Ospa: belos retalhos do tecido metafísico

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Foto: Antonieta Pinheiro
Foto: Antonieta Pinheiro

Creio que todos se emocionaram na noite de ontem ouvindo grande música e levados a pensar na existência do ponto de vista metafísico. Se a metafísica busca alguma explicação sobre a essência dos seres e as razões de estarmos no mundo, também o faz o Réquiem de Verdi. Ontem, a Igreja da Ressurreição do Colégio Anchieta recebeu este Réquiem que sai de um quase nada, com violoncelos e cordas sussurrantes que se dirigem a um débil coro que pede descanso eterno, para logo depois tremer com a fúria do Dies Irae (Dia da Ira / aquele dia / em que os séculos se desfarão em cinzas, / … /  Quando o terror é futuro, / quando o Juiz vier, / para julgar a todos / A trompa esparge o poderoso som / pela região dos sepulcros, / convocando todos ante o Trono) e desmanchar-se com o Libera me final, o qual pede a Deus que tenha misericórdia.

Com o Réquiem, Verdi e a Ospa conseguiram transformar a igreja do Anchieta num verdadeiro local de devoção – musical ou religiosa. Durante aqueles noventa minutos, todos acreditaram em Deus, em Verdi ou em ambos. A demora para o surgimento dos aplausos finais foi o grande sinalizador do respeito a uma obra e a uma interpretação muito maiores que o habitual.

O Réquiem de Verdi teve história atribulada e muito humana. Quando Rossini morreu, em 1868, Verdi sugeriu que ele e outros compositores italianos escrevessem uma composição coletiva em homenagem ao mestre. Ora, quando se juntam muitos italianos, o que acontece? Uma festa, uma briga, certamente muita discussão, uma boa mesa, talvez trabalho. Ou tudo isso junto. Bem, Verdi escreveu sua parte — o Libera me — e outros doze compositores preencheram as lacunas daquilo que seria a Messa per Rossini. E a estreia da obra foi marcada para 13 de novembro de 1869, primeiro aniversário da morte do compositor. Só que não.

Nove dias antes da estreia, o comitê organizador abandonou o projeto. Verdi brigou com o maestro Angelo Mariani, acusando-o de falta de vontade de ver a obra ser apresentada, o que destruiu uma velha amizade. Imaginem que só em 1988 Helmuth Rilling regeu uma versão completa da Messa per Rossini original em Stuttgart. Mas voltemos a Verdi. Ele continuou a mexer em seu Libera me, mesmo frustrado com o projeto fracassado da Missa por Rossini.

Quatro anos depois, em 1873, o escritor Alessandro Manzoni, a quem Verdi admirava, faleceu. Então o compositor resolveu escrever um Réquiem apenas seu, sem os outros doze italianos. Partindo do Libera me escrito para Rossini, Verdi criou a mais bela  Catedral invisível, com 18 naves da mais perfeita ornamentação. O Réquiem de Verdi foi executado pela primeira vez no ano seguinte, na Igreja de São Marcos, em Milão, no primeiro aniversário da morte de Manzoni. Saiu Rossini, entrou Manzoni.

Desgarrando-se dos aspectos da criação, voltamos ao Réquiem. A música é assombrosa não apenas por falar na morte. É concentrada e vetusta como o de Brahms, contém lindas melodias simples como a Lacrimosa, momentos de tensão e dúvida como o Tuba mirum, Mors stupebit, de súplica como o Libera me e de terror metafísico como no Dies Irae. Como as sinfonias de Mahler, o Réquiem guarda todo um mundo e nos fala de temas universais e incontornáveis, como a morte, o amor e Deus.

A execução da Ospa foi miraculosa. A obra não é nada fácil, mas o maestro Shinik Hahm e a orquestra enfrentaram-na com brilhantismo. Os metais dentro e fora do palco estiveram adequadamente apocalípticos e minha única restrição vai para o trabalho do soprano Isabelle Sabrié, desafinada em algumas poucas passagens, e para a alegria da mezzo-soprano Mere Oliveira que, apesar de excelente, insistia em encarar o Juízo Final com alegria e notável certeza de sua absolvição. Faço esta crítica com certo cuidado, pois já pensei em comprar uma camiseta com os dizeres Sad songs make me happy porque é o que me acontece… Já o tenor Paulo Mandarino esteve muito bem, apesar de ter uma voz não tão potente, e o baixo Daniel Germano esteve absolutamente perfeito, em minha opinião. Aliás, já desisti de procurar defeitos nele.

O Coro Sinfônico da Ospa também esteve em noite gloriosa e merece todos os elogios. Ao grupo todo e ao maestro Manfredo Schmiedt. O coro foi sutil e potente, sublime e assustador como a música exige. Para finalizar, uma grande reverência ao regente coreano Shinik Hahm que esteve duas semanas entre nós, conduzindo a Ospa a jogar duas partidas de futebol e a dois concertos fora do comum.

Foto: Antonieta Pinheiro
Foto: Antonieta Pinheiro

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