No quarto centenário das mortes de Shakespeare e Cervantes, a tentação de os comparar é irresistível. O inglês é o claro favorito a maior escritor de todos os tempos, mas D. Quixote e Sancho Pança são dos poucos rivais à altura de um Hamlet ou de um Rei Lear.
Do Público.pt
Por Luís Miguel Queirós
Aqueles que são provavelmente os dois escritores mais influentes da história da literatura, o inglês William Shakespeare (1564-1616) e o espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616), morreram (quase) no mesmo dia, há 400 anos. E se Shakespeare é talvez o verdadeiro centro do cânone ocidental, como pretende o crítico americano Harold Bloom, já não é certo que alguma das suas personagens, nem mesmo Hamlet, o neurótico príncipe da Dinamarca, ultrapasse a popularidade de D. Quixote, o cavaleiro da triste figura criado por Cervantes.
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Pese embora todo o prestígio acumulado pelo introspectivo e enigmático super-herói literário Batman-Hamlet, no campo de batalha da crítica não é menos considerável a claque dos que apreciam o jogo franco do galhardo e leal Superman-Quixote.
Um dos primeiros a intuir que colocá-los frente a frente no ringue daria um combate memorável foi o ficcionista russo Ivan Turguenev, que em 1860 dedicou toda uma extensa conferência (traduzida para inglês e publicada na Chicago Review em 1965) à comparação entre Hamlet e Quixote, concluindo que ambos representam expressões extremas de duas tendências humanas discordantes: o altruísmo, a fé inabalável, a capacidade de auto-sacrifício, a força de vontade, o entusiasmo, que o fidalgo da Mancha levaria aos limites da alucinação, isto é, da comédia, e o poder de análise, o escrutínio interior, o egotismo, a descrença, a incapacidade de amar, exacerbados em Hamlet ao ponto da tragédia.
Quixote, que vê gigantes onde outros veem moinhos, e arremete contra um rebanho de ovelhas convicto de que ataca uma hoste de cavaleiros, “pode às vezes parecer um perfeito maníaco”, concede o escritor russo. Mas “a solidez da sua estrutura moral imprime a tudo o que diz ou faz uma particular gravidade”, observa, e essa dimensão ética confere-lhe uma dignidade que resiste às “situações absurdas e às humilhações em que incessantemente tropeça”.
Já Hamlet, diz Turgenev, é alguém que se “espia a si próprio” e que, “duvidando de tudo, inclui impiedosamente o seu próprio eu nessas dúvidas”. Mas se este auto-conhecimento o torna dolorosamente consciente das suas próprias fraquezas, diz o romancista de Pais e Filhos, “ele é em si próprio uma força, da qual emana a ironia, que é precisamente a antítese do entusiasmo de D. Quixote”.
Turguenev nunca assume claramente a sua predileção por D. Quixote e respectivo autor, e até reconhece que o dramaturgo inglês, pela “opulenta e poderosa imaginação”, pelo “brilho do seu talento poético” e pelo “intelecto incomparável” é de facto “um gigante ao pé de Cervantes”. No entanto, argumenta, se o âmbito da arte do espanhol é mais exíguo do que o de Shakespeare, que se serve, para os seus desígnios, “de quanto exista na terra e no céu”, o confinado mundo cervantino basta ainda assim para “refletir tudo o que pertence à natureza humana”.
Mas o passo em que o russo mais denuncia a sua afinidade eletiva é talvez quando argumenta que, em toda a sua simplicidade, D. Quixote “é um autêntico fidalgo”, ao passo que Hamlet, “com toda a sua etiqueta cortesã, dá ares de parvenu”.
Turguenev abre a sua palestra – originalmente escrita para uma leitura pública em favor de uma associação de auxílio a escritores indigentes -, assinalando a coincidência de Hamlet ter sido originalmente publicado no mesmo ano em que saiu dos prelos a primeira parte do D. Quixote, uma coincidência fascinante, mas não inteiramente verdadeira.
Não contabilizando uma hipotética peça desaparecida que teria constituído um primeiro esboço de Hamlet, atribuída por alguns autores ao dramaturgo Thomas Kyd (1558-1594), a primeira impressão que se conhece é de 1603, mas resume-se a 2200 versos, pouco mais de metade dos 3800 que compõem a edição publicada logo no ano seguinte. Turgenev terá considerado com razão que a verdadeira edição original era esta de 1604, e dela se conhecem efetivamente alguns exemplares com data de 1605, o ano em que Cervantes deu à estampa a parte inicial da sua obra-prima.
Já depois da morte de Shakespeare, dois atores da sua companhia, John Heminges e Henry Condell, organizaram em 1623 uma compilação das peças do dramaturgo – Mr. William Shkespeare’s Comedies, Histories, and Tragedies, há muito conhecida por First Folio -, que inclui uma versão de Hamlet apenas ligeiramente mais curta do que a de 1604. Numa recente tradução portuguesa da peça, publicada pela Relógio D’Água, António M. Feijó opta por fundir ambas, mantendo todos os versos da edição de 1604 que não surgem na de 1623 e vice-versa.
Por coincidência reli Pais e filhos neste feriado. E na edição da Cosac a qual tenho, vem esse ensaio de Turgueniev sobre Hamlet e Quixote. Penso que leitores latino-americanos e russos, muito distintos pelo temperamento algo sensualista e passional, são impermeáveis a Shakespeare. Meço por mim, que só fui ler S tardiamente, li quase tudo e, embora não seja obtuso a ponto de negar seu gigantismo, afora Julio Cesar (que realmente me deixou estupefato) tudo de S me é meio que alienígena. Bellow amava S., mas o mais latino americano dos escritores americanos, Faulkner, lia o Quixote todo ano. Assim sendo, o embate já tem seu vencedor. P.S.: recomendo muitíssimo um dos mais engraçados e destruidores textos da literatura, a desconstrução que Tolstoi faz de S. Está na edição dos últimos textos de Tolstoi lançado pela penguin companhia. O russo passou anos lendo Shakespeare em várias línguas e analisa as peças mais importantes com dedicada acurácia, para dar razão a sua tese de que S era uma fraude sem sentido.
Why is Shakespeare Still So Popular? For the Same Reason Tolstoy Hated Him
http://www.atlasobscura.com/articles/why-is-shakespeare-still-so-popular-for-the-same-reason-tolstoy-hated-him