O Resto é Ruído, de Alex Ross

o-resto-e-ruidoEu já tinha comprado este livro, mas ainda não o tinha lido. Surpreendi-me quando, em fevereiro, cheguei a Londres e descobri que o complexo de salas de concerto do Southbank Center estava apresentando uma série de espetáculos que teria a duração de um ano (é isso mesmo) e que era inteiramente baseada no livro de Ross. Ou seja, eles tinham lido O Resto é Ruído e já estavam escutando o século XX, como diz o complemento do título do autor norte-americano. Depois de comprar alguns ingressos com os quais pude assistir a um fantástico concerto com a Sagração da Primavera e outro sobre a obsessão de Ravel pela Espanha, não apenas me senti menos infeliz ao comparar Londres a Porto Alegre como decidi que leria imediatamente o livro. Quando voltei para casa, não precisei avançar muitas páginas para saber porque o ensaio, — que é recente, de 2007 — é objeto de tantos elogios, quase objeto de culto.

Sim, foi uma bela decisão ler o livro. Ross tem características que só são dadas a algumas poucas pessoas. Escreve bem e de forma envolvente, é uma enciclopédia, é extremamente inteligente, tem notável cultura histórica e política, além de saber ouvir maravilhosamente. O volume de 680 páginas é de extraordinária leveza. Li reclamações de que o livro não deveria ser lido por quem não escutou o século XX. É uma crítica válida apenas em parte. Fico feliz de pensar que os jovens de hoje têm um guia muito claro e democrático, não precisando perder-se entre tanta bobagem quanto eu tive. Além do mais, Ross coloca a música contra os acontecimentos sociais e políticos de cada época, mesmo que a intenção da arte fosse por vezes negá-la. Obra-prima raríssima, justifica as imagens que passavam antes dos concertos da série londrina The Rest is Noise, uma colagem que ia do início ao fim do século, desde Richard Strauss e Mahler até Steve Reich e Pärt.

A descrição e diferenciação das obras, a ligação com o jazz, a contextualização da música de Shostakovich e Prokofiev, a insular Segunda Escola de Viena, a recriação de Wagner pelo nazismo, as obras de Sibelius, Copland, Britten, Cage, os minimalistas, todos estão lá. Como pano de fundo, um século de loucura, destruição, alegria e muito, mas muito radicalismo na arte musical.

Não sei como Ross (1968) sabe tanto, mas dá para entender perfeitamente as 20 páginas de agradecimentos a todos os entrevistados, assim como as quase 50 de fontes consultadas. O livro é espantoso.

Como o autor gosta de fazer em seu blog, vou avisar que ele é de esquerda, anti-stalinista, libertário e gay. É mais um num mundo em que a direita não produz muita coisa além das obviedades de Vargas Llosa e de comentários raivosos em sites. Livro Absolutamente necessário para quem gosta de música.

P.S. — Aqui, mais sobre o festival inglês The Rest is Noise.

15 comments / Add your comment below

  1. Acho esse livro magnífico, Milton. Gostei bastante do “Escuta Só”, também publicado no Brasil pela Cia das Letras, cuja proposta é diferente, é uma coletânea de textos onde figuram boas análises de outros gêneros, como o rock.

  2. Há uns três anos já comentei sobre esse livro de Ross aqui. Até te mandei um e-mail, na época, te chamando a atenção para ele.

    Ross é um desses casos raríssimos de esquerdista esclarecido, com domínio sobre os fatos da história o suficiente para se policiar quanto ao ridículo (de forma que nem se nota qualquer ideologia política no volume). Usei algumas partes desse livro referentes a Chostakóvitch, sob o terror de Stálin. E é excepcional a análise que Ross faz entre Prokófiev (o puxa-saco, que quase nunca teve problemas por aderir à propaganda política), e Chosta, o que impregnava suas obras de contestação, sarcasmo e cenas sombrias para combater o regime (menção honrosa à sétima).

    O ensaio sobre o Radiohead em Escuta Só é uma das coisas mais incríveis que já li no campo da música e fora dele. Ross é um grande escritor.

      1. Aos montes. Mas não se assumem como tais. Muitas vezes são praticantes explícitos de tudo que o mundo capitalista oferece de mais exuberante, mas se escondem por trás de ideologias comunistas.

        Mas é um descalabro derivar um bom texto sobre Ross para essas camisarias finas da política “chão”.

  3. Caro Milton, tenho lido teu blog com certa freqüência (infelizmente, não sempre) e fiquei feliz ao me deparar com esse teu texto. Já tinha ouvido falar no livro, talvez até já o tenha visto em uma livraria (quem sabe a Bamboletras ou a Palavraria), mas, depois desse teu comentário certamente, será minha próxima aquisição (se também conseguirei ler em breve, é outra história). Quanto ao “Escuta Só”, é a mesma abordagem que esse livro, ou é uma obra mais restrita regional ou historicamente?

  4. Como cheguei atrasado, de novo, já ia te recomendar o “Escuta Só”.
    Então aproveito pra sugerir “O Triunfo da Música”, de Tim Blanning. Ótimo por se desvencilhar das cronologias tradicionais. Blanning percorre a história da música por temas (prestígio social do músico, espaços públicos e privados de concerto, tecnologia de confecção de instrumentos, senso de libertação – nacional, sexual e civil) e vai e volta no tempo a cada capítulo.Uma beleza de escrita e Bach está devidamente contemplado.

  5. Não entendi o último parágrafo. E se ele fosse hetero de direita? Ou gay de direita (existe, e muito), ou da esquerda stalinista, vc ia gostar menos do livro? E manteria o “aviso”? Abs M

  6. Não entendo como o autor dedica um subcapítulo inteiro (com várias seções) a um compositor inglês que adaptou a obra sobre um pescador que matava seus jovens ajudantes até ser julgado pelos moradores de sua cidadezinha, mas só pincela sons de outros cantos do mundo (sobre parte da Ásia, só nas últimas páginas) ou os usa como referência, e ignora o material bruto produzido na América Latina e África, por exemplo. Fora isso, é um puta livro.

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