEwan e Coetzee esttão presentes, por que não Roberto Bolaño?

E Oblómov??? Não poderia ficar de fora!

(O Bender escreve um comentário reclamando a ausência de Grande Sertão, Veredas, de Guimarães Rosa. É claro que ele tem razão! Esqueci. Coisas da idade.)

Com satisfação pessoal, digo que este não-especialista não leu apenas Os Miseráveis, o livro de Blake e os de Lautréamond, Mallarmé, Ovídio e Hesíodo. Isto é, seis dos cem. Tá bom.

P.S.- Milton mentiroso! Não li Finnegans também!

Este post foi publicado em 13 de dezembro de 2007, mas quase nada mudou.

Eu, estudando… O Mestre e Margarida, de Bulgákov (II)

Eu, estudando… O Mestre e Margarida, de Bulgákov (II)

II — As circunstâncias em que foi escrito O Mestre e Margarida

Bulgákov escreveu O Mestre e Margarida sem a menor perspectiva de publicação. Escreveu para a gaveta. Os motivos eram óbvios — o romance era uma sátira à União Soviética produzido durante a época stalinista –, mas os detalhes são surpreendentes.

Imaginem: o escritor era cristão ortodoxo. Isto numa época em que  a religião era proibida. A URSS era um estado ateu. A perseguição aos religiosos começou em 1917 e a eliminação em massa começou em 18. O ápice foi entre 1937 e 38, enquanto Bulgákov escrevia o romance. Em 37, foram presos 136.900 padres e funcionários de igrejas. Destes, 85.300 foram simplesmente executados. Em 38, foram presos 28.300 e executados 21.500. Espero que estes números deixem claro quão impossível era falar do assunto Religião naquela época.

Stálin tinha real interesse por arte, costumando ir regularmente a concertos, óperas e peças de teatro. Ele pessoalmente assistiu, reprovou e fez proibir uma ópera de Shostakovich, por exemplo. Nos anos 20, ele assistiu quinze vezes — não é exagero — à peça Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov. Simplesmente adorou e ia aos camarins cumprimentar os atores a cada sessão que ia. Esteve presente também na estreia, quando a cortina foi erguida nove vezes a fim de que os atores fossem aplaudidos. Stálin também costumava telefonar de madrugada para assessores e outras pessoas quaisquer com quem tivesse assuntos a tratar. Sofria de insônia e, com sua fama, é claro que assustava quem recebia as ligações. Telefonou uma vez para Bulgákov após este lhe enviar quase uma centena de cartas pedindo permissão para emigrar. Bulgákov reclamava que era um dramaturgo conhecido no exterior, mas que na URSS estava fadado à miséria, à rua e à ruína. A lenda diz que foram várias ligações de Stálin, mas uma aconteceu com certeza.

O conteúdo geral desta ligação é bem conhecido. Bulgákov ficou com medo e teve receio de insistir quando Stálin disse que preferia que ele permanecesse na URSS. O líder prometeu-lhe um emprego em um teatro, o que acabou acontecendo. Assim, ele encontrou trabalho no Teatro da Juventude do Trabalho de Moscou (TRAM), e depois no Teatro de Arte de Moscou. Sim, trabalhou com Stanislavski. Neste século, o dramaturgo espanhol Juan Mayorga escreveu uma peça que começa com o famoso telefonema de Stálin para Bulgákov, chamada Cartas de Amor para Stálin.

Anos depois da conhecida ligação, Bulgákov tentou se tornar um escritor “soviético”, dentro dos padrões do realismo socialista. Em 1939, ele começou a trabalhar em uma peça laudatória ao líder. Mas Stálin, ao ler os esboços, parece não ter ficado satisfeito e, sem falar com o autor, indiretamente proibiu Bulgákov de terminá-la, não permitindo o acesso do escritor e de sua esposa aos arquivos em Batumi, cidade georgeana onde Stálin iniciou sua vida política. A peça era cheia de clichês socialistas, nada era vivo. E o Secretário-Geral sabia como Bulgákov podia escrever.

Bulgákov morreu em 1940 e sua maior obra, O Mestre e Margarida, veio a público somente em 1966-67. Ou seja, ela permaneceu desconhecida de seus contemporâneos. Mas ele já tinha publicado peças de teatro e outras obras em prosa, como as extraordinárias novelas Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro. Sua arte é de absoluto virtuosismo. Se o campo onde se sente melhor é o da sátira corrosiva, ele também sabia descrever classicamente cenários bíblicos, como fez em partes de O Mestre.

