O curioso e novidadeiro (sim, isto é muito positivo) programa de ontem da Ospa iniciou com a Sinfonia Simples, Op. 4, para orquestra de cordas, de Benjamin Britten (1913-1976). Britten escreveu-a aos 20 anos de idade, utilizando temas que compusera para o piano entre os dez e treze anos. A primeira apresentação foi em 1934, com o compositor regendo uma orquestra amadora. A Simples, em quatro movimentos, não faz jus à Britten, um sofisticado compositor do ponto de vista musical e literário. Digo literário porque a parte principal de sua produção é de música vocal baseada em estupendas obras, muitas das quais foram adaptadas por Britten e colaboradores para seu companheiro Peter Pears cantar. Britten era alguém tão cool e respeitado que nunca escondeu sua sexualidade, mantendo abertamente sua relação com Pears por mais da metade da vida.
Compositores gays raramente expunham sua vida pessoal, mas Britten fez muito mais. Não apenas a expôs como seus maiores trabalhos estão calcados sobre sua homossexualidade. Ouça Peter Grimes e A Volta do Parafuso e depois voltamos a conversar, tá? Conto tudo isso por duas razões: a primeira é para contar que, quando de sua morte, em atitude inédita, a Rainha da Inglaterra enviou um telegrama de condolências a Pears e, segunda, que a Sinfonia Simples é simples pra caralho e não merece grandes considerações. Ouvi-a pensando que poderia estar ouvindo os interlúdios do mar do enlouquecido pescador Grimes ou aquela incrível Serenata para tenor, trompa e cordas. Aquilo é lindo. Como veem, as obras da juventude podem ser perigosas como pudemos comprovar com …
I N T E R M E Z Z O
Hã? Como? Quem é este cara que está entrando com o violino na mão? Não é David Oistrakh? Meus caros amigos, o regente (excelente!) e violinista (notável!) Cláudio Cruz é um sósia de Oistrakh. E quando pega o violino então… Deste modo, informamos que, após trazer Asterix, Indiana Jones, Romy Schneider e de concursar um primeiro violista que é cara do atual 007, ontem a Ospa apresentou David Oistrakh.
F I M D O I N T E R M E Z Z O
… Felix Mendelssohn (1809-1847) compôs seu Concerto para violino e orquestra em ré menor aos 13 anos. Como compositor, talvez ele tenha sido o maior menino prodígio de todos os tempos, mas era ainda, audivelmente, um moleque que não desenvolvera a voz definitiva, falando e falhando como um adolescente. O concerto requer técnica apurada — mas tínhamos Oistrakh!! — e foi composto para Eduard Rietz, sete anos mais velho e igualmente um virtuose. O Concerto não deixa de ser uma novidade, pois a partitura foi redescoberta apenas há pouco mais de 60 anos. Certamente é produto da casa dos pais de Felix, que aos domingos enchia-se de músicos para tocarem as partituras do garoto, entre outras coisas. Era ele quem organizava os ensaios, tocava piano, violino e até regia. Era uma baita escola, claro, mas ainda não havia originalidade naquele corpinho. O concerto está dividido em três andamentos dentro do modelo dos concertos de Mozart. Não adianta, o grande concerto para violino e orquestra de Mendelssohn é o Op. 64, de 1844.
Antes do intervalo, após os merecidos aplausos, Cruz-Oistrakh apresentou um Prelúdio para violino solo de Flausino Vale. Uma música de grande qualidade que nos fez pensar na sofrida e pouco divulgada música brasileira.
Já não tão jovem, Schoenberg (1874-1951) tinha 25 anos quando compôs o sexteto para cordas — dois violinos, duas violas e dois violoncelos — Verklärte Nacht (Noite Transfigurada), em 1899. Contrariamente às anteriores, a obra faz parte do “repertório básico”, encerrando de modo melancólico o século XIX e, de certa forma, dando ponto final ao romantismo — se bem que alguns insistiram em ignorá-lo. Noite Transfigurada é uma música extremamente interessante, com toques de Richard Strauss, Debussy e Brahms. Foi readaptada em 1917 para a formação de orquestra de cordas, sendo revisada pela última vez em 1943. Ainda tonal, é praticamente uma obra de estreia que reelabora de maneira criativa o romantismo tardio, como dissemos.
Noite Transfigurada é programática, perfeitamente palatável ao público e conta uma história de traição e perdão — ou de gravidez, traição e amasso vencedor — , baseada num poema de Richard Dehme. Ao contrário de suas obras do período atonal, Noite Transfigurada não precisa ser consumida com moderação, cuidado e Eparema, tornando-se apaixonante desde a primeira audição. O tema da obra é curioso: um casal se encontra numa noite de lua cheia e se apaixona. Em meio a abraços, beijos e bolinação, a moça de repente se lembra, “Olha, é que tô grávida de outro, sabe?”. Em resposta, o rapaz prova que é dos bons e rebate, “Tô nem aí, vou cuidar do bebê como se fosse meu e viveremos para felizes para sempre nessa parceria. Na boa, eu assumo!”. (Claro que este é o subtexto de algo muito erudito. Estou apenas interpretando pra vocês uma obra ensimesmada, melancólica, de fundo leve e delicadamente erótico, tá? Nada disso está expresso na sutileza das cordas de Schoenberg).
Para o mestre, foi uma raridade: o público leigo gostava da Noite! Já velho, quando estava exilado nos Estados Unidos, ficou surpreso e encantado ao entrar num táxi e ouvir sua música no rádio. A versão para sexteto é mais delicada e deixa mais claro o jogo entre os instrumentos, porém a versão orquestral dá mais dramaticidade à obra. Aliás, a versão para orquestra está para Strauss e Wagner, e a do sexteto está para Brahms e Debussy, se são possíveis tais misturecas. Como disse amigo, até os maiores detratores de Schoenberg caem de amor pelo casal concupiscente. Espero que tenham sido felizes e que a criança tenha se criado.
Para quebrar a melancolia da obra, o maestro Cláudio Cruz, voltou com o bis de La Muerte del Angel, de Astor Piazzolla. Prova de que Oistrakh quis deixar o público mais alegre e que gosta — quem não gosta? — de aplausos.
Ah, quando a gente não fala na orquestra é sinal de que estava muito bem, correto?