Só eu sei como sofri com Zico

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Eram tempos um pouco diferentes dos de hoje, digo sem nenhuma nostalgia. Por exemplo, uma vez, passei dez dias em Itaqui. Estava fazendo um trabalho por lá e dependia de uma linha sem ruído da CRT. Que nunca veio. Era verão e anoitecia bem tarde. Quando o sol caía, eu caminhava pelas ruas da pequena cidade ouvindo continuamente as notícias do Jornal Nacional. Con-ti-nua-men-te, pois todas as casas de Itaqui ficavam com as janelas abertas e as tevês sintonizadas na mesma emissora. Parecia 1984, o livro de Orwell, apesar de que, pensando bem, talvez até fosse o ano de 1984 de verdade. Esqueçam a frase anterior. Parecia Fahrenheit 451, que também tem um Grande Irmão e este era representado pelas vozes de Cid Moreira e Sérgio Chapelin, que ecoavam a quase dois mil quilômetros do Rio de Janeiro.

As pessoas podiam até duvidar de alguma notícia, mas TODOS ouviam e viam a Rede Globo e quem duvida da influência dela nos anos 70 e 80, deve perguntar aos candidatos Fernando Collor de Melo e Luís Inácio da Silva. Ao menos um deles, contará boas histórias. Aquilo me irritava – pois adoro Itaqui e jamais falaria mal de seus habitantes que conhecem como poucos a arte de receber – e eu acabava na beira do rio para olhar Alvear e pensar na dona do hotel. Uma tarde, reclamei manhosamente que o ar condicionado de meu quarto não dava conta do calor. Ela foi conferir o fato in loco. A recepção ficou vazia por bastante tempo, prova de que nem todo mundo têm a opinião do Dante (o comentarista do Impedimento que não curte nada que eu faço).

Nas noites de domingo, a presença da Rede Globo parecia ainda maior. Tinha o Fantástico e, lá pelas 22h, entrava o Léo Batista com os gols pelo Brasil. O personagem principal, o mais festejado, o Rei da Globo e do Flamengo era um baixinho que atuava com a camisa 10. Rede Globo → Rio → Flamengo → Zico → Festa, simples assim. Era insuportável. Ainda mais que o cara era absolutamente genial.

Logo que ele apareceu, todos os Ceconelli do sul do Brasil, com sua neurótica fixação pelo número 3, diagnosticavam que ele era apenas um “jogador de Maracanã”, que era só botar “o Ademir Kaefer em cima dele pra ele abrir as pernas”, e torciam o nariz com ceticismo. Só que ele não parava de fazer gols – e era gol de tudo quanto era jeito, de pé direito, esquerdo, forte, colocado, de primeira, driblando meio mundo, de pênalti, de bate-pronto, de falta e até vários de cabeça, normalmente feitos no Botafogo.

O moço era realmente democrático. Tinha pra todo mundo. Todo o clássico no Maracanã tinha. A princípio, dando razão aos Ceconelli, o futebol e os gols de Zico apareciam mais quando acompanhados pela torcida do Flamengo, mas depois eles passaram a prescindir da companhia dela e vararam o Brasil. Eram gols bonitos, calculados, cheios de estilo. Não é favor compará-los com os de Messi. Zico também era pequeno e perdia poucos gols. Assim como o argentino, Zico calculava seus chutes. Raramente a bola estufava as redes com ódio, ela quase sempre dirigia-se para lá como uma criança dirige-se com sono para sua cama. A cena seguinte era a do protagonista correndo para a torcida, quase sempre passando pelo lado direito da goleira adversária para ir até o fosso do velho estádio. Era uma cena chata, repetitiva para os torcedores não flamenguistas.

O chamado Galinho de Quintino – apelido de considerável mau gosto – chutava bem demais. Sua cobrança de falta era mortal. Seus lançamentos também eram esplêndidos e quase todos os pênaltis que batia acabavam nas redes adversárias – quase todos eles chutados no canto direito do goleiro. Um dos mistérios que nem deus explica é porque os goleiros atiravam-se quase sempre para o canto esquerdo. A convicção com que se equivocavam – ou eram enganados – era algo patético, ridículo. A seguir vou colocar alguns poucos números de Zico como artilheiro, mas é importante esclarecer que ele não era exatamente um atacante, era um enganche que chegava para chutar. OK, era um enganche que não marcava ninguém, mas era um meio-campista, saía de lá. Só que quando estava na área demonstrava como ninguém a arte de se colocar bem. E livre. E a bola insistia em passar por ele.

E o que dizer das arrancadas? Quantas vezes Zico partiu da intermediária como quem não queria nada e acabou nas redes adversárias? Mas eu nem precisaria descrever suas qualidades. Vamos aos poucos números que prometi.

