O caso Woody Allen: abuso não se relativiza, mas há que provar

Provavelmente, as acusações de abuso que feitas a Woody Allen sejam mesmo verdadeiras, que o diga seu casamento. Abuso é uma coisa que não pode ser relativizada — é uma violência inaudita, é crime e ponto. Não me venham com papos de que o(a) menor estava pedindo e outras explicações, etc. A responsabilidade é sempre do adulto. Não posso afirmar com certeza, é claro, mas apostaria que Allen é um escroto do gênero abusador.

Estas questões são muito complicadas. Aqui e ali, ouço relatos do gênero “fui abusada(o)” desde que me conheço por gente. Todos feitos por adultos. Sabe-se que a criança abusada raramente acusa. A maioria sente-se impotente para fazê-lo, até porque muitas vezes trata-se de alguém conhecido ou muito próximo. Na maioria das vezes, o abusador é uma pessoa normal, até mesmo querida pelas crianças e pelos adolescentes. A vítima tem a impressão de estar errada, de ser ela o problema e poucos casos são denunciados no momento em que ocorrem. Parece algo auto-imune.

Hoje, Allen tem 78 e Dylan 28.
Hoje, Allen tem 78 e Dylan 28.

Tive a sorte de ter passado longe de tudo isso, mas, como dizia, ouvi relatos dolorosos e verdadeiríssimos e outros que são realmente difíceis de acreditar. Na verdade, não acredito em apenas um. A pessoa tinha o vício de ser vítima em todas as situações e só anos depois dei-me conta de que as circunstâncias narradas eram absolutamente impossíveis, dado o ano a que “o conto” remetia. (Havia uma situação-chave cujo contexto simplesmente não existia no final da década de 70, início dos 80…). Mas a narradora parecia acreditar inteiramente no que dizia e chorava enquanto falava. O filme A Caça mostra que a questão do abuso tem de ser comprovada, que não basta apenas a acusação.

Tais complicações também existem na família Allen-Farrow: a loucura não está ausente nela. Acho que Mia Farrow não cabe em nenhum modelo de normalidade e guarda enorme ódio a Allen. Mas é mãe da vítima, que fora adotada pelo casal. Também acho que Allen não cabe no citado modelo, mas nunca foi a um tribunal se explicar, né? Ele apenas nega o fato como “falso e vergonhoso”. Apesar do que suponho, nada do que dizem dele foi provado. O que se sabe é que Dylan diz que houve um episódio horrível e nós sabemos que era uma casa de malucos. Então, o linchamento de seu nome é meio irresponsável, não?

Depois, quando eu digo que o mundo é complexo…

Tenho a cabeça aberta sobre sexo. Eu não estou acima de qualquer suspeita, quando muito, estou abaixo delas. Digo, se eu fosse pego num ninho de amor com 15 garotas de 12 anos de idade amanhã, as pessoas iam pensar: é, eu sempre soube disso a respeito dele.

Woody Allen, na revista People em 1976.

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Saiu agora no Uol (05/02/2014, 15h30) o que reproduzo abaixo:

Filho de Allen e Farrow defende o pai e diz que mãe o fez odiá-lo por anos

Moses Farrow, filho adotivo de Woody Allen e Mia Farrow, se pronunciou a respeito das declarações de sua irmã Dylan, que, em carta aberta ao “New York Times”, acusou o pai de ter abusado sexualmente dela quando ela tinha sete anos de idade. Em entrevista à revista “People”, Moses defendeu Allen e culpou a mãe por toda a situação.

“Minha mãe martelou em mim que eu deveria odiar meu pai por separar a família e abusar sexualmente da minha irmã. E eu o odiei por anos. Vejo agora que isso foi uma forma vingativa de fazê-lo pagar por ter se apaixonado por Soon-Yi”, afirmou Moses.

O rapaz, que hoje trabalha como terapeuta, ainda disse que a irmã precisa sair da influência da mãe para não viver com a “falsa impressão” de que sofreu um abuso: “Acho que a minha irmã está perdendo muito por não se reconectar com o pai, que sempre a adorou. É importante que ela assegure sua independência de nossa mãe e não passe a vida com a falsa impressão de que foi abusada pelo meu pai. Estou muito feliz por ter tomado conhecimento do meu poder e me separado da minha mãe, o que levou a um reencontro positivo com meu pai”.

