O Último Minuto, de Marcelo Backes (Fim)

o-ultimo-minuto_marcelo-backesComo escrevi na primeira parte deste texto, a voz de Yannick Nasyniak ou João, O Vermelho, não é única no livro de Backes. Concordo, é ele quem fala por quase todo o romance através de um copioso discurso livre indireto, mas há importantes interrupções de parte do narrador-interlocutor. Ou seja, o livro não é um longo monólogo que se estende por 224 páginas, como li em algum lugar. Uma das qualidades do livro está no contraponto, no diálogo, no reflexo das palavras de João-Yannick sobre o seminarista. Como já escrevi, o livro chega a apresentar uma inversão de posições, dando espaço ao monólogo do seminarista! Outro fato que me causou contrariedade foi a redução feita por alguns jornais, como se o livro apenas argumentasse sobre o futebol como metáfora da vida. Ok, é uma das teses presentes no livro, mas é apenas uma delas. O Último Minuto é bem mais rico. Fiquei feliz ao ler meu amigo Carlos André Moreira na ZH de hoje. Ele caracterizou bem o livro de Backes, passando o centro do romance para a paternidade de Yannick.

De forma muito curiosa, o evento de hoje no StudioClio propõe o tema “A Voz da Prisão” em autores como Nabokov, Sabato, Dostoiévski e Graciliano. É uma boa ideia estabelecer diferenças entre estes ícones e o livro que estaremos comentando. Nestes livros e em O Último Minuto, a posição que cada narrador ocupa é diferente. É lamentável que eu tenha estudado tão pouco o assunto. Vamos, um tanto esquematicamente, ao que lembro destes livros narrados por prisioneiros.

Lolita, de Vladimir Nabokov, inicia com uma nota de quatro páginas escrita por um certo Dr. John Ray Jr, um doutor em filosofia de Massachusetts, o qual informa que o autor da narrativa, o hoje famoso Humbert Humbert, morreu na prisão logo após escrever o que se lerá e antes do início do seu julgamento, em 1952. Terminada a introdução do filósofo, cuja existência, certamente, apenas se dá na realidade ficcional, a palavra é passada para à primeira pessoa do singular de H.H.: Lolita, luz de minha vida, labareda em minha carne. Meu pecado, minha alma. Lo-li-ta: a ponta da língua faz uma viagem de três passos, a fim de bater de leve, no terceiro, de encontro ao dentes. Lo. Li. Ta. E toda a narrativa — esplêndida –, até sua ultima linha, é entregue à pedofilia do autor, a seu louco amor por aquele ser em crescimento que tinha 1,32 m quando ele a conheceu. Lo-li-ta. Ou seja, o romance é escrito na prisão e fala do passado. Esta voz é apaixonada, sinceramente apaixonada, loucamente apaixonada na forma mais literal da palavra.

Memórias do Cárcere é um livro de memórias absolutamente realista. O livro descreve  a ida de Graciliano Ramos para a prisão sem uma acusação formal. O narrador conta a relação de Graciliano com seus colegas de prisão, as torturas, a saída de Olga Benario para fazer uma visita definitiva à Gestapo, a imundície, o Estado Novo de Getúlio Vargas, tudo isso em discurso direto, lento e denso. Não há lugar para mimimi na voz de Graciliano, um comunista dos duros, grandíssimo escritor.

Já o pintor Juan Pablo Castel do existencialista O Túnel, de Ernesto Sabato, é outro narrador em primeira pessoa que escreve da prisão, logo após confessar seu crime em um primeiro capítulo de pouco mais de uma página de extensão. Castel é não nada controlado: “Minha cabeça era um pandemônio: um turbilhão de ideias, sentimentos de amor e de ódio, perguntas, ressentimentos e lembranças que apareciam e se misturavam sucessivamente”. Ele narra sua trajetória profundamente solitária de artista plástico que se oculta e se afasta da convivência humana, refugiado em seu próprio interior — o túnel.

Dos quatro, o livro que menos lembro é Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoiévski, mas conheço muito o autor. Lembro de um livro siberiano, congelado, cheio de baratas, de trabalhos forçados e da ânsia do autor por um pouco de privacidade. Não é um livro moderno como os de Sabato e Nabokov e nem posso dizer que gostei da narrativa. Dostoiévski esconde-se atrás de um tal de Alexandr Petrovitch Goriantchikov, um ex-nobre, dono de terras, condenado por haver assassinado a mulher. Na verdade, Dostô foi preso injustamente sob a alegação de realizar atividades políticas ilegais na Rússia czarista. Ele jamais tivera uma participação importante no movimento, mas foi denunciado. É um relato ponderado, minucioso, analítico, sem queixas e, nossa!, bem chatinho.

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