A morte de Tchékhov no balneário de Badenweiler é uma das mais recontadas da historia da literatura. Parece haver enorme sedução na cena do escritor moribundo, com sua mulher, seu médico, o estudante que chegou para ajudar e a garrafa de champanhe. Quem pediu a bebida? O médico ou Tchékhov? A sedução é tanta que o grande Raymond Carver escreveu um conto, Três rosas amarelas, no qual narra a cena, só que cheia de detalhes inventados. Talvez isso tenha nascido da narrativa de Olga Knipper, atriz e mulher do escritor. Em seu relato, a cena é contada com tanto, mas tanto romantismo que não parece verdadeira. O russo era um escritor que se caracterizava pela falta de artifício e de idealização dos personagens, pilares de um modelo de escrita totalmente ignorados por Olga em seu texto.
Não é estranha a admiração de Carver pelo russo. Basta ler ambos. Indiscutivelmente, o país onde mais profundamente influenciado pela prosa direta de Tchékhov foi os Estados Unidos, onde a afetação não desfruta de muito prestígio. Suas histórias da Rússia Czarista parecem as de um sujeito nascido para a pobreza, mas Tchékhov, neto de um escravo que comprou sua liberdade, acabou homem rico. Foi filho de um dono de armazém, terceiro de seis filhos, chefe de família — cuidava dos irmãos com especial cuidado –, estudou medicina, exerceu-a, parou de praticá-la para apenas escrever, apesar de nunca ter se sentido parte do mundo literário.
Tchékhov, segundo Tolstói, que não é exatamente uma besta para descrever pessoas, seria um homem “doce como uma mulher” e é crível que tenha dito em seu leito de morte que “fazia muito tempo tempo que não bebia champanhe” e mais crível ainda é que o médico o tenha servido, pois sabia da morte inevitável pela tuberculose. Estávamos em 1904. O detalhe do último suspiro e do voo da rolha… Mas voltemos a Tchékhov.
Os personagens de Tchékhov são cheios de boas intenções sobrecarregadas de estupidez, inatividade e finalidade. Ele é moderno em sua concisão, pouca adjetivação e principalmente na recusa em explicar o mundo. Confrontado com as idéias de Tolstoi — o qual em seus textos parece ter resolvido todos os impasses da humanidade — , Tchékhov era um apresentador de realidades complexas e insolúveis que habitam uma dentro da outra. Também defendia, uma novidade na época, os efeitos benéficos da ciência e do progresso.
Por que amamos tanto Tchékhov? Por que as pessoas fazem cara de “coisa fofinha” quando falam nele? Isso ocorre porque ele é o fundador do escritor moderno que não julga os personagens, deixando-os falar sua própria língua? Mas isso não comportaria uma certa dureza narrativa? E o que transparece da doçura de Tchékhov em seus textos? A pensar.
Uma das coisas que penso sobre Tchékhov é que sua percepção sobre o viver como humano em um universo incompreensível, mas com indiscutível tendência à degradação por vias tanto biológicas (e ele, como médico e paciente, conhecia isso muito bem) quanto sociais (e ele, como russo e progressista, conhecia isso melhor ainda), levava-o (e às suas obras) a uma contemplação interessada que, apesar de certo engajamento, prostrava-o em sua indignação, considerada por ele como praticamente estéril, principalmente diante da multiplicidade de fatores que reduz o alcance do poder humano a um gesto perdido em uma massa de demandas invisíveis, inaudíveis, equivocadas. Submergir, diluir-se, apagar-se, ver com os próprios olhos o realizado como ínfimo diante do irrealizável, e mesmo o realizado como algo que resultou distante da intenção inicial, mínimo, medíocre, mesmo inútil.
É interessante como a biografia de Bulgakóv, também médico, complementa a de Tchékhov, sob um registro mais humorístico, em meio à perversidade do regime stalinista. Conhecendo os dois conhecemos um pouco mais a Rússia, e refinamos umá aproximação do que somos nós mesmos, enquanto cidadãos do mundo, brasileiros, cariocas, gaúchos, citadinos, habitantes de nossso bairro, nossa casa e, por mim, nós mesmos, em meio a essa confusão toda.