Além de ter incentivado o ódio a Allen, Farrow também agredia os filhos, acusou Moses. “Nossa mãe fez o público acreditar erroneamente que vivíamos em um casa feliz, cheia de filhos biológicos e adotados. Desde cedo, minha mãe exigia obediência e eu apanhava frequentemente quando criança. Ela tinha surtos desenfreados se nós a irritávamos, o que era intimidativo e terrível, nos deixando sem saber como agir”, declarou.

Dylan responde

Contatada pela “People”, Dylan classificou as declarações do irmão como uma “traição”. “Isso é uma enorme traição a mim e a toda minha família. Minhas lembranças são verdadeiras, são minhas, e eu viverei com elas pelo resto de minha vida”, afirmou.

A jovem insistiu que nunca foi treinada pela mãe para relatar o abuso. “Minha mãe nunca me treinou. Ela nunca plantou falsas memórias na minha cabeça. As minhas memórias são minhas. Eu me lembro delas. Ela ficou arrasada quando eu contei tudo. Quando contei a minha história, ela estava torcendo, contra tudo, para que eu tivesse inventado. Em um das conversas mais devastadoras que tive, ela sentou comigo e me perguntou se eu estava contando a verdade. Ela falou que o papai disse não ter feito nada. Eu disse ‘ele está mentindo'”.

Dylan também negou que ela e os irmãos apanhassem quando crianças. “Não sei de onde ele tirou isso sobre apanharmos. Nós íamos para o quarto às vezes [como castigo]”, contou.

Para ela, o irmão está “morto”. “Não vou ver a minha família ser arrastada dessa forma. Não posso ficar quieta quando minha família precisa de mim e não vou abandoná-los como Soon-Yi e Moses. Meu irmão está morto para mim. Minha mãe é valente e corajosa e me ensinou o que significa ser forte e contar a verdade em frente a essas mentiras monstruosas”.

Mia Farrow falou sobre o caso em seu Twitter na última terça-feira. “Eu amo minha filha. Eu sempre irei protegê-la. Muitas coisas ruins serão direcionadas a mim. Mas isso não é sobre mim, é sobre a verdade dela”.

23 comments / Add your comment below

  1. Eu abomino o crime de estupro, e abomino o estuprador. É uma crueldade tão extrema que aceita mesmo um tipo de violência ainda mais agravante: o estupro de crianças. Não saberia expressar o quanto esse assunto me repudia. Um assunto de tanta delicadeza, que exige um posicionamento determinado e sem relativizações. Descarto por inteiro qualquer pessoa que conheça, ou que algum dia eu tenha minimamente admirado, se tal pessoa é descoberta como promotora desse crime. Não abro concessões, mesmo porque há um lado humano inescapável por detrás dos artistas, por mais que haja artistas e intelectuais que se revelam homens deturpados. Não deixo de gostar um pouco sequer de Céline pelo que o homem Céline foi, por mais que eu perceba minha sinceridade em repudiar sua face anti-semita. Mas o estuprador, quando artista, pelo que eu vejo nesses meus 40 anos de contato com a leitura e com o conhecimento sobre os homens criadores, não dão bons escritores, ou cineastas, ou pintores ou o que quer que seja. É simplório dizer isso, mas não menos verdadeiro: não há coração terno em alguém que moleste crianças que o faça se redimir na grandeza da arte. Acredito que Woody Allen seja culpado pelas acusações que sua filha adotiva faz contra ele, acusações que revelam o quanto a sociedade é hipócrita e conivente quando se trata de um cineasta famoso como Allen, pois tais acusações foram feitas, são feitas não de hoje, mas de décadas, ora e outra voltando às manchetes dos jornais, e nada, absolutamente nada se faz em relação a elas. Para mim é fácil desprezar o Allen artista, pois nunca o aceitei mais do que aceito os filmes da primeira fase do Renato Aragão: divertidos, às vezes catárticos (como nos sketches de Os trapalhões, vistos hoje pelo youtube, com delicioso humor politicamente incorreto), mas fracos como cinema relevante, e que se perdem de vez nos tantos cacoetes vazios e chatos que tanto Allen quanto Dido Mocó vem fazendo nas suas últimas duas décadas de produção. Provavelmente assisti a todos os filmes de Allen para saber o que eu digo: ele é um cineasta mediano, mas cuja medianidade pode ser vista melhor pelo seu público nos EUA, já que o mercado cultural daquele país, de tão variado e extenso, dá a figuras medianas como Allen um respeito que aqui parece só ser atribuído aos grandes artistas. Mas, no mais das vezes, minha atitude para com Allen tem sido a mesma de Philip Roth, que em uma entrevista famosa, quando comparado pelo entrevistador ao cineasta, simplesmente encerrou o assunto dizendo que Woody Allen era um idiota. Woody Allen é um idiota e, muito provavelmente, um estuprador pedófilo. Seus filmes há anos nada mais são que comerciais rasos vendidos como produto superior devido ao poder de grife de seu nome e ao artifício de ter atrizes e astros famosos de Hollywood. Creio que um dos filmes mais tolos e chatos que já vi foi aquele que trata de Paris e seus escritores, em que aparecem Hemingway e Fitzgerald e uma turba de gente pintada com uma deplorável e estúpida palheta mergulhada em clichês. O último filme com certo escopo que vi de Allen foi Annie Hall (mas que me é tão irrelevante que precisei consultar no Google, pois ia escrevendo Fanny Hall). Cinema comercial escrito por um comediante talentoso, mas só.

