Publicado em 19 de maio de 2013 no Sul21
Uma mente madura deve ser capaz de admitir a coexistência de dois fatos contraditórios: que Wagner foi um grande artista e, segundo, que Wagner foi um ser humano abominável.
Edward Said, em Paralelos e Paradoxos (obra escrita em parceria com Daniel Barenboim)
Cinquenta anos após a morte, a biografia de qualquer autor costuma recuar em favor de sua obra. Isso se ele for se bom nível; se não for, ambos desaparecerão. Porém, nos anos 30 do século passado, a biografia e as opiniões pessoais do compositor Richard Wagner reapareceram em função de um grande fã que divulgava sua obra onde ia e sempre que podia: Adolf Hitler. O ditador não apenas amava Wagner como tinha sempre à mão um toca-discos com uma versão de Parsifal. O aparelho servia para que Hitler demonstrasse a seus assessores o verdadeiro espírito alemão. Tudo isto está muito bem documentado; então, desde a época da ascensão do nacional-socialismo, Wagner deixou de ser um fenômeno apenas musical para tornar-se também geopolítico.
Para nós já é possível eliminar as conexões de Wagner e enterrar de vez os cadáveres? Será que já podemos esquecer seu antissemitismo a fim de deixar a música falar por ele? Talvez não. Há dez dias, uma ópera de Wagner — Tannhäuser — transposta para a época do nazismo foi retirada de cartaz na Alemanha. Muitos protestaram violentamente, outros sentiram-se mal. Antissemita, misógino, defensor da pureza racial reivindicada pelo nazismo, Wagner ainda tem sua herança política, social e musical em debate.
Nascido em Leipzig no dia 22 de maio de 1813, Wagner faleceu em Veneza em 13 de fevereiro de 1883. Seu empenho era no sentido de renovar a ópera tradicional pela introdução da chamada “melodia contínua” e do leitmotiv (motivo condutor). O projeto foi acompanhado pelas concepções filosóficas do autor, fundadas na admiração pelo mitos do drama grego e na força irracional da música, que haveriam de resultar em uma nova arte alemã. O aspecto nacionalista deste projeto prestou-se a uma utilização ideológica e deturpada por ocasião do Terceiro Reich, a Alemanha de Hitler. Se Wagner já estava morto há cinquenta anos quando Hitler subiu ao poder, é certamente um equívoco considerá-lo um precursor do nazismo. Quando o grande maestro judeu Daniel Barenboim finalmente regeu a abertura de Tristão e Isolda em Israel, no dia 7 de julho de 2001, houve protestos, porém não gostar de Wagner por motivos políticos não é uma exclusividade israelense ou judaica.
E Wagner não pode ser simplesmente ignorado, tendo seu nome riscado da história da música. Ele é efetivamente incontornável por ser um elo na evolução musical que desaguou na revolução do início do século XX. Com Richard Wagner, a linguagem musical e a própria concepção da música, sua função e o papel do compositor, passaram por uma transformação tão grande que demarcam toda a música ocidental posterior. Pode-se dizer que muitos compositores do século XX partiram dos procedimentos e da estética de Wagner mais do que da herança clássica.
Ao radicalizar, por meio da infiltração do cromatismo, as tentativas já esboçadas no século XIX de abalar os alicerces da todo-poderosa música tonal, Wagner preparou a transgressão. A dissolução da tonalidade pelo cromatismo em Tristão e Isolda foi um acontecimento histórico que deu impulso às pesquisas dos compositores da Escola de Viena (Schoenberg, Berg e Webern) e de outros no século XX.