Mikhail Bulgákov (1891-1940) nasceu em Kiev, na Ucrânia, que era então parte do Império Russo. Ele foi o primeiro filho de Afanasiy Bulgákov, professor da Academia Teológica de Kiev. Seus avôs eram clérigos da Igreja Ortodoxa Russa. Em 1916, aos 25 anos, formou-se médico na Universidade de Kiev e depois, junto com seus irmãos, alistou-se no Exército Branco. No início da Primeira Guerra Mundial, como médico voluntário da Cruz Vermelha, foi imediatamente enviado para o front, onde foi gravemente ferido em duas ocasiões.

Após a Guerra Civil, com a derrota dos brancos e a ascensão do poder dos soviéticos, sua família emigrou para o exílio em Paris. Apesar de sua situação relativamente privilegiada durante os primeiros anos da Revolução, Bulgákov viu-se impedido de emigrar da Rússia devido a um insistente tifo. Nunca mais viu sua família.

As lesões da guerra tiveram graves efeitos sobre sua saúde. Para aliviar sua dor crônica, especialmente no abdômen, foi-lhe administrada morfina. Ficou viciado, e parou de injetá-la em 1918, aos 27 anos. O livro Morfina, publicado em 1926, atesta a situação do escritor durante esses anos. Em 1919, aos 28, ele decidiu trocar a medicina pela literatura.

Elena Shílovskaya

Em 1932, aos 41 anos, Bulgákov casou-se pela terceira vez com Elena Shílovskaya, que seria a inspiração do personagem Margarida de sua novela mais famosa. Durante a última década de sua vida, Bulgákov trabalhou em O Mestre e Margarida, além de escrever peças, fazer revisões, traduções e dramatizações de romances. Alguns foram para o palco, outros não foram publicados e ainda outros foram destruídos. Bulgákov trabalhou no romance de 1928 a 1940, ano de sua morte.

Em 1931, irritado com a censura a uma de suas peças, queimou o manuscrito do romance, mas voltou a ele dias depois.

Para quem hoje lê Bulgákov, talvez o fato do escritor não apoiar o regime comunista seja apenas uma informação complementar. O que interessa é que ele foi o mais brilhante dos gozadores, dos zombeteiros. O autor ria da burocracia e dos governantes. E todos nós temos governantes, feliz ou infelizmente. Não obstante o amor do chefe Stálin, o escritor suportou grande assédio da NKVD, que chegou a procurá-lo em casa e prendeu-o em mais de uma ocasião. Em 1926, levaram todos os manuscritos encontrados em sua casa, esboços e diários. Devolveram 3 anos depois. Só sete décadas e 50 anos após a morte do escritor, quando da abertura dos arquivos da KGB, os documentos foram conhecidos. Não continham nada comprometedor.

Muitas evidências sobreviveram sobre a atitude do escritor em relação ao poder soviético na década de 1920. Entre eles há artigos na imprensa branca e materiais de interrogatórios. Porém, há um fato que comprova certa independência do escritor: os brancos o criticavam por ser pró-revolução e os revolucionários pelo motivo contrário. Para os comunistas, sua arte era um “brancovanguardismo” e ele seria um “reacionário social”; para os brancos, ele seria mais um vendido. É curiosa a posição onde Stálin colocou seu potencial inimigo Bulgákov, muitos dos escritores que não apoiaram a revolução foram presos, muitos foram mortos. Bulgákov não.

Bulgákov foi morrer de um problema renal em 1940, aos 48 anos.

Dois assessores do diabo numa escultura em Moscou: o gato Behemoth e Korovin com seu monóculo quebrado

Em vida, Bulgákov ficou conhecido principalmente pelas obras com as quais contribuiu para o Teatro de Arte de Moscou de Konstantín Stanislavski. Foram muitas comédias e adaptações de romances para o teatro, casos, por exemplo, de Dom Quixote e Almas Mortas. Bulgákov também escreveu uma comédia grotesca fazendo com que Ivan, o Terrível, aparecesse em Moscou na década de trinta. Um sucesso.

Em meados de 1920, Bulgákov conheceu os livros de Wells e, profundamente influenciado, escreveu várias histórias com elementos de ficção científica. Um exemplo é a extraordinária novela Um Coração de Cachorro, onde Bulgákov critica abertamente — e com impressionante cinismo e ironia — a primeira década do poder soviético. Outro é a hilariante Os Ovos Fatais.

