Maria Luiza faria 90 anos hoje

Hoje é o dia em que minha mãe faria 90 anos. Também é o dia em que um de meus melhores amigos, Ricardo Branco, faz 59, mas deixemos a prioridade para ela.

À medida em que vou ficando velho — completo 60 anos em agosto, idade que não sinto, mas que é tristemente real — vai crescendo a certeza de que sou não somente a óbvia mistura genética de meus pais, Maria Luiza e Milton — herdei-lhes atitudes e posturas muito próprias. Parece que a idade acentua suas presenças em mim. Por mais que trabalhassem fora de casa, meus pais sempre se preocuparam com minha educação e a de minha irmã. Sempre penso que a Iracema, um pouco mais velha do que eu, nasceu pronta e perfeita. Ela estudava muito e parecia fazer aquilo com gosto e inteligência. Eu me sentia meio burro em relação a ela. Tinha que ser empurrado.

E era. Minha mãe foi quem mais empurrou o menino que fui e que só se queria estar na rua com os amigos e jogar (mal) futebol. Certamente veio dela meu amor pela literatura. Não que ela fosse uma grande leitora, é que ela respeitava e amava a cultura de forma devocional. Nós tínhamos sempre dinheiro para livros. Eu e minha irmã éramos modestos em nossos pedidos — sempre fomos bem conscientes de que nossa vida confortável não incluía grande fortuna e era fruto direto do trabalho duro e diário de nossos pais –, porém o fato é que nossa mãe era uma pessoa generosa em termos financeiros. Poucas vezes negava meus pedidos de mais grana para qualquer loucura que inventasse. Porém, quando a coisa era para comprar livros, ela vinha de carteira literalmente aberta. Fazia questão que eu lesse. Quando chegava cansada do consultório de dentista onde trabalhava o dia inteiro, perguntava o que eu estava lendo, mesmo que depois não soubesse o que comentar. Ela ganhou esse jogo. Hoje não consigo não estar lendo nenhum livro. E carrego-os aonde vou.

Eu e minha mãe
Eu e minha mãe. Se a imagem não aparecer, clique aqui porque este blog está que é um chapéu velho.

Acho que a Maria Luiza cresceu tentando manter alguma magia espiritual em torno de si, mas suas intenções esboroaram-se contra o chão duro das ruas da Azenha e a correria da maternidade. Nós crescemos e ela não obteve de volta o piano da juventude, onde tocava tangos, e muito menos os livros. Estava sempre trabalhando fora ou em casa. Sempre com alguma coisa pendente. Sempre correndo. Foi uma das primeiras dentistas profissionais do RS e foi massacrada pela necessidade de ser a mulher da casa. Em tempos em que não havia feminismo no Brasil, ela fazia dupla ou tripla jornada para não decepcionar ninguém. Quando jovem dentista, no início dos anos 50, foi criticada por não deixar que meu pai a sustentasse financeiramente. Ainda bem que ela jamais concordou com isso, não daria certo. Ela era a chefe da família e ponto.

O que permaneceu da jovem Maria era a forma com que enfrentava a falta de gosto e a vulgaridade. É dela uma frase que uso muito: “Não ouço música descartável”. Adorava Chopin e a música erudita romântica. Tentando abrir uma janela em suas atividades incessantes, meu pai estabeleceu a quarta-feira como “o dia de ir ao cinema”. Talvez aquilo soasse a ela como mais uma atribuição. Com o tempo, ele também perdeu este jogo.

Minha mãe era AMADA por seus clientes de consultório. Eu notava isso naquela época e ainda hoje. Era um sucesso dizer que eu era o filho da dentista da Azenha. A maioria de meus colegas a visitava, pois ela era odontopedriatra. Também estava sempre disposta a ajudar. O tempo esticava-se para dar lugar a tudo que seu 1,55m queria fazer. Mas ela dizia que não tinha feito nada.

A Elena sabe o quanto uso suas expressões cruz-altenses. Cada vez mais. O casamento com meu pai não era lá nenhuma maravilha em alguns aspectos, porém lembro de uma frase muito significativa que ela me disse quando meu pai morreu em 1993. “Ele me deu muito mais amor do que eu dei para ele”. Esta frase, para a pudica e reservada Maria Luiza, equivalia a dar uma voltinha nua pela casa.

Também minha teimosia e autocrítica vêm dela. Quando metia uma coisa ou um assunto na cabeça… Se o assunto não fosse do nosso agrado, melhor fugir. E ela costumava criticar a si mesma com algum desdém, especialidade que mantenho em alto nível. Tudo o que fazia acabava mal, o que era uma tremenda mentira e injustiça dirigidas a grande mulher que ela foi. Construiu uma casa ruim, não deveria ter sido dentista mas outra coisa, fez comida sem gosto, comprou um monte de coisas que não usa, errou nisso, naquilo. Essas coisas foram criando a certeza de que, filho dela, também eu só fazia coisas erradas. A Elena não parece gostar muito de minha autocrítica, só que é um vício complicado de contornar. Ela parecia estar sempre em falta e eu, coincidentemente…

Hoje, por um acaso, esbarrei neste poema de Shakespeare. É sobre o amor, só que fala tanto em faltas, vícios ocultos — que certamente ela não tinha, a não ser o de esconder caixas de Bis no guarda-roupa –, em injúrias dirigidas a si mesmo e em erros, que logo pensei “Putz, hoje é o dia da Maria Luiza mesmo”.

Assim é o meu amor

Quando for teu desejo teres por mim fraco apreço
E colocares meus méritos no centro do desdém,
Ficarei do teu lado, contra mim lutarei,
Provar-te-ei, ainda que traidor, virtuoso.
Usando as minhas faltas, essas que sei de cor,
Contarei uma história falando por teu nome,
E os meus vícios ocultos todos condenarei,
E tu, ao me perderes, alcançarás a glória.
E, ao fazê-lo, eu também serei vitorioso,
Dobrando perante ti meus ternos pensamentos.
E as injúrias que a mim eu mesmo me impuser
Redobrarão meus ganhos, ao te darem proveito.

Assim é o meu amor, assim eu te pertenço,
Pois, ao provar-te certo, me descubro no erro.

W. Shakespeare, trad. Ana Luísa Amaral

Ela faleceu em 2012 após longo e doloroso Alzheimer. Acrescento isso apenas aqui no final porque já quase esqueci desta fase terrível, deixando no lugar a mãe amorosa, presente, interessada e, puxa vida, ativa.

Meus pais
Meus pais

10 comments / Add your comment below

  1. Puxa… muito emocionante!!! Conseguiste q eu em alguns minutos de leitura revivesse anos… Grande e afetuoso abraço, querido irmão!

  2. Amei o texto … tanto que copiei na minha pasta . Minha madrinha era a pessoa que descreveste : guerreira , amorosa, um exemplo a ser seguido. Beijo carinhoso da prima meio mineira.

  3. Primo, a Tia Maria é um ser inesquecível! Lembro dela com muito amor por tudo o que me deu e hoje não podia ser diferente. ???
    Realmente, o texto é lindo!

  4. Falar-se de sogra, pelo menos de forma séria, não é muito comum, mas quero tornar público meu sentimento. Depois de perder a minha mãe acabei ganhando outra. Recebi muitos conselhos, não com palavras, porém com sorrisos e olhares afetuosos, verdadeiramente nos entendíamos. Acho que isso diz tudo.

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