Embora sua produção inclua lieder (canções), sonatas para piano, sinfonias, um poema sinfônico, marchas, etc., foi na ópera que Wagner manifestou mais intensamente sua capacidade de inovação. Wagner queria buscava a “obra de arte total” e esta iria na contramão dos limites impostos pela Arte até o século XIX, que considerava apenas as linguagens artísticas de forma separada. Wagner acreditava que a pintura, a música e a poesia já haviam alcançado o fim de suas evoluções e que, para inovar, seria necessário combinar as linguagens em uma Gesamtkunstwerk. Elaborou então um projeto pioneiro: construiu um edifício projetado especificamente para suas óperas, criando uma entidade unificada entre a orquestra e o palco. A “obra de arte total” necessitaria também a formação de um novo ouvinte, bem mais atento que costumavam ser seus contemporâneos.
Como Wagner “tornou-se nazista”
Mesmo no terreno da ópera, com a necessidade de se contar uma história, fazer “poesia”, ser teatro e música ao mesmo tempo, é complicado fazer teses. Mas é bom lembrar que Shostakovich, durante o stalinismo, provocava estranhamentos, comunicava intenções e protestava com música instrumental, sem palavras, conseguindo muitas vezes ser censurado. No caso de Wagner, há Wagner e Wagner, o autor e o homem. Inteligentemente, ele deixou quaisquer referências diretas aos judeus fora de sua música. É curioso o mecanismo de ocultamento que faz alguns autores escreverem pequenos ensaios como Das Judenthum in der Musik (O Judaísmo na Música, de 1850) – caso de Wagner – mas deixarem suas obras maiores livres de referências seculares. Também Céline, Hamsun e Pound – todos simpáticos ou apoiadores do nazismo – não entremearam sua obra com referências antissemitas ou nazistas, deixando essas coisas para os panfletos e jornais.
Foi Hitler quem trouxe Wagner ao centro da discussão, tornando-o o maior dos antissemitas, mas é indiscutível que, em Das Judenthum in der Musik, o compositor vai longe. Primeiro, ataca a influência dos judeus na música e cultura alemãs, descreve os judeus como ex-canibais de fato e agora canibais das finanças. Afirma também que são de natureza muito pouco profunda, acusa-os de corruptores da língua alemã e ataca Meyerbeer e Mendelssohn, compositores judeus que considerava inimigos. Em uma carta para Lizst, Wagner confessa: “Sinto um ódio, por muito tempo reprimido, contra os judeus e esta luta é tão necessária a minha natureza como meu sangue… Quero que deixem de ser nossos amos. Afinal, não são nossos príncipes, mas nossos banqueiros e filisteus”.
Embora não haja referências antissemitas em suas óperas, é bastante claro o significado da existência de Beckmesser em Os Mestres Cantores de Nurenberg e de Mime no Anel. São associações muito claras e ao final ambos são derrotados. No palco, uma mesma canção interpretada por Beckmesser nos Mestres Cantores causa riso e rejeição, enquanto que a interpretação de Stolzing dá vida à música. E o discurso de Hans Sachs ao final da mesma ópera traz uma apologia da santa arte alemã, alertando para os perigos que vêm de fora. Estranhamente, Mime autodeclara-se hipócrita, pois esconde “pensamentos íntimos”. Mas o pior é a semelhança de sua conduta — Mime, mímesis, em grego, significa imitação — com a descrição dos judeus de O Judaísmo na Música, acrescida pelo fato de Wagner obrigar o personagem a registros altíssimos e a cantar em intervalos semelhantes aos de um pássaro – um corvo, uma gralha –, reservando-lhe ao final uma morte brutal sob a espada de Siegfried.
Grande admirador de Wagner, o judeu Gustav Mahler escreveu:
Sem dúvida que, com Mime, Wagner pretendia ridicularizar os judeus com todos os seus traços característicos — inteligência mesquinha e ganância. (…) Eu sei de apenas um Mime, e este é eu mesmo…
Ora, tais trechos, quando em contato com quem necessita de justificativas para seus ódios… só pode criar uma idolatria. Hitler o idolatrava. Ia com frequência assistir às óperas de Wagner e orgulhava-se de ter lido tudo o que dele havia. Era amigo dos netos do compositor — fez-se fotografar inúmeras vezes com eles — e visitava Bayreuth mesmo durante os anos de guerra. Em 1923, foi conhecer a viúva de Wagner, Cosima. Ou seja, fazia absoluta questão de ligar-se ao compositor. Claro que o nazismo não é uma consequência direta disto, mas é indiscutível que Wagner influenciou a sociedade alemã com suas sagas nórdicas — tão ao gosto daquela sociedade –, sua pompa e, claro, antissemitismo. Imaginem que Hitler era tão influenciado que tornou-se vegetariano por causa e tal como o compositor.