Morfina merece menção especial. Trata-se do diário de um companheiro do protagonista, o médico Poliakov. É uma crônica da autodestruição. Ele escreve no início do livro: “Eu não posso louvar quem primeiro extraiu a morfina das cabeças das papoulas”. No mais, é uma história clínica escrita por um mestre. “Como viciado, eu declararia que o ser humano só pode funcionar normalmente após uma injeção de morfina, mas eu era médico”.

A novela satírica O Mestre e Margarida, sem chances ou tentativas de publicação durante sua vida e que foi publicada por sua esposa vinte e seis anos após a morte do escritor, certamente lhe garante a imortalidade literária. Por muitos anos, o livro só pôde ser obtido na União Soviética como samizdat, antes de sua aparição por capítulos na revista Moskva. É o grande romance do período soviético e contribuiu para criar várias expressões do dia a dia russo.

Uma das últimas fotos. Mikhail Bulgakov, com sua esposa Elena Shilovskaya

Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (III): Mikhail Bulgákov, o homem que recebia ligações de Stálin

Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (III): Mikhail Bulgákov, o homem que recebia ligações de Stálin

Stálin tinha real interesse por arte, costumando ir a concertos, óperas e peças de teatro. Foi ele, pessoalmente, quem assistiu, reprovou e fez proibir uma ópera de Shostakovich, por exemplo. Também assistiu quinze vezes — não é exagero — à peça Os Dias dos Turbin, de Mikhail Bulgákov. Simplesmente adorou. Stálin também costumava telefonar de madrugada para assessores e outras pessoas quaisquer com quem tivesse assuntos a tratar. Sofria de insônia e, com sua fama, é claro que assustava quem recebia as ligações. Telefonou uma vez para Bulgákov após este lhe enviar quase uma centena de cartas pedindo permissão para emigrar. A lenda diz que foram várias ligações, mas uma aconteceu com certeza.

O conteúdo desta ligação é bem conhecido. Bulgákov ficou com medo e teve receio de insistir quando Stálin disse que preferia que ele permanecesse na URSS. O líder prometeu-lhe um emprego em um teatro, o que acabou acontecendo. Assim ele encontrou trabalho no Teatro da Juventude de Trabalho de Moscou (TRAM), e depois no Teatro de Arte de Moscou. Neste século, o dramaturgo espanhol Juan Mayorga escreveu uma peça que começa com o famoso telefonema de Stálin para Bulgákov, chamada Cartas de Amor para Stálin.

Leia mais:
— Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (I): Dmitri Shostakovich
— Os 100 anos da Revolução Russa em seus artistas (II): Serguei Prokofiev

Anos depois da conhecida ligação, Bulgákov tentou se tornar um escritor “soviético”, dentro dos padrões do realismo socialista. Em 1939, ele começou a trabalhar em uma peça laudatória ao líder. Mas Stálin, ao ler os esboços, parece não ter ficado satisfeito e, sem falar com o autor, indiretamente proibiu Bulgákov de terminá-la, não permitindo o acesso do escritor e de sua esposa aos arquivos em Batumi, cidade georgeana onde Stálin iniciou sua vida política. A peça era cheia de clichês socialistas, nada era vivo. E o Secretário-Geral sabia como Bulgákov podia escrever.

Nós também. Bulgákov morreu em 1940 e sua maior obra, O Mestre e Margarida, veio a público somente em 1966-67. Ou seja, ela permaneceu desconhecida de seus contemporâneos. Mas ele já tinha publicado peças de teatro e outras obras em prosa, como as extraordinárias novelas Os Ovos Fatais e Um Coração de Cachorro. Sua arte é de absoluto virtuosismo. Se o campo onde se sente melhor é o da sátira corrosiva, ele também sabia descrever cenários bíblicos, como fez em partes de O Mestre.

Mikhail Bulgákov (1891-1940) nasceu em Kiev, na Ucrânia, que era então parte do Império Russo. Ele foi o primeiro filho de Afanasiy Bulgákov, professor da Academia Teológica de Kiev. Seus avôs eram clérigos da Igreja Ortodoxa Russa. Em 1916, formou-se médico na Universidade de Kiev e depois, junto com seus irmãos, alistou-se no Exército Branco. No início da Primeira Guerra Mundial, como médico voluntário na Cruz Vermelha, foi imediatamente enviado para o front, onde foi gravemente ferido em duas ocasiões.