Ele marcou 699 gols em sua carreira. No Flamengo, foram 539 em 826 jogos. Em 72 jogos pela Seleção, fez 52 gols. Também jogou na Udinese e no Kashima, onde até hoje é chamado de サッカーの神様. Em Udine, um jornal escreveu: “Para nós, friulanos, Zico tem o mesmo significado de um motor da Ferrari colocado dentro de um fusca. Sentimo-nos os únicos no mundo a possuir um carro tão maravilhoso e absurdo”. Mas há mais: é o maior artilheiro do Maracanã, com 333 gols; no ano de 1979, marcou 81 gols em 70 jogos; e em sua carreira ganhou Brasileiro, Libertadores (da qual foi o artilheiro), Mundial de Clubes, Campeonato Carioca. Só não levou mesmo a Copa do Mundo, em parte por sua culpa ao errar um pênalti contra a França, no México, na Copa de Maradona.

Alguns times que o Flamengo construiu em torno de Zico foram arrasadores. O clube sempre tentava dar-lhe coadjuvantes sensacionais, mas aquele que tinha Raul no gol, Mozer na zaga, Leandro e Junior nas laterais, Andrade na volância com, à sua frente, sem posição fixa, Tita, Adílio, Lico e Zico, com Nunes lá na frente – nunca sozinho – era praticamente imbatível. Só eu sei como sofri com esses caras. Vou passar por cima da lesão que lhe infligiu Márcio Nunes, do Bangu, em 1985. Afinal, neste 3 de março, Zico está completando 60 anos e a gente não deve falar de coisas ruins.

Então, para finalizar e a fim de que ninguém diga que minto…

Publicado sábado (1) no Impedimento.

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12 comments / Add your comment below

  1. Sei que sofri mais. Sou atleticano e esse cara nos tomou um título brasileiro contra nossa melhor geração (Luizinho, Cerezo, Éder, Reinaldo…), além da chance de poder ganhar aquela libertadores (quem sabe até o mundial). Mais tarde, ainda nos derrotaria novamente na copa União, quando Telê havia nos levado à melhor campanha até o momento entre todos os demais clubes.

  2. Pelé? só vi em flashback. Messi? Temos que esperar, ainda não acabou a carreira. Maradona? acabou com a carreira. Ronaldo, Romário, Zidane? enormes, vastos, gênios. Mas faz toda diferença na sua vida quando se tem 10 anos de idade em 1981 e Zico é o melhor jogador do mundo.

  3. “em parte por sua culpa ao errar um pênalti contra a França, no México, na Copa de Maradona.” brasileiro é um miserável cruel, mesmo…

  4. Meu meio-de-campo tinha Falcão, Batista, Pelé e Zico, mas não era 4-4-2, nem sabia o que era isso, apenas colocava os melhores em campo o quê, somado a dez anos de idade, fizeram do Bira “burro” titular durante vários anos.
    Um dia pensei que tinham me roubado o Zico, fato insuficiente para deixar de jogar botão (não tinha especificado, precisava?), mas vivia procurando-o, era como se “meu time” andasse capenga – talvez porque seu substituto, o Jair (Príncipe Jajá) não tivesse a mesma fama. Com o Zico era diferente, quando os adversários ouviam seu nome, pareciamse assustar – mesmo que fosse apenas um botão de acrílico. Coisa de guri, deu saudades, agora…
    A maior lembrança do Zico humano não foi pelo Flamengo, nem pela seleção, mas pela vitória de um adversário, no caso o Brasil de Pelotas. Toda aquela empolgação xavante, toda a surpresa nacional, enfim… aquilo me comoveu, encheu de orgulho de ser gaúcho, pequeno, pobre, “ruim de dar dó” – adjetivos bem comuns no meio futebolístico. Me senti tudo isso naquela noite e me senti vitorioso., roubando a vitória xavante para mim.
    Foi esta a primeira vez que vi o futebol como metáfora, ainda que também não soubesse o que era isso.

  5. Conta a verdade: você fez esse post pra mim, certo? Os anos 80 só não foi a década perdida por causa do Zico. Só tinha uma certa birra com o Raúl, eu preferia o Cantarelli (que hoje é treinador de goleiros do Flamengo).

    Sabe aqueles momentos que te faziam mal? Eu esperava por eles a semana inteira.

    🙂

  6. Zico não entende nada soubre Corinthians so entende do seu flamengo, se Pelé falasse do flamengo como base da
    seleção, Zico concordaria

    Tem raiva do timão? nem como diretor do seu time se serviu fraco!!!

  7. Olha sou vascaino cára, mas pesquise lá na wikipédia, e vc. terá uma péssima surpresa. O Zico ganhou mais titulos que o seu corinthians.

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