O mérito
Agora, há grandes méritos em Wagner. Foi compositor, regente, libretista, ensaísta, político (principalmente no sentido de que era suscetível a alterar suas posições de forma casuísta), polemista, amigo e referência de toda a intelectualidade alemã da época, entendido em acústica, publicitário dos bons, e era quase tudo o que possamos. Sem dúvida, era um gênio muito especial e influente.
Construiu em Bayreuth um teatro revolucionário que até hoje é o melhor local para suas óperas serem apresentadas, devido ao grande palco e ao fato da orquestra ficar sob o mesmo, no quentíssimo Abismo Místico (mystischer Abgrund), o qual produz um som absolutamente espetacular ao mesmo tempo que esconde inteiramente os músicos dos espectadores — pois Wagner queria atenção absoluta aos cantores no palco — , permitindo que a orquestra abuse dos fortissimi por quê, por misteriosa ciência acústica, sua posição garante que tudo será ouvido clara e perfeitamente pelos espectadores da ópera. Ali, os fortissimi são suportáveis e não impedem que se ouça ao mesmo tempo os instrumentos mais delicados. A acústica do teatro de Wagner está mais para o milagre do que para qualquer outra coisa.
Sua imaginação melódica e suas texturas harmônicas são de um refinamento ao qual é impossível associar imagens como, por exemplo, as dos assassinatos em massa. Parece haver um enorme descompasso quando Goebbels utilizava suas obras na propaganda nazista. Na verdade, é uma música notavelmente sofisticada e apenas algumas aberturas e a Cavalgada das Valquíriasserviam aos propósitos propagandistas do regime e não suas vastas e complexas óperas que, em seu contexto, fizeram a efetiva ligação entre a música do século XIX e a moderna. Sua música sempre aparece descontextualizada sob o nazismo e os subordinados de Hitler — ele sistematicamente obrigava-os a assistir suas óperas – sofriam e dormiam em Bayreuth durante as apresentações. Afinal, suas óperas são sempre muito longas e destinadas a interessados. Quando os via cochilarem, Hitler os acordava pessoalmente aos safanões — não há exagero na expressão. Afinal, eles tinham que apreciar a expressão artística da superioridade alemã.
Mas tudo isso não deveria ser história, não deveria ser passado? Por que ainda hoje há tanta resistência a Wagner se outros artistas identificados com o nazismo são perdoados? Talvez seja o somatório: a expressão de opiniões inaceitáveis, a obra de arte total, a criação de uma nova música, o teatro ideal para ela, os anos 30 e 40, as câmaras de gás, os panfletos, a autoconfiança, algum oportunismo. E a lembrança de Hitler, claro, que torna complicado ter uma mente madura, como sugere o grande palestino Edward Said.
FASCINAÇÃO
by Ramiro Conceição
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Este post é complexo, pois trata da velha, mas ainda contemporânea contradição: o artista e sua obra. Ou, por exemplo, o cientista e sua ciência.
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Há alguns meses, no blog do Charlles Campos, entrei numa polêmica sobre Mishima: creio que seja do conhecimento dos leitores, que o ilustre artista japonês, em 1970, suicidou-se de forma teatral ao mundo, tendo como substrato, a justificar seu ato, uma secular tradição que, em seu útero, gerou uma ideologia que defendia seu direito à liderança do mundo sob a infinita bondade e sapiência do Imperador… Na realidade tal ideologia representou e, efetivamente, gerou uma elite opressora e hegemônica que, por séculos, escravizou culturalmente o povo japonês). Deu no que deu: os dois dantescos cogumelos que foram gerados pelo hipócrita e assassino mundo cristão (não aquele profetizado por Jesus, mas isso não importa aqui…).