Após a Guerra Civil, com a derrota dos brancos e a ascensão do poder dos soviéticos, sua família emigrou para o exílio em Paris.  Apesar de sua situação relativamente privilegiada durante os primeiros anos da Revolução, Bulgákov viu-se impedido de emigrar da Rússia devido a um insistente tifo. Nunca mais viu sua família.

As lesões da guerra tiveram graves efeitos sobre sua saúde. Para aliviar sua dor crônica, especialmente no abdômen, foi-lhe administrada morfina. Ficou viciado, mas parou de injetá-la em 1918. O livro Morfina, publicado em 1926, atesta a situação do escritor durante esses anos. Em 1919, ele decidiu trocar a medicina pela literatura.

Elena Shílovskaya

Em 1932, Bulgákov casou-se com Elena Shílovskaya, que seria a inspiração do personagem Margarida de sua novela mais famosa. Durante a última década de sua vida, Bulgákov trabalhou em O Mestre e Margarida, além de escrever peças, fazer revisões, traduções e dramatizações de romances. Alguns foram para o palco, outros não foram publicados e ainda outros foram destruídos.

Para quem hoje lê Bulgákov, o fato do escritor não apoiar o regime comunista é apenas uma informação complementar. O que interessa é que ele foi o mais brilhante dos gozadores, dos zombeteiros. O autor ria da burocracia e dos governantes. Porém, como dissemos acima, Stálin adorava de uma de suas peças. Não obstante o amor do chefe, o escritor suportou grande assédio da NKVD, que chegou a procurá-lo em casa e prendeu-o em mais de uma ocasião.

Muitas evidências sobreviveram sobre a atitude do escritor em relação ao poder soviético na década de 1920.  Entre eles há artigos na imprensa branca e materiais de interrogatórios. Porém, curiosamente, os brancos o criticavam por ser pró-revolução e os revolucionários pelo motivo contrário. Para os comunistas, sua arte era um “brancovanguardismo” e ele seria um “reacionário social”; para os brancos, ele seria apenas um vendido. É curiosa a posição de admiração de Stálin, apesar da polêmica. Muitos escritores que não apoiaram a liderança de Stálin foram presos. Bulgákov não.

Bulgákov morreu de um problema renal em 1940, aos 48 anos.

Dois assessores do diabo numa escultura em Moscou: o gato Behemoth e Korovin com seu monóculo quebrado

Em vida, Bulgákov ficou conhecido principalmente pelas obras com as quais contribuiu para o Teatro de Arte de Moscou de Konstantín Stanislavski. Foram muitas comédias e adaptações de romances para o teatro, casos, por exemplo, de Dom Quixote e Almas Mortas. Bulgákov também escreveu uma comédia grotesca fazendo com que Ivan, o Terrível, aparecesse em Moscou na década de trinta. Um sucesso.

Em meados de 1920, Bulgákov conheceu os livros de H. G. Wells e, profundamente influenciado, escreveu várias histórias com elementos de ficção científica. Um exemplo é a extraordinária novela Um Coração de Cachorro, onde Bulgákov critica abertamente — e com impressionante cinismo e ironia — a primeira década do poder soviético. Outro é a hilariante Os Ovos Fatais.

Morfina merece menção especial. Trata-se do diário de um companheiro do protagonista, o médico Poliakov. É uma crônica da autodestruição, escrita em termos perturbadores. Ele escreve no início do livro: “Eu não posso ajudar a louvar quem primeiro extraiu a morfina das cabeças das papoulas”. No mais, é uma história clínica escrita por um mestre. “Como viciado, eu declararia que o ser humano só pode funcionar normalmente após uma injeção de morfina, mas eu era médico”.

A grande obra-prima

A novela satírica O Mestre e Margarida, escrita para a gaveta, sem chances ou tentativas de publicação durante sua vida e que foi publicada por sua esposa vinte e seis anos após a morte do escritor, certamente lhe garante a imortalidade literária. Por muitos anos, o livro só pôde ser obtido na União Soviética como samizdat, antes de sua aparição por capítulos na revista Moskva. É o grande romance do período soviético e que contribuiu para criar várias expressões do dia a dia russo.