    Boom boom, bang bang, lie down you’re dead.

    1. Você pede para que se abra uma discussão séria sobre o Woody Allen para logo em seguida compará-lo ao Renato Aragão?? Pera aí. Fiquei confuso.
      Eu concordo que esse assunto não deveria passar pelos tantos exemplos de grandes escritores e filósofos do século XX que tiveram a sua vida pessoal talhada por falhas de caráter (Céline, Heidegger, etc). Evidentemente Allen não é Céline, quiçá Heidegger.
      O que eu penso é que talvez, nesse caso – e infelizmente não há como se levantar provas incontestes como quer o Milton, dado o tempo que se passou – a obra do Allen (que é muito boa!) devesse ceder diante de um crime tão abismal.

      1. Renato Aragão nos anos 70 era ótimo, então não vejo como demérito a comparação. Lembro que quando eu tinha meus 12, 13 anos era muito interessado nos filmes de Allen. No colégio os assuntos na manhã que se seguia ao filme da madrugada dele (que exigia esforço ficar acordado tão tarde para assistir) eram efervescidos, e recordo que para nós, que não entendíamos a língua inglesa, era mais vantajoso assisti-lo dublado e não legendado, pois a procissão de insights espirituosos e frases impagáveis na metralhadora giratória das falas dele se perdia nas legendas. E muita coisa era ainda mais cool e intocável porque para nós soava “sacana”, requintadamente adulto. Isso foi em meus 13 anos. É fácil enganar um menino de 13 anos, quiçá uma menina de 7, como alegam ter sido o caso de Allen. Depois vieram os livros, o amadurecimento nas artimanhas do que há por detrás dos impactos forjados nos filmes, etc. Philip Roth está certo, e é estúpido quem compara um livro de humor corrosivo e devastador como Complexo de Portnoy com qualquer coisa que Allen tenha feito. A melhor cena de sua filmografia é a que um Bellow muito gentil por se associar com um mestre do show business aparece em Zelig_aquela tentativa meio borgeana de fazer graça sofisticada, que talvez seja o ponto mais alto de sua produção. Em Roth nós temos o humor anárquico do menino judeu reprimido ao máximo que, em sua carta de suicídio, escreve para a mãe que a senhora tal telefonou e que o bolo de carne está na geladeira. É impossível esquecer isso, e há um mundo de prismas eloquentes subjazidos no riso; agora de Allen, esse ser bestializado, hipócrita e doentiamente vaidoso que sempre acusaram de estuprador de crianças, por mais que eu puxe da memória só consigo me lembrar do temor em Annie Hall do menino diante a expansão do universo, e sua mãe lhe puxando a orelha e perguntando: “O que você tem a ver com o fim do universo?”. Caráter.

        1. Faz sentido…
          De um lado um homorista de referências limitadas, um homem que pouco leu e que sorvia as marcas da cultura de exportação americana e tentava um desastrado pastiche, uma paródia (que me cheira as paródias do faroeste spaghetti, mas com sotaque lampeânico) e que fingia antropofagia cultural sem redenção. Mágico de Oz, aquele seriado de polícia americano dos setenta Swat, etc.
          Do outro, um homorista que sorvia da rica cultura do Judaísmo Ashkenazi; de Scholem Alechem e tantos outros; um judeu nova-iorquino embalado pela música dos irmãos Gershwin, Cole Porter, R. Rodgers e L. Hart e que conseguiu traduzir essa musicalidade e cinemascopear “Autumn in New York;” Um jew-greek na melhor acepção da palavra (daquele motto Joyceano); que colocava o humor Judeu que ri da própria desgraça junto ao oráculo de Delfi e que faz Fiddler on the Roof tocar com o Chorus de Sófocles ou Eurípedes no fundo. Um judeu nova-iorquino que fez humor retornando a Aristófanes (com claras referências a Aristófanes), porém sempre atormentado por outro judeu, aquele de Moisés e Monoteísmo, Freud.
          Realmente… essa comparação faz todo sentido.