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Pois bem… Mishima – na década de 60, durante o que representou o aparecimento dos Beatles, durante toda a parafernália cultural do movimento estudantil de 68 e após ter livre acesso ao mundo ocidental (inclusive, conheceu o Brasil…) – , criou um grupo paramilitar de extrema direita (maiores detalhes, por favor, pesquisar no Google).
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Voltando ao blog do Charlles. Não li especificamente nenhuma obra de Mishima, mas li uma obra DETALHADA sobre a sua trajetória cultural (neste instante, não me recordo o título, mas é em português e, facilmente, encontrável no Google). Com isso, fiz uma crítica mordaz ao artista japonês. O Luis, um ilustre comentarista do referido blog, erudito em Mishima, desceu o cacete em mim. Sua argumentação era consistente: como era possível alguém que não leu Mishima criticá-lo? Argumento poderoso…
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Aqui volto ao tema desse blog, isto é: o Luis, por ser um admirador da obra de Mishima, tinha razão, pois, de fato, o referido japonês foi um criador; por outro lado, eu, por ser um crítico ao ser-humano-Mishima, também tinha razão. Então como resolver tal contradição?
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Só há um complexo caminho – pela educação! Ou seja, as futuras gerações têm o direito de concomitantemente conhecer a obra do artista-Mishima, bem como a trajetória do homem-Mishima. Só assim, a meu ver, será preservada a invenção de Mishima na arte e, ao mesmo tempo, abominada sua ideologia. Tal processo de educação é contraditório! Mas tem de ser assim, pois depois de Hegel e Marx, até o momento, não há outra forma de pensar e sentir (ou como gosto poetar: PENSAR-SENTIR!).
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Especificamente sobre Wagner, o conheci de maneira indireta, no silêncio: foi através do bigodudo, filósofo e poeta alemão… Que ficou doido, na punheta, por não ter comido a mulher do músico e, aliás, por não ter comido também a mulher de Rilke, que chegou a ser discípula de Freud. É, Ecce Homo…(as tristes palavras de Pôncio Pilatos ditas certa vez…).
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No vento colossal da música, conheci Wagner via Lohengrin: fiquei fascinado durante meses seguidos… Soube, mais tarde, que um certo cabo do exército alemão, durante a primeira Grande Guerra, também teve a mesma fascinação…
errata: é óbvio que é: “gosto de…”.
Este post é deslocado. Hoje é o dia em que Idelber Avelar e cia vão dizer que Reginaldo Rossi era um gênio.
Ramiro, me passa o número da sua conta por e-mail para eu depositar os 50 reais da nossa combina.
Deixo por 10, Charlles, afinal,
em 2014 é Dilma na cabeça!
Einstein também era um gênio e um filadaputa como ser humano.
Walner Silvestre,
antes de sair por aí a escrever disparates, eu o aconselharia a refletir um pouquinho sobre a História… Dê uma olhadela nisso aqui:
http://connepi2009.ifpa.edu.br/connepi-anais/artigos/224_442_1863.pdf
Não entendi o porquê de vc ter me mandado isso. Não escrevi nada sobre projeto Manhattan. Sua vida pessoal era conturbada, e ele não se revelou um cara bacana. Leia a bio escrita por Walter Isaacson.
Walner,
se o seu comentário foi restrito à vida pessoal de Einstein e, qual você afirmou, ela foi conturbada e dai, portanto, ser possível escrever que o descabelado foi um filha da puta. Então sou levado a crer que todos nós – sem exceção – temos a mesma mãe!
Walner,
o título do meu comentário anterior poderia ser:
“NÓS NÃO SOMOS BACANAS”
gostaria de saber o significado da expressão ” filadaputa”.