Sabem aqueles livros que valem por cada palavra? Que é engraçado, profundo, social, histórico, existencial e grudento? Pois O Mestre e Margarida satisfaz todas as condições acima. A influência do livro pode ser medida pelo reflexo da obra não somente na cultura russa, mas na mundial. O livro Os Versos Satânicos, de Salman Rushdie, tem clara e confessa influência de Bulgákov; a letra da canção Sympathy for the Devil, dos Rolling Stones, foi escrita logo após Mick Jagger ter lido o livro, assim como Pilate, do Pearl Jam, e Love and Destroy da Franz Ferdinand, a qual é baseada no voo de Margarida sobre Moscou. Mas nem só a literatura e o rock homenageiam Bulgákov: o compositor alemão York Höller compôs a ópera Der Meister und Margarita, que foi apresentada em 1989 na ópera de Paris e lançada em CD em 2000.

A recente e excelente edição da 34.

O romance começou a ser escrito em 1928. Em 1930, o primeiro manuscrito foi queimado pelo autor após ver censurada outra novela de sua autoria. O trabalho foi recomeçado em 1931 e finalizado em 1936. Sem perspectiva alguma de publicação, Bulgákov dedicou-se a revisar e revisar. Veio uma nova versão em 1937 e ainda outra em 1940, ano de sua morte. Na época, apenas sua mulher sabia da existência do romance.

Uma versão modificada e com cortes da censura foi publicada na revista Moscou entre 1966 e 1967, enquanto o samizdat publicava a versão integral. Em livro, a URSS só pôde ler a versão integral em 1973 e, em 1989, a pesquisadora Lidiya Yanovskaya fez uma nova edição — a que lemos atualmente — baseada em manuscritos do autor.

Uma amiga russa me escreve por e-mail: “Eu tinha uma colega de quarto que lia apenas O Mestre e Margarida. Ela terminava e voltava ao início. E dava gargalhadas e mais gargalhadas. Na Rússia o livro foi tão lido que surgiram expressões coloquiais inspiradas por ele. A frase dita por Woland, Manuscritos não ardem, é usada quando uma coisa não pode ou não será destruída. Outra é Ánnuchka já derramou o óleo, para dizer que o cenário de uma tragédia está montado”.

As cenas de Pôncio Pilatos, a do teatro, a do belíssimo voo de Margarida e a do baile são citadas aqui e ali com enorme admiração. E a fama é justa.

A ação do romance ocorre em duas frentes, alternadamente: a da chegada do diabo a Moscou e a da história de Pôncio Pilatos e Jesus, com destaque para o primeiro. O estilo do romance varia espetacularmente. Os capítulos que se passam em Moscou têm ritmo vivo e tom de farsa, enquanto os capítulos de Jerusalém estão escritos em forma clássica e naturalista. Em Moscou, o demônio (Woland) vem acompanhado de uma improvável claque composta por Korovin — altíssimo com seu monóculo rachado –, o enorme gato Behemoth (hipopótamo, que rima com gato em russo), o pequeno Azazello e a bruxa Hella, sempre nua.

Arte: Elena Martynyuk

Moscou surge como um caos: é uma cidade atolada em denúncias e na burocracia, as pessoas simplesmente somem e há comitês para tudo. No livro, o principal comitê é uma certa Massolit (abreviatura para sociedade moscovita de literatura, que também pode ser interpretada como literatura para as massas) onde escritores lutam por apartamentos e férias melhores. Há também toda uma incrível burocracia, tão incompreensível quanto as descritas por Kafka, mas que formam uma atordoante série de cenas hilariantes.

Naquela Moscou o diabo está em casa e podem deixar tudo com ele, pois Woland e sua trupe demonstram notável criatividade para atrapalhar, alterar, sumir e assombrar. O escritor Bulgákov responde sempre à altura das cenas criadas. A cena do teatro onde é distribuído dinheiro e a do baile — há ecos dos bailes dos romances de Tolstói — são simplesmente inesquecíveis. Falei em Tolstói, mas a base de criação de Bulgákov é outro cômico ucraniano: Gógol.

O livro pode ser lido como uma comédia de humor negro, como alegoria místico-religiosa, como sátira à Rússia soviética ou como crítica à superficialidade das pessoas. Há mais pontos bem característicos: Bulgákov jamais demonstra nostalgia da Rússia czarista — apenas da religião — e Woland não está em oposição direta a Deus. Ele é como um ser que pune os maus e a covardia — é frequente no livro a menção de que a covardia é a pior das fraquezas. E as punições de Woland são criativas, desconcertantes.

