Ospa entre a alegria e o aperto

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Ospa: mais um belo concerto ontem à noite | Foto: Antonieta Pinheiro — Clique para ampliar

A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados aprovou ontem o projeto de decreto legislativo que trata da chamada “cura gay”. A proposta altera uma resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que proíbe psicólogos de atuarem na mudança da orientação sexual de pacientes. Desta forma, a homossexualidade volta a ser uma doença em nosso país e pode ser tratada. Mais uma vez, o Congresso debruça-se sobre uma besteira.

Coincidentemente, como frisou o Samir Rahde na saída do concerto, a Ospa dedicou a noite de ontem à música de um doente: Tchaikovsky. De um doente talvez em surto, pois sua 4ª Sinfonia foi escrita durante o tumultuado casamento com Antonina Ivanovna Miliukova, na verdade uma tentativa de cura gay feita pelo próprio compositor, uma autoajuda que não deu certo. O casamento, proposto à princípio pela moça e aceito com relutância, durou apenas seis semanas, não obtendo colocar Tchaikovsky entre os honrados chefes de família da sociedade czarista. A moça não queria só fachada. Tinha razão, claro. Por outro lado, não há notícia de que houvesse um Marco Felicianov na Rússia do século XIX. Só houve sofrimento, pois.

Minha relação com Tchalkovsky sempre foi igualmente tumultuada. Ele muitas vezes é brega, muitas vezes. Em outras é absolutamente sublime, como no Concerto para Violino e Orquestra. Mas, deixa eu contar uma historinha. Um de meus amores é Dmitri Shostakovich, o qual costumo chamar carinhosamente não de Mítia, mas de Shosta. Conheço suas sinfonias, concertos e música de câmara de trás para diante. Pois, um dia, paradoxalmente, baixei uma integral das sinfonias de Tchaikovsky. Quando fui ouvi-las, coisa que não fazia há anos, vi nelas algumas raízes de Shosta. Isto fica claro na 4ª Sinfonia, executada ontem pela Ospa no Theatro São Pedro (ou Eva Sopher). É claro que Shosta propõe estruturas muito mais complexas, mas o espírito está ali, a receita de drama, desespero, alegria e sarcasmo está ali. Mas falemos do concerto.

Não sei quem teve a ideia de fazer os músicos se acotovelarem no palquinho do São Pedro a fim de tocarem música efetivamente sinfônica, só sei que coisa estava engraçada. Pelo visto, a orquestra gostou do maestro coreano Shinik Hahm, pois estava motivada e bem humorada. Por exemplo, a cada sessão de pizzicatti no terceiro movimento da 4ª Sinfonia, o pessoal das cordas trocava olhares divertidos, como se estivessem brincando. Isto acontecia principalmente lá atrás, com todos tocando muito bem e Gabriela Vilanova sobressaindo sorridente. E era bom que fosse assim, pois seu colega estava sentado a poucos centímetros de distância, ao alcance de um cotovelaço. Já o tubista Wilthon Matos distribuía caretas. Afinal, além da tuba exigir pulmão, embocadura e força, ele tinha às suas costas o panzer germânico Guenther Andreas com os pratos de percussão. Imaginem, mais alguns centímetros e teríamos um corpo paraense estendido no chão. Era uma situação complicada: Wilthon fazia aquela cara de vou-encher-meu-pulmão e mandava ver em seu enorme instrumento (e como manda!), enquanto Andreas tentava infligir-lhe uma lesão auditiva. Uma beleza. Quando digo que todos esses caras são uns heróis, não exagero.

O programa iniciava com o curtíssimo Noturno para violoncelo e orquestra de Tchai, peça escrita originalmente para piano. Nada especial. Para meu ouvido leigo, o violoncelista  Fabio Presgrave errou bastante no igualmente curto Romance para violoncelo e orquestra de Richard Strauss. Pior, as duas obras — lentas e românticas — não tinham “sustância” melódica que as justificassem. Quando já reprimia um bocejo, Presgrave chamou ao palco o acordeonista Paulinho Cardoso a fim de eles interpretassem o tema Temprano, de Cardoso. A surpresa foi que não somente a obra era mais longa do que as duas peças iniciais como era ótima, tendo recuperado o violoncelista, que animou-se ao trocar o inverno russo pelas pradarias de nosso pago.

Já a interpretação da Ospa para Sinfonia nº 4 foi sensacional e mereceu cada aplauso do público. A orquestra esteve excelente, entusiasmada e respeitando as alterações de humor da obra. As passagens do dramalhão do primeiro movimento para o romantismo do segundo, do Scherzo do terceiro para o Scherzando do quarto, mostraram não somente uma orquestra em forma como a competência do maestro Shinik Hahm, o qual rege apenas com o braço direito. Vamos ver se no Réquiem de Verdi da próxima semana ele usa os dois! Estarei observando.

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Shinik Hahm: jeito de sacerdote, mão esquerda inútil e bons resultados | Foto: Antonieta Pinheiro

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