          1. Sarcasmo é uma merda…

            Vou chamar a turma da Lola para que você me responda por que o universo nordestino é menos rico em idiossincrasias que o judaico. (Eu tenho a minha resposta: porque não conseguimos fomentar a proteína necessária para que se criasse outra vez o milagre de um Guimarães Rosa; enquanto os judeus tem um sem número de grandes divulgadores de seus lamentos étnicos). Mas não foi isso que eu disse acima: Allen e Mocó me proporcionaram o mesmo tipo de humor anárquico, efêmero, esquecível, simpático. Não nego que certos lances de memória fugaz de Allen não me emocionem, mas isso não é nada frente a nostalgia que me dá (e o prazer) ao assistir cenas dos Trapalhões.

            Se Allen não tivesse tido a sorte de nascer um misto milionário de clichês auto-desmoralizantes, não sei se estaríamos falando dele agora. Ele tem bem menos talento que Buster Keaton, p. ex. Na verdade o Allen tem melhor simetria com o Cacareco: ambos foram feitos por seus fenótipos, somente isso.

          2. Eu entendi bem o seu sarcasmo, Charlles. Só achei ele um tanto pobrinho.
            Minha réplica veio mais para lembrar você de onde o Allen vem e em que universo de referências ele habita.
            Mais, que ele cinematografou uma nova-iorque canonizada até então apenas no jazz e Gershwin.

  2. Eu não fui sarcástico, Luiz. Acho o Allen inserido nesse mobiliário sofisticado todo que você diz, com tantas e tantas referências literárias, o acho cool e erudito, mas isso, para mim, não é o determinante para a relevância de um artista. Tá bom, sei que estamos aqui_ ou eu estou_ medindo o valor de um obra antes vista por mim como prazerosa, pela régua moral de um crime. E o que estou dizendo é que, o Allen estuprador revela a medianidade incontornável do Allen cineasta. Ele é bem menor que outros show-man, como Spielberg (que é desprezado ou visto em desconfiança pelo mesmo fiel depositário de gosto que faz do Allen “literário” querido, mas que no resultado das somas são ambos iguais no produto e fetiche que vendem), ou Tarantino, ou sei lá. Ver Allen como intelectual é um equívoco. Li dele uns dois livros, e o cara é bem passável como escritor (recordo de um conto em que um ateu se converte e, para dar provas de deus para si, passa a ser um glutão: quanto mais come, mais “deus” está colocando dentro de si; e por aí vai). Talvez porque eu tenha uma visão muito pessoal de cinema: cinema como arte, equivalente à melhor literatura, se encontra em expoência máxima em Tarkóvski, e depois em Kubrick, Fellini, Bergman. Mas eu consumo bem mais o cinema entretenimento de Hollywood, por mais que ele seja bobo. E Allen é cinema bobo, só que feito para elites intelectuais. Ler um pouquinho além disso, já desmascara Allen (e não estou sendo, em absoluto, sarcástico: sei do grande leitor que você é). Eu nunca assisti Allen para ver essas referências com a filosofia platônica ou com os mitos psicológicos tais que você falou. Allen antecipou o era Google em seus filmes. Foi um cineasta de referências catadas na margem dos veículos de informação, e soube trabalhar com esse material para se fazer de autêntico.