Putz, eu estava escrevendo o texto e a coisa já estava publicada…
Uai, que eu saiba o texto já estava na tela (sem a foto), e foi muito fácil de ler, além do que tenho lá minhas afinidades com Tchékhov (não é o talento, claro). Assim, falou nele, eu comento na hora.
A coisa…
Falar nisso, viram o novo livro saído pela L&PM? Uma deliciosa selecão de contos curtíssimos (a maioria de uma página só) dos primeiros anos de Tchecov. “Um Negócio Arriscado”.
Correção: “Um Negócio Fracassado e outros Contos de Humor.”
Não, não vi. Deve ser compilação de textos humorísticos curos, publicados em jornais. Ele fazia muito isso no começo, sob inspiração de Gógol, se não me engano. De qualquer maneira, como Dostoiévski diz que toda literatura russa descende de O Capote, que seja.
Bá, não conheço. Quero!
Foi lançado há um ou dois meses. Revendo aqui meu exemplar, são contos curtos sim, de duas a três páginas (não de uma página só, como disse).
O único que eu conhecia é a do marido traído que vai à uma loja de armas para escolher a melhor maneira de matar a esposa.
Pior é que acho que tenho este livro e não li.
Mal e mal eu sabia que ele tinha morrido… (brincadeira)
Não sabia que tinha essa história. Todas as curtas biografias que li sobre ele, na introdução dos contos, omitiram esse detalhe.
Sob as luzes e trevas de Tchékhov,
eis duas nascidas, agorinha, do forninho…
ESPIRAIS
by Ramiro Conceição
Instruir-se
é uma ascendente
espiral divergente.
Não se instruir
é uma descendente,
convergente.
LAMPARINAS
by Ramiro Conceição
Minha mulher
promoveu-me
ao cargo oficial
de trocador
de lâmpadas.
Porém,
como explicar a ela que sou,
em essência, um acendedor
de lamparinas?
PS: Milton, estou a aguardar as tuas notícias…
Duas versões, uma em prosa, outra em verso.
Ramiro e Milton, querem parar com essa troca de fuxico por email e recadinhos em comentários. Tá uma viadagem só!
Eles só falaram isso pra causar cizânia entre os 6 leitores, isso sim.
Tá bom! Vamos parar.
Ai, Carajo!
Milton, descobriram o nosso caso…
Ai, mi carajo!
Descobriram o nosso caso…
Buenas,
com estou longe o acesso nem sempre é tão simples como em casa. Com eu vejo a pessoa Tchecov, não digo como escritor, pois em nada minha devoção adocionaria ao que já se disse. Eu gosto de enquadrar alguns personagens como pessoas que gostaria de ter como amigos, Aliás vejo como amigos. Tchecov certamente é um deles, apesar da sua economia narrativa ele parec olhar a humanidade com ternura e serenidade. Ele apenas a aceita não a julga e não julgando não toma partido. Conversar num bar com ele deveria ter sido ótimo.
Branco
Você precisa ver minha cara quando falo dele, não tem nada de fofinha, é puro embasbacamento. E você já viu o meu rosto…
Existe uma compreensão que se dá por meio das palavras. Mas existe também uma compreensão profunda, que se dá por meio do silêncio e do que não é dito. São momentos raros e iluminados; pequenos milagres, talvez. Tchékhov me ensinou isso. (Agora, cabe a questão: se eu percebo isso através do texto de Tchekhov, então também não deixa de ser por meio das palavras, mas escritas; terá a palavra escrita a mesma propriedade inefável que o silêncio?). Dostoiévski alcança a mesma profunda compreensão, mas por outros caminhos (penso que mais pela força do inconsciente e de impulsos pouco razoáveis, mas muito humanos). Seja como for, concordo com Virginia Woolf quando se refere aos autores russos de um modo geral: “Se é entendimento de alma e coração que queremos, onde mais haveremos de encontrá-lo com comparável profundidade?” (Ficção Moderna, in “O valor do riso e outros ensaios”).