Em 2006, o Museu Bulgákov, em Moscou, foi vandalizado por fundamentalistas. O museu fica no antigo apartamento de Bulgákov, ricamente descrito no romance e local dos mais diabólicos absurdos. Os fundamentalistas alegavam que O Mestre e Margarida era um romance satanista.

Mikhail e sua Margarida

Nas imagens finais de O Mestre, Mikhail Bulgákov dá uma dura avaliação do mundo que encontrou. Ele seria infernal e sem esperança. Era óbvio que as tentativas de se tornar parte do mundo soviético falharam. Ele não entendia aquele novo idioma.

Obs.: A tradução de Zoia Prestes, para a Alfaguara, é bastante superior à antiga, lançada lá por volta de 1993 pela Ars Poetica. Mas a mais recente, de Irineu Franco Perpétuo, para a Editora 34, é ainda melhor.

~ Curiosidades ~

A venda da alma

Sabe-se que Bulgákov foi muitas vezes ao Bolshoi para ver e ouvir a ópera Fausto, de Charles Gounod. Esta ópera sempre o animava, ele voltava feliz para casa. Mas, um dia, Bulgákov voltou do teatro em estado muito sombrio. Ele tinha começado a escrever sua peça sobre Stálin, Batumi. Bulgákov reconheceu-se na imagem de Fausto. Como escrevemos acima, a peça jamais foi concluída por ter sido indiretamente reprovada por Stálin.

Personagem desaparecido

Em 1937, nos 100 anos de aniversário da morte de Pushkin, vários autores apresentaram peças dedicadas ao poeta. Entre elas, havia uma de Bulgákov. Alexander Pushkin distinguia-se das obras de outros autores pela ausência do personagem principal. Bulgákov acreditava que a aparição do homenageado no palco tornaria tudo vulgar e insípido. Sua peça foi considerada a melhor daquele ano.

Tesouro

No romance A Guarda Branca, Bulgákov descreveu com bastante precisão a casa em que morara em Kiev. Lá, haveria um tesouro. Os novos proprietários da casa quase a derrubaram, quebrando paredes ao tentar encontrar o dinheiro descrito no romance. É óbvio que não encontraram nada e ainda ficaram irritados com o escritor.

História de Woland

Woland recebeu seu nome a partir do Fausto de Goethe. No Fausto, ele é citado apenas uma vez, quando Mefistófeles pede para que espíritos malignos abram espaço pois “O nobre Woland está chegando!” Em outros Faustos ele aparece como Faland ou Phaland. A primeira edição de O Mestre continha uma descrição detalhada (15 páginas manuscritas) de Woland. Esta descrição está perdida. Além disso, na versão inicial, Woland era chamado Astaroth (um dos demônios mais altos do inferno, de acordo com a demonologia ocidental). Mais tarde, Bulgákov o substituiu.

O protótipo de Behemoth

Em russo, diz-se Begemot. O ultrafamoso assistente de Woland tinha um protótipo real, só que este não era um gato, mas um cachorro: o grande cão preto de Bulgákov chamava-se Behemoth. Esse cachorro era muito inteligente. Uma vez, quando Bulgákov estava comemorando o Ano Novo com sua esposa, logo após o relógio de parede dar doze badaladas, o cachorro também latiu 12 vezes, embora ninguém lhe tivesse ensinado.

Escultura de Behemoth em Kiev | Wikimedia Commons

Memória

Desde os primeiros anos de vida, Bulgákov demonstrou possuir uma memória excepcional. Lia muito. Diz a lenda que ele leu tantas vezes o romance Notre Dame de Paris, de Victor Hugo, que o sabia de cor.

Coleção

Bulgákov tinha todos os ingressos de teatro — peças, ópera e concertos — a que compareceu.

Crítica soviética

O escritor também colecionava, coladas em um álbum, recortes de jornais e revistas com críticas de suas obras. Dava ênfase às mais devastadoramente hostis. De acordo com Bulgákov, ali havia 298 críticas negativas e apenas 3 elogiosas.

Defesa de Stanislavski

A primeira produção no Teatro de Arte de Moscou de Os Dias dos Turbin foi garantida por Konstantín Stanislavski. Ele simplesmente afirmou que, se a peça fosse banida, fecharia o teatro.