    1. Acho que você se equivoca ao entender as referências da tragédia Grega que eu listei como mero exercício exibicionista. Não se trata em absoluto de pertencer a um clubinho exclusivo que reconhece um diálogo fictício entre Aristófanes e Sófocles em Melinda & Melinda ou de notar como Oedipus Rex informa toda a trama de Mighty Aphrodite – o menino que traz inadvertidamente a miséria ao casal, as advertências do cego Tirésias para a tragédia que advém, e até a intromissão de outra visionária do universo do teatro Grego, Cassandra.
      Você pode não gostar dos clássicos, Charlles. Ou de tragédia Grega. Mas existe um motivo muito simples de Antígona, Oedipus Rex e Nuvens (por exemplo) ainda serem lidos. Essas são narrativas fundantes da nossa forma de conceber o humano, o desumano, o risível. Se eu fosse inclusive mais dramático, poderia adicionar uma pitada de Harold Bloom e cravar que essas narrativas inventaram o humano.
      Pois bem, Woody Allen não só entende essa linguagem da tragédia Grega como contemporiza elas. Ele brinca também com as bordas que separam a comédia da tragédia Grega e deixa a última se contaminar pelo ridículo da comédia (assim como Aristófanes contaminava temas sérios de Eurípedes e Sófocles com o cômico).
      E olha que os termos em que essa conversa nossa vai sendo levada são ainda alheios a uma discussão de cinema. Uma discussão tipicamente livresca de gente que não entende na realidade de cinema (falo pelo menos por mim). Filme é, mais que narrativa, imagem, certo?
      Woody Allen deu uma baita contribuição à cinematografia norte-americana – querendo a sua raiva justiceira fazer essa concessão ou não. Filmes dele mais antigos como A Rosa Púrpura do Cairo e Annie Hall, só para ficar em dois exemplos, são belíssimos arquivos de imagens, de paletas, de tonalidades, etc.
      Acho que essa discussão, essa relativização, dos filmes do Woody Allen, nem estaria acontecendo se não fosse o infeliz fato dessas denúncias terem vindo à tona. A sua fala não me parece um rebuke justo do que Allen fez. Isso é um auto-da-fé.
      E em se tratando de um auto-da-fé, que se incendeie o homem, que se faça o assassinato de seu caráter, ou de qualquer sombra que ainda resta de sua reputação como pai. Mas, por favor, deixe os bons filmes dele de fora disso.

      1. Não entendo nada de tragédia grega e é um ramo da literatura pelo qual não sinto o mínimo pendor. E não vou duvidar de vc, e nem da excelência de suas palavras aí em cima. O que posso analisar é o que o Allen fez em um campo que eu conheço bem: a releitura da obra de Dostoiévski. Em Match Point, que é um filme bom mas fundamentalmente equivocado em sua pretensão de re-ler Crime e Castigo, Allen interpreta o drama do assassino Raskolnikov de uma maneira que descarta todos os pontos principais da análise humana dostoiévski, como a gratuidade do crime em nome da vaidade filosófica pessoal (o assassino de Allen é um mero burguês insatisfeito e rancoroso), a redenção através da expiação (em M. Point o filme se encerra no assassinato, de forma que faz vênia a Hollywood apenas), além do recurso bonitinho mas pueril de centrar o que no russo era a miséria e a condição de desalento histórico carregado dos anúncios intuitivos do que viria de terrível no século XX, na metáfora sem sentido do… jogo de tênis (aqui mais uma vez o burguês Allen falando de seus gostos pessoais de forma vazia, como em seu filme sobre jazz).

        Cinema para mim tem que ser mais que isso.

        1. A discussão segue sendo meramente livresca. Vê-se os filmes como são lidos os livros. E nisso não há um pingo de recriminação da minha parte, visto que me é também natural “ler” os filmes como livros.

          1. Luiz, tu que gosta e entende dos gregos (e vive no Canadá, não?), conhece essa música do Arcade Fire?
            “Awful sound (Oh Eurydice)”.
            Eu já indiquei essa música no Charlles, sou meio bitolado haha, mas é q gosto tanto dela, no entanto só hj, depois desses teus belos comentários eu me dignei a ir atrás do nome Eurydice, e então a letra fez sentido. A parte final dessa música é linda.
            www.http://grooveshark.com/#!/s/Awful+Sound+Oh+Eurydice/6GdUCP?src=5

          2. Não tenho muito contato com a música indie/hipster, Arbo. Mas já ouvi muitos elogios ao Arcade Fire. Depois vou checar a música.
            Obrigado.

  3. O posicionamento justo_ não parcial, como é o Milton de um lado e eu do lado oposto_ seria exigir que as autoridades competentes investigassem. Mas nossa memória está se tornando cada vez mais curta: há aí o Polanski, há aí o Scott McKenzie, e muitos muitos outros, e nada nunca foi feito. A mulher é o negro do mundo. Eu não vejo autoridade alguma, e nem o Milton a quer ter, em alguém que coisifica a mulher tanto quanto o Milton faz_ bonacheiramente, simpaticamente, como sempre são as ofensas crônicas e perenes à mulher, as ofensas engraçadinhas, consuetudinárias, mas ofensas_ se posicionar com veemência contra alguém como Allen. O arbo me recriminou um dia por algo que escrevi em um comentário no meu blog, e eu fiquei profundamente envergonhado. Falei que certa jornalista tinha ar rancoroso porque provavelmente era mal comida. Me policio sempre contra isso, contra essa violência simpática contra as mulheres, mas muitas vezes o senso comum grita, esbraveja de mim. E é esse posicionamento torpe que garante a impunidade e o relativismo para caras como Allen. A arte nunca desculpa ninguém, quanto mais a arte estelionatária.

