Por Julian Barnes, no The Guardian
Tradução e traições por Milton Ribeiro
Meu herói era um covarde. Ou melhor, muitas vezes considerava-se um covarde. Ou melhor, foi colocado numa posição em que não era possível não ser covarde. Você ou eu teríamos sido covardes em sua posição, pois ser o oposto de um covarde — um herói — seria tolo. Aqueles que se levantaram contra o poder naqueles dias foram mortos e os membros da sua família, amigos e associados foram desonrados, enviados para campos ou executados. Então, ser um covarde era uma escolha sensata.
Ele era Dmitri Dmitrievich Shostakovich, que, mais do que qualquer outro compositor em toda a história da música, sentiu a pressão diária do poder. Ele escreveu sua Primeira Sinfonia em 1926 com a idade de 19; foi um sucesso em todo o mundo; três anos depois, a pessoa a quem a obra era dedicada foi presa e fuzilada. Muita gente morreu. Qualquer um que parecesse remotamente suspeito aos olhos paranoicos de Stálin.
A música de Shostakovich tem estado comigo durante meio século. Hoje, aparecem finalmente suas opiniões, testemunhos e até obras musicais ridicularizando os líderes e a burocracia soviéticas. Ele sofreu muito e passou seus últimos anos de vida desejando a própria morte. Compôs músicas de encomenda, todas de baixa qualidade, deixando o poder divulgar, orgulhoso, verdadeiras porcarias. Tikhon Khrennikov, um puxa-saco do Partido que trabalhava na União dos Compositores, alegou — absurdamente — que o compositor era “um homem alegre, que não tinha nada a temer”. Mas, como diz um ditado russo, o lobo não pode falar do medo das ovelhas. Shostakovich foi muitas vezes ameaçado e tornou-se cauteloso e desconfiado. Foi censuradíssimo e seguiu trabalhando até onde sua saúde permitiu. Realizou alguns desafios calculados que demonstraram sua ojeriza a Stalin. Conversou algumas vezes com ele, enquanto o mesmo Khrennikov literalmente borrou-se nas calças na presença do ditador.
Shostakovich se manteve firme, pagou a César o que lhe era devido — e César era muito exigente naqueles dias –, protegeu a sua família, esperou por dias melhores e desesperou-se enquanto produzia uma obra verdadeiramente sofrida e brilhante. Há mais formas de heroísmo do que as óbvias.
Que coincidencia!
Ontem mesmo assisti um documentário sobre a Sinfonia No. 7 de Shosta.
Parte da obra foi escrita durante o cerco de Leningrado, relatado hoje em dia como o cerco mais cruel da história moderna, onde mais de um milhao e quinhentas mil pessoas morreram nas condicoes mais cruéis possíveis.
A sinfonia foi dedicada a Leningrado (antes da revolucao e hoje Sao Petesburgo) e foi largamente usada pela máquina soviética como propaganda de estado. Apesar dessa obra ter tido um papel importante durante o cerco, acredita-se hoje que Shosta na verdade tenha dedicado a obra á sua cidade Natal em mémoria dos muitos perseguidos e mortos pelo regime que eram provenientes da cidade (isso ainda antes da guerra). Stálin foi tao perverso quanto Hitler com relacao a Leningrado, ele absolutamente odiava a cidade pelo seu histórico ocidentalizado, moderno e que portanto poderia causar problemas ao seu regime autoritário.
Incrível saber que Shosta foi capaz de conceber uma obra tao genial, absolutamente imperdível, quando vivia cercado pela morte e pela repressao (Shosta morava em Leningrado quando o cerco comecou).
Eu nao conhecia a tal da sinfonia, mas fiquei hipnotizado, ja excutei 3 vezes hoje.
Milton, voce ja deve estar careca de saber dessa história, mas resolvi por o comentário só pra ilustrar o heroismo do seu russo preferido!
Conhecia, mas li atentamente a grande história.