Stálin e Os Dias dos Turbin

Stálin gostava muito da peça e assistiu-a peça pelo menos 15 vezes, aplaudindo com entusiasmo desde o camarote destinado a membros do governo. Oito vezes ele desceu para falar com os artistas após a peça, a fim de incentivar a necessidade da luta política na literatura.

Uma das últimas fotos. Mikhail Bulgakov, com sua esposa Elena Shilovskaya

(*) Com pesquisa de Elena Romanov

Os melhores filmes de 2012

Bem, meus sete leitores me conhecem. Não posso oferecer-lhes a habitual lista de dez filmes porque não vi dez filmes realmente bons. E olha que vi uns oitenta.

A listinha ficou assim:

— A Separação, de Asghar Farhadi
— Drive, de Nicolas Winding Refn
— As praias de Agnès, de Agnès Varda
— Deus da Carnificina, de Roman Polanski
— Fausto, de Alexander Sokurov

Importante: como Porto Alegre é cada vez mais periférica, não viu filmes como Holy Motors, de Leos Carax, nem O Cavalo de Turim, de Béla Tarr. Periferia é foda, vou te contar…

Como filme do ano escolhemos por unanimidade:

O Fausto de Sokurov e o mecenato de Putin

Fausto de Sokurov é um filme ESTUPENDO. O Fausto de Sokurov é um filme de Tarkovski de cabo a rabo. No ritmo, no estilo, na dramaturgia, no extremo cuidado estético. Não que isso o prejudique, de modo algum. Mas não vou fazer o elogio do filme, quero ressaltar outro aspecto, pois o que poucos sabem é a dobradinha que Sokurov faz com Putin. Não o censuro, muitíssimos artistas do passado — e que hoje admiramos — tiveram mecenas que roubavam e matavam, desta forma, nem sempre suas posses eram, digamos, legais. Muitos destes poderosos não tinham o menor interesse pessoal na arte e pareciam desejar o perdão e a imortalidade atráves de seus protegidos. Então, não chega a surpreender o fato de Putin — como um imperador — ter repassado dinheiro do estado para a obra. “Fiquei espantado e não entendi o motivo pelo qual Putin, que nunca foi um amigo meu, decidiu apoiar o filme”, disse Sokurov.

Mais ou menos, né? Talvez seja o momento de esclarecer aos sete leitores deste blog  que, apesar de não ser seu “amigo”, Sokurov é um politicamente conservador e apoia Putin. “Putin me chamou para conversar. Eu disse a ele que, se não obtivesse os recursos, Fausto jamais seria filmado (ou seja, Sokurov pediu o dinheiro). Alguns dias mais tarde, me disseram que o dinheiro que precisava estava sendo entregue. Como e porque isso aconteceu eu não sei. Talvez seja porque ele tem muito conhecimento da cultura alemã e da história. Eu creio que tenha sido por minha causa.”

O complemento de Sokurov é quase cômico: “Quando eu o encontrei recentemente, ele perguntou se eu dublaria Fausto para o russo. Li entre as linhas da mensagem e a entendi como uma espécie de ordem. Não teria medo nenhum de negar-lhe o pedido, porém, o dinheiro é do estado, não dele próprio. Eu não sei se ele tem dinheiro. De acordo com o seu salário oficial, ele não deve ter nenhum dinheiro.”

Porém, o que realmente me surpreende é que — apesar dos típicos arroubos russos e do estilo tarkoviskiano — o tema é germânico até o último fio de cabelo. As deslumbrantes imagens também baseiam-se em obras de pintores germânicos. O produtor Andrei Sigle esclarece alguma coisa sobre o interesse de Putin: “Fausto é um grande projeto cultural russo e isto é muito importante para Putin. Ele pensa que um cineasta como Sokurov, realizando uma obra como aquela, pode introduzir a mentalidade russa dentro da cultura europeia, promovendo a integração cultural”.