    1. E mais. Você está desinformado em relação ao Polanski. Nem mesmo a pretensa vítima dele o recrimina.
      Assista o “Polanski: Wanted and Desired.”

  4. “…abuso não se relativiza, mas há que provar.” Concordo!!!

    Diante do tema do post, sinto-me a pisar em ovos, pois CADA SEPARAÇÃO DEVE SER ANALISADA COM EXTREMO CUIDADO. Escrevo isso porque, por mais de 20 anos, fui vítima da síndrome de alienação parental /1/; e, portanto, tenho pleno conhecimento até aonde pode chegar o ser humano quando movido por vingança. Mais duas coisas: (1) li em algum lugar que, durante as separações, os homens são vítimas preferenciais de tal síndrome; (2) tal crime nunca é cometido por um indivíduo apenas, mas, ao contrário, pelo grupo familiar e de amigos do agressor, isto é, forma-se uma efetiva matilha com o único objetivo de despedaçar qualquer tipo de ligação afetiva entre os filhos e aquele (ou aquela) que é o alvo da agressão.

    /1/ http://pt.wikipedia.org/wiki/S%C3%ADndrome_de_aliena%C3%A7%C3%A3o_parental

    1. Esqueci-me de uma coisinha importantíssima: (3) no seio da matilha, há sempre alguém que – a posar tal qual gente de bem, isto é, agindo como se não quisesse nada, dando uma de João sem braço ou de Maria sem perna, porém em conluio camuflado com o agressor… – já está no desfrute de benesses sexuais (e às vezes até mesmo econômicas, principalmente).

      É isso… É bem mediocre mesmo!

  5. Na lei brasileira atual, Ramiro, foi feita uma modificação não de toda justa mas necessária. Há quem diga que vivamos agora sob a ditadura da acusação infundada feminina. Hoje, se uma mulher acusar um homem de estupro, mesmo sem provas, o acusado tem grande chance de ser preso provisoriamente e ter que desembolsar um monte com advogado para ser solto. Há sim casos de prisões e acusações infundadas, movidas pela tal síndrome que vc disse, ou pela vigarice da mulher. Mas, no quadro de machismo extremo de nossa sociedade, julgo essa nova adoção do código penal como um mal necessário, um mal que equilibra. Vi demais e conheço demais mulheres que sofreram abusos sexuais uma ou outra ocasião em suas vidas_ a grande maioria na infância. O estupro de crianças é o mais cruel e desumano dos crimes porque a vítima nunca vai ter voz, sempre vai haver defesas disfarçadas e truncadas como essa desse post, que tenta desviar suavemente tudo para a “loucura da esposa”, a “inconstância da criança denunciadora”, etc, etc, o que é uma balela; pois mais que a mulher seja “louca” ou o que for, ela não iria querer purgar toda a sua vida pela pecha do estupro, de ter sido vítima de estupro pelo pai. A mácula de uma denúncia dessas é algo pesado por demais para que uma mulher invente tal coisa para a promoção da vingança passional da mãe. E parece fácil demais esquecer que essa passionalidade da “louca” Mia Farrow é Woody Allen ter preterido ela por… uma outra filha adotiva. Isso não parece ser revelador? Não parece aí surgir espaço para a questão somatória de que o pai adotivo violava suas filhas, até que uma aceitou que se firmasse um vínculo afetivo mais duradouro? Acho bem improvável que a Dylan esteja mentindo. Ela deveria ser muito mais que a doida que tentam pintá-la: isso é mais questão de estupidez do que loucura. Perder a vida toda (ela tem 28 anos!), em prol de uma vingança que nem dela é, e que não lhe trará ganho financeiro algum, boa fama nenhuma.

  6. Um texto da Nádia Lapa, blogueira de Carta Capital e do blog Cem Homens

    “Em tópicos, pra facilitar.

    Tempo: a vítima de qualquer crime que lhe deixe trauma – e o sexual faz isso – demora mesmo a se abrir. Quem trabalha com atendimento a estas pessoas (seja presencialmente, seja apenas lendo os relatos, como eu), percebe que o tempo é subjetivo, que cada vítima tem seu ritmo, e algumas nunca compartilham a história. Isso ocorre por diversos fatores, como a descrença dos outros, o sentimento de culpa, a vergonha, o medo de estragar relações familiares. Pode demorar 20 anos, pode demorar 50, pode nunca acontecer. Dizer que Dylan “demorou demais” é não compreender que ela precisou de um processo de autoconhecimento, de autoempoderamento, de tratamento psicológico, de superação de traumas, para expor coisa tão pessoal. Ela até mudou de nome para não ser reconhecida. Esse é o nível do trauma. E não é você quem decide quando e se ela deve se expor.

    Condenação judicial: Ah, Allen não foi preso, dizem muitos. Estatística bombástica: só 3% dos acusados de crimes sexuais passam pelo menos UM dia na cadeia. Este número aparece em diversas pesquisas nos Estados Unidos; acredito que não temos nada parecido por aqui. Se você vai me dizer que só 3% dos acusados são realmente culpados, gostaria (mesmo) que você justificasse o motivo pelo qual uma pessoa vai passar pelo constrangimento de fazer a denúncia.

    Não acharam nenhum indício de violência sexual: Violência sexual para dummies: não é necessário haver penetração ou violência física, deixando marcas. Inclusive, é beeeeeeem melhor (se é que há “melhor”) que não haja penetração em crianças, pois isso significaria, talvez, a morte da menina. Caso você ache que violência sexual é só quando tem marca de murro na cara ou vagina machucada, você está apenas apagando o histórico de todas as pessoas – especialmente mulheres – que são abusadas todos os dias no transporte público, por exemplo. Você é um monstro. Desculpa dizer isso agora, assim, na dura. Mas é preciso.

    A não condenação de Allen: Risocas para vocês!! Sabiam que nos EUA tem estado que dá direito de visitação e até de lutar pela custódia de uma criança gerada num estupro? Pois é! Um estuprador pode virar ~pai~. Woody Allen, mesmo com toda a grana e fama, foi impedido judicialmente de se aproximar de Dylan, pois entendeu-se que ele era um risco à menina.

    Soon Yi: Parece que algumas pessoas disseram que ela era filha do Woody. Ela é filha de André Prévin, ex-marido de Mia Farrow. No entanto, Mia começou a se relacionar com o diretor logo após a adoção, que foi super complicada, e ele – Allen – foi padrasto de Soon Yi durante pelo menos dez anos antes de assumir (forçadamente) o relacionamento com ela. Podem dizer que incesto é tabu na nossa sociedade, que sei lá em que ilha da Micronésia isso é suuuuuuuuuuuuuuuper comum, mas, bom, vivemos na sociedade ocidental e não é bacana (pra dizer o mínimo) quando um homem, seja de que idade for, trepa com a filha da esposa. Isso geraria imenso desconforto se acontecesse no seu vizinho. Por que se aceita que aconteça com o Woody?

    A relação entre uma garota e um homem mais poderoso e mais velho: Além da doentia dinâmica de um padrasto se relacionar com a enteada (em que momento ele olhou para Soon Yi como ~mulher~ e pediu pra ela tirar foto peladona?), é bastante comum vermos outras relações entre um homem muito mais velho e uma garota. Eu não estou dizendo que em todas há poder de um sobre o outro; o único caso que está sendo analisado individualmente aqui é o de Woody Allen. Pensemos em professores e alunas. Quantos casos conhecemos? Eu, vários. Já existe uma relação de poder diferente, uma vez que se trata de um homem e de uma mulher, que não têm a mesma posição na sociedade. Aí coloque uma pessoa muito mais inteligente, esperta, interessante que os garotos da idade da menina. Ah, a menina se “ofereceu”? Garotas imitam mulheres adultas desde a infância, quando colocam sapatos e maquiagem das mães. Qualquer garota sabe mimetizar a vida adulta. Isso não quer dizer que ela esteja preparada para vivê-la – e cabe ao adulto da história ter o mínimo de respeito e consciência na situação. Você vai me dizer que a Mia Farrow casou com homens bem mais velhos? Sim, casou. E isso não quer dizer que ela também não tenha sido levada a isso. E, bom, a vida pessoal da Mia Farrow não influencia no fato de que Woody Allen é acusado pela própria filha de tê-la abusado.

    Mia Farrow era uma louca histérica: O tanto de misoginia que escorre desta informação é assustador. Eu sinto todo o ódio pelas mulheres na boca de quem fala esse absurdo. É outro nível de victim blaming: estão culpando a MÃE da vítima. Todas mulheres. Que curioso, não? (eu me recuso a me alongar nesse tópico.)

    OLHA.QUE.LOUCA.

    Mia-Farrow-in-Sudan

    Mia e Woody não eram casados pela lei do estado de Nova York. É o que diz o Daily Beast. Eles tiveram filhos juntos (biológico), adotaram criança juntos (Dylan), fizeram 13 filmes juntos, se viam todos os dias… mas ah, a lei, o que importa é a lei.