Se a intenção de Putin era a de integrar, fez boa escolha. Sokurov tem uma sintaxe russa e se considera o sucessor de Tarkovski. Justo. “Eu nunca quis ser seu aluno. Eu o amava como pessoa. Sua morte foi a maior perda da minha vida. Eu tinha metade de sua idade, mas ele me tratou como um igual, com carinho e confiança ilimitada. eu ficava envergonhado. Tinha que demonstrar a ele toda a minha admiração, mas sua naturalidade no trato impedia”. Ao mesmo tempo, Sokurov diz ser “mais um Europeu”. “Dickens, Flaubert, Zola são o meu mundo. Isso é o que me criou.” É neste contexto que ele declara que ele não gosta muito de cinema, o que é mais uma curiosidade…

Se Tarkovski era um dissidente soviético e buscava representações do país em histórias do passado, Sokurov é um aliado do czar que faz o mesmo para representar nosso tempo. Fausto é um tremendo filme tanto do ponto de vista ontológico quanto do estético e só o tempo dirá se servirá ao projeto cultural secular do déspota (esclarecido) Vladimir Putin.

Diagnóstico de Alma Welt

Engraçado, meus sete leitores gostam mesmo de um mistério. Telefonemas, e-mails, comentários até hoje, réplicas… Tudo para descobrir a identidade de Alma Welt. E em verdade vos digo: Alma Welt existiu, assim como existem Lúcia Welt e o pesquisador Jungmar Jensen.

Anton Tchékhov existiu também. E quem duvida da realidade de Gurov e de sua dama do cachorrinho Ana Serguêievna? Thomas Mann esteve entre nós, mas confesso que Adrian Leverkühn me é muito mais consistente e presente, até por ter feito um pacto com o Demônio. O Demônio também existe e não serei eu a duvidar de Fausto. Aquele foi criado pela religião, este por uma lenda popular, o que é a mesma coisa. E o que dizer de Deus, tão presente em nossas vidas?

Um de nossos leitores foi bastante fundo, pois trabalhou como inspetor de polícia na cidade onde Alma Welt escreveu grande parte de sua obra e suicidou-se. Por vício de profissão e equipado de boas práticas e autoironia, encafifou com o caso: imaginem que ele pesquisou sobre todas as mortes e suicídios recentes de Rosário do Sul. Mais: entrou em contato com a Associação dos Poetas Rosarienses. Um de seus membros declarou estar “consternado por desconhecer a pessoa e a obra de Alma Welt e mais ainda por ela nunca ter feito parte dos quadros da instituição”. Desta e de muitas outras formas, meu leitor garante que nada daquilo ocorreu, nem a morte daquele pobre e torturado padre citado na fortuna crítica e biográfica da grande Alma. Sua única preocupação é um elegante deboche: ele gostaria de saber se dialoga com um homem ou com uma mulher. Por quê? Ora, é que estava despedindo-se de Lúcia Welt com beijos e se esta fosse um homem tal atitude poderia, em suas palavras, “arruinar minha reputação”.

Pois eu me contraponho e ataco a Jorge Lima perguntando-lhe se foram documentados os terríveis crimes ocorridos nas cidades gaúchas de Boa Ventura e Santa Fé. Por exemplo, o jornalista e advogado Dr. Alcides Viana foi morto numa madrugada por um certo Fagundes ao sair da casa de sua noiva. Onde soube disso? Ah, foi no romance Porteira Fechada, de Cyro Martins, mas e daí? Alcides não representa a imprensa idealista com colhões? E toda aquela mortantade que houve por dois séculos em Santa Fé? Ou alguém aí vai dizer que nosso escritor maior mentiu e que, por exemplo, Ana Terra e Rodrigo Cambará jamais existiram? ERA SÓ O QUE FALTAVA PARA ACABAR DE VEZ COM NOSSO ESTADO!!! Não basta a Yeda?

Então, mesmo que o número IP de Jungmar Jensen e Lúcia Welt fossem iguais em alguns momentos — apesar do cuidado que deus tinha de usar IPs variáveis — , a gente deve contribuir para que a existência e a essência da Alma Welt se espraie pelo pampa como a de Erico e de Cyro.

E digo mais, tive um caso com Lúcia Welt, sua irmã. Vi in loquo as extraordinárias pinturas de Guilherme de Faria tendo Alma Welt como modelo. Pratiquei maravilhosos intercursos em salas com paredes lotadas de Almas que nos observavam, arfantes e apaixonados. Amei Lúcia Welt sabendo que nela encontraria algo dos restos de sua irmã. E, contrariamente a nosso inspetor, encontrei não apenas a mesma carne e o mesmo sangue, como os inestimáveis papéis amarelados de Alma, todos rabiscados de sonetos.

O Pranto de Alma Welt, de Guilherme de Faria