    Por que só agora, Dylan? Como mencionei antes, cada vítima tem seu tempo. Eu mesma publiquei um guest post aqui (que é completamente real, pois conheço a pessoa que o escreveu) de uma mulher que foi abusada na infância/adolescência pelo próprio irmão e só publicizou isso bem mais velha. Tudo começou com os tuites do irmão e da mãe de Dylan durante os Golden Globes. Virou uma discussão mundial, Dylan recebeu apoio de incontáveis pessoas e agora resolveu colocar a questão na mesa. Talvez não para ~linchar~ o abusador (risos), mas para falar, para mostrar que ela está ali, para deixar claro para outras vítimas de abuso que é possível sobreviver e que elas não estão sozinhas. Ronan e Mia Farrow têm participação intensa em programas sociais. Talvez Dylan tenha se inspirado no irmão e na mãe e queira fazer sua parte. E eu a aplaudo por isso. É necessário que cada vez mais as sobreviventes de violência sexual e doméstica imponham suas presenças e gritem suas histórias.

    Cuidado! Escola Base e etc. Toda vez que houver alguma dúvida, vão trazer esse caso à tona? Vocês ao menos, por um segundo, leram algum artigo sério sobre o caso Escola Base? Foi horrível, foi mau jornalismo, foi trabalho porco da polícia. Mas nesse caso há o relato da vítima que, num mundo feminista, JAMAIS deve ser colocado em dúvida. JAMAIS. Em tempo algum. Sob qualquer justificativa. J.A.M.A.I.S. De novo: jamais. O relato de uma mulher adulta, consciente dos seus atos, que em carta inclusive relata diversos problemas físicos e psicológicos decorrentes do trauma que o próprio pai lhe provocou.

    Não vamos linchar sem provas! Esse argumento me dá vontade de rir. Confesso: eu rio um pouco, aqui, sozinha. É muito doido. Linchar? Quem tá linchando? O Woody Allen sequer se posicionou a respeito do assunto. Mandou a assessoria de imprensa escrever um comunicado de duas linhas. Blue Jasmine, último filme de Woody, está concorrendo a diversos Oscar – inclusive o de melhor roteiro original, escrito pelo diretor. A vida dele continua igualzinha, com a conta cheia de dinheiro, a prateleira cheia de prêmios e, como mostro na frase que abre este post, provavelmente com a consciência tranquila.

    Woody Allen é um gênio, vamos separar a obra do artista. Caso você deseje muito continuar usando frases que Woody balbucia feito bêbado nos filmes dele, ou queira continuar indo ao cinema sem culpa, vá em frente. Mas eu não consigo deixar de pensar no Bruno, assassino de Eliza Samudio (posso dizer “assassino”? a sentença ainda não transitou em julgado… será que posso? cês deixam?). Lembro que em uma entrevista ou em um relato qualquer ele lamentou muito não poder ser o goleiro da seleção brasileira na Copa de 2014, essa que talvez comece em quatro meses. Você aplaudiria o Bruno no gol?

    ***

    Pretendia escrever um texto corrido. Não consegui, porque era maior do que eu contestar ponto a ponto as alegações bizarras que estão fazendo para defender Woody Allen. Se eu esqueci de mencionar algo, por favor deixem nos comentários que eu vou atualizando o post. Eu ainda vou escrever um texto corrido, porque preciso humanizar essa história toda. Preciso. Preciso mostrar que o foco é a Dylan, não o Woody. O foco é a dor que esta garota passou. O foco é a coragem em se expor agora, e trazer à discussão assunto tão delicado. O foco é a audácia de nomear pessoas que trabalharam com o agressor, e o defendem. O foco é a Dylan. O foco sempre será a Dylan, mesmo que ela se chame Maria, Helena, Aline, Rachel, Mércia, Eliza, Eloá.”

  7. Concordo totalmente com o Schopenhauer: só se pode julgar um indivíduo pela sua obra. Não me interessa se o Heidegger foi um indivíduo odioso (o que é provável) ou que o Allen tenha sido odioso (o que não me parece provável). Como se as pessoas fossem em sua maioria boas… Bem ao contrário. O ser humano é o “animal sacana por natureza” (l’animal mechant par nature), como já foi dito. O espantoso não são o nazismo do Heidegger ou a suposta pedofilia do Allen, e sim as obras de cada um, singulares e valiosas ao seu modo. O resto é ruído de indivíduos invejosos sem luz própria para a